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Transposição, a nova barreira para a retomada Truká

Repórter Brasil - https://medium.com/@reporterb
Autor: Renata Bessi
14 de Mar de 2014

Há décadas indígenas tentam recuperar áreas desmatadas e invadidas. Obras são novo impasse

Cabrobró (PE) e Floresta (PE) - Trinta de junho de 2005 iniciou-se como um dia festivo para os Truká na Ilha de Assunção. As escolas da ilha comemoravam o dia de São João. Até mesmo lideranças perseguidas por conta do processo de retomada das terras, que viviam nas ilhotas do rio São Francisco, deslocaram-se para a ilha maior para as festas do povo. Por volta das 18h, em meio a danças e muita comida, quatro pessoas - que os indígenas denunciaram ao Ministério Público Federal como policiais à paisana - entram no barracão de festas e começam uma briga com Adenilson dos Santos Vieira, o Dena, 38 anos, uma das lideranças Truká perseguidas. Seu filho, Jorge Adriano Ferreira Vieira, 17 anos, reagiu e ambos foram baleados. Quase 500 pessoas estavam presentes, segundo os moradores, incluindo crianças, pais de alunos, idosos. Antes da fuga, os quatro atiraram em todos os pneus dos carros que estavam no local, para que as vítimas não fossem socorridas. Ambos morreram.

Muitos em Cabrobó tinham Dena como briguento, lembra o cacique Truká, Aurivan dos Santos Barros, conhecido como Neguinho Truká. "Isso porque dentro do nosso controle social, cada um tinha sua função, e a função dele era zelar pela segurança tanto das ilhotas quanto da Ilha de Assunção. Com sua perda, todo mundo achava que a gente ia enfraquecer e mostramos que não, os Truká independem de pessoas específicas. Todo mundo tem responsabilidade pelo povo da gente", afirma.

Duas horas antes dos assassinatos, os indígenas haviam recebido em seu território o então ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, às vésperas do início das obras da transposição. Durante o evento, Neguinho Truká posicionou-se contra a transposição, caso não houvesse um plano claro que garantisse a distribuição da água para os que de fato estão na seca. Inclusive rejeitou a presença em suas terras do Exército brasileiro, responsável pelas obras.

Neguinho Truká, que tinha acabado de ser empossado como representante dos índios da região no Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, foi chamado para prestar esclarecimentos sobre o assassinato de seu irmão e sobrinho. Mesmo tendo pedido para prestar depoimento na terra Truká por questões de segurança, a Polícia Federal o intimou a depor no município de Salgueiro (PE), tendo então recebido voz de prisão em razão de um mandado expedido pela Comarca de Cabrobó por furto de duas cabeças de gado.

"Nós brigando para que os cabra fossem punidos, aí de repente sou preso também. Para o nosso povo foi momento difícil. As pessoas achavam que íamos desistir da luta, mas mais uma vez provamos o contrário. Fiquei 15 dias em um presídio, nunca tinha entrado numa cadeia antes. Fui transferido de prisão como alguém periculoso, carro na frente e um monte de carro atrás", lembra Neguinho.

Em 26 de novembro de 2008, Neguinho e mais três acusados, dentre eles seu irmão Dena, que teve o processo extinto após seu assassinato, foram absolvidos da acusação de furto movida pela Promotoria do Estado de Pernambuco, por sentença da Justiça Estadual de Pernambuco.

"Fizemos ações, documentos, manifestação, a denúncia foi parar até na ONU, senão até hoje Neguinho estaria preso. Os policiais que mataram Dena e seu filho foram nomeados em menos de uma semana, subiram de patente. Essas mortes tinham a ver com a transposição, para calar nossa boca", desabafa Claudinha Truká, liderança do povo Truká.

Territórios conquistados serão inundados

Na foto, um dos povoados Truká que podem acabar alagados

A luta dos Truká por suas terras não é de hoje. Em 1981 eles conseguiram retomar as primeiras áreas na Ilha de Assunção, no rio São Francisco. Desde 1994, a ilha vem sendo reconquistada aos poucos, em um processo que chamam de retomada. "Houve grande embate nesse momento e expulsão dos posseiros e seus gados de nossas terras. Nesse tempo reconquistamos grande parte da Ilha de Assunção e junto com ela as ilhotas. São aproximadamente 100 ilhotas, com Orocó, e temos índios que vivem nessas ilhotas. Outras ilhotas usamos para cultivo, espaços agrários. Uma vez por ano vamos fazer ritual nelas", explica Claudinha.

Mas parte da Ilha de Assunção ainda está em processo de homologação e as obras são uma ameaça ao processo, explica:

"Já foi feito o estudo, já foi provado que as terras são nossas. Os antropólogos encontraram cemitério, furnas, utensílios, tínhamos preservado os espaços nas matas para rituais. Agora estamos com receio de que não saia porque estão muito próximas às obras. Temos receio de que nesse processo de transposição e da construção da barragem a área seja reduzida. Está na sala da presidenta para que assine, mas nada."

Os Truká reivindicam ainda como território indígena as terras onde está a tomada d'água da transposição. Um estudo está sendo feito, como primeiro passo para a demarcação do território. "Esse processo existe desde 2007. Mas não concordamos com os recortes feitos pela Funai. Então o estudo vai e volta. As fazendas que estão sendo reivindicadas estão muito próximas ao canal da transposição. O governo federal sabe que essa terra é nossa e sabe que sabemos disso e que não vamos aceitar esse canal passando por nossa terra e a gente sem poder pegar água", diz Claudinha.

No início das obras, os Truká ocuparam o canteiro da tomada d'água por nove dias. Mas a Justiça concedeu reintegração de posse pedida pelo Ministério de Integração Nacional. "No início a gente entupia os buracos que o Exército fazia. Mas não adiantou. Agora toda a área está num processo de devastação enorme. Quantos anos não vai levar para que a mata e o animal volte a habitar aquilo, para que a natureza se reconstrua de novo, e isso para a gente dói muito. Pegamos nosso território devastado e sabemos o quanto isso pra gente é ruim e tentamos segurar as poucas matas que há. Quantos encantados nesses espaços destruídos não foram fragilizados? É muito doloroso quando a gente chega na obra da transposição e vê tudo aquilo devastado", observa Claudinha.

Antigamente

"O rio é a nossa subsistência, plantamos porque temos a água do rio... não há outra fonte para os truká... é nele que está a história do povo, onde estão os encantados do povo. O rio... ele não suporta... nossos mais velhos dizem... ah, nesse rio a gente pegava surubim que dava pra lavar roupa na cabeça dele se abrisse. É o jeito que eles têm para dizer que eram peixes em abundância e enormes. E hoje a gente fica o dia todo no rio de anzol e volta pra casa sem nada. Somos obrigados a ir para cidade comprar carne. Bastava ter farinha e sal... o resto a gente sabia que estava garantido, tínhamos o rio. Com as barragens de Sobradinho e Itaparica, o rio já começou a decair. Nossos velhos dizem ainda que com essa transposição vai dar para ir para Bahia a pé [A ilha fica na divisa entre Bahia e Pernambuco]. Eu não vou ter mais barca, para que ter barco?"
Claudinha Truká

"O que a gente vê ainda é a capivara, jacaré-açu, mas o jacaré-mirim, as lontras, os outros animais que tinham aqui nas margens dos rios não vemos mais. O lobo-guará que morava na beira do São Francisco agora a gente só acha nos alagados... e tantas outras espécies de pássaros e frutas, hoje não se tem mais. Aqui até 1979 tínhamos o rio São Francisco virgem... a gente pegava surubim, dourado. Parte da história da gente, dos nossos costumes vão embora com essas obras... a nossa cultura é dada de elementos... a gente contempla matas, águas, vento, sol... quando um desses elementos é extinto parte da nossa cultura também é. Foi transmitido para a gente esses conhecimentos milenares dos nossos antepassados."
Neguinho Truká

"Tatu, peba, veado, caetetu. A melhor carne do mundo é a carne que vem do mato, é sadia... não é envenenada não... vem só da natureza. Eu gosto de caça... eu como bem... só não como gato do mato... fede muito... comi muito... matei muito gato com cobra no bucho. A caça do mato é limpa [come apenas vegetais]. Que não é limpa: peba, camambá e o tatu também não é muito limpo não. O que é limpo: tamanduá, cotia, veado, cágado... o caetu [caetetu] já não é. Peba come todo bicho. Tatu come todo inseto, já matei muito tatu com o fado dele cheio de piolho de cobra, lacraio... e o peba come carniça, mas é bom o cabra. O gado não sua... só bicho que sua é jumento e cavalo... o bode não sua... aquele suor que vem do jumento solta da carne... que nem o cavalo que solta aquele suor fedorento... o bode não sua porque a carne é limpa. Camaleão é limpo... só come folha... que nem cágado, jabuti do mato... faz até pena matar o bichinho. Só que tá acabada a caça daqui... as obras aceleraram esse processo de desmatamento... desmataram 5 quilômetros ao redor de todo o canal... 2,5 quilômetros de cada lado do canal... sem falar na tomada d'água... tiraram as árvores, as madeiras, até brauna tinha... tudo aí jogada na terra se acabando... aí não fica nada... sem madeira, não tem caça; com seca, sem conseguir plantar, sem mel... como o povo tá se virando? Leva custo... completando três anos de seca... cartão bolsa família... levando a vida devagarzinho."
Expedito, pajé Pipipan.

Este texto é parte da reportagem Transposição do São Francisco ameaça terras indígenas. Por Renata Bessi, especial para a Repórter Brasil

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