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A transposição do Rio São Francisco

FSP, Brasil, p. A18
Autor: AB'SABER, Aziz; BRITO, Pedro
20 de Fev de 2005

A transposição do Rio São Francisco

Contra

A quem serve a transposição?

Aziz Ab'Sáber
Especial para a Folha

É compreensível que em um país de dimensões tão grandiosas, no contexto da tropicalidade, surjam muitas idéias e propostas incompletas para atenuar ou procurar resolver problemas de regiões críticas. Entretanto, é impossível tolerar propostas demagógicas de pseudotécnicos não preparados para prever os múltiplos impactos sociais, econômicos e ecológicos de projetos teimosamente enfatizados. Tem faltado a eventuais membros do primeiro escalão dos governos qualquer compromisso com planificação metódica e integrativa, baseada em bons conhecimentos sobre o mundo real de uma sociedade prenhe de desigualdades. Nesse sentido, bons projetos são todos aqueles que possam atender às expectativas de todas as classes sociais regionais, de modo equilibrado e justo, longe de favorecer apenas alguns especuladores contumazes. Pessoalmente, estou cansado de ouvir propostas ocasionais, mal pensadas, dirigidas a altas lideranças governamentais.
Nas discussões que ora se travam sobre a questão da transposição de águas do São Francisco para o setor norte do Nordeste Seco, existem alguns argumentos tão fantasiosos e mentirosos que merecem ser corrigidos em primeiro lugar. Referimo-nos ao fato de que a transposição das águas resolveria os grandes problemas sociais existentes na região semi-árida do Brasil. Trata-se de um argumento completamente infeliz lançado por alguém que sabe de antemão que os brasileiros extra-nordestinos desconhecem a realidade dos espaços físicos, sociais, ecológicos e políticos do grande Nordeste do país, onde se encontra a região semi-árida mais povoada do mundo.
O Nordeste Seco, delimitado pelo espaço até onde se estendem as caatingas e os rios intermitentes, sazonários e exoreicos (que chegam ao mar), abrange um espaço fisiográfico socioambiental da ordem de 750.000 quilômetros quadrados, enquanto a área que pretensamente receberá grandes benefícios abrange dois projetos lineares que somam apenas alguns milhares de quilômetros nas bacias do rio Jaguaribe (Ceará) e Piranhas/Açu, no Rio Grande do Norte. Portanto, dizer que o projeto de transposição de águas do São Francisco para além Araripe vai resolver problemas do espaço total do semi-árido brasileiro não passa de uma distorção falaciosa.
Um problema essencial na discussão das questões envolvidas no projeto de transposição de águas do São Francisco para os rios do Ceará e Rio Grande do Norte diz respeito ao equilíbrio que deveria ser mantido entre as águas que seriam obrigatórias para as importantíssimas hidrelétricas já implantadas no médio/baixo vale do rio -Paulo Afonso, Itaparica, Xingó. Devendo ser registrado que as barragens ali implantadas são fatos pontuais, mas a energia ali produzida, e transmitida para todo o Nordeste, constitui um tipo de planejamento da mais alta relevância para o espaço total da região. De forma que o novo projeto não pode, em hipótese alguma, prejudicar o mais antigo, que reconhecidamente é de uma importância areolar. Mas parece que ninguém no Brasil se preocupa em saber nada de planejamentos pontuais, lineares e areolares. Nem tampouco em saber quanto o projeto de interesse macrorregional vai interessar para os projetos lineares em pauta.
Segue-se na ordem dos tratamentos exigidos pela idéia de transpor águas do São Francisco para além Araripe a questão essencial a ser feita para políticos, técnicos acoplados e demagogos: a quem vai servir a transposição das águas? Uma interrogação indispensável em qualquer projeto que envolve grandes recursos, sensibilidade social e honestas aplicações dos métodos disponíveis para previsão de impactos. Os "vazanteiros" que fazem horticultura no leito dos rios que "cortam" -que perdem fluxo durante o ano- serão os primeiros a ser totalmente prejudicados. Mas os técnicos insensíveis dirão com enfado: "A cultura de vazante já era". Sem ao menos dar qualquer prioridade para a realocação dos heróis que abastecem as feiras dos sertões. A eles se deve conceder a prioridade maior em relação aos espaços irrigáveis que viessem a ser identificados e implantados. De imediato, porém, serão os fazendeiros pecuaristas da beira alta e colinas sertanejas que terão água disponível para o gado, nos cinco ou seis meses que os rios da região não correm. É possível termos água disponível para o gado e continuarmos com pouca água para o homem habitante do sertão. Nesse sentido, os maiores beneficiários serão os proprietários de terra, residentes longe, em apartamentos luxuosos em grandes centros urbanos.
Sobre a viabilidade ambiental pouca coisa se pode adiantar, a não ser a falta de conhecimentos sobre a dinâmica climática e a periodicidade do rio que vai perder água e dos rios intermitentes-sazonários que vão receber filetes das águas transpostas. Um projeto inteligente e viável sobre transposição de águas, captação e utilização de águas da estação chuvosa e multiplicação de poços ou cisternas tem que envolver obrigatoriamente conhecimento sobre a dinâmica climática regional do Nordeste. No caso de projetos de transposição de águas, há de ter consciência que o período de maior necessidade será aquele que os rios sertanejos intermitentes perdem correnteza por cinco a sete meses. Trata-se porém do mesmo período que o rio São Francisco torna-se menos volumoso e mais esquálido. Entretanto, é nesta época do ano que haverá maior necessidade de reservas do mesmo para hidrelétricas regionais. Trata-se de um impasse paradoxal, do qual, até agora, não se falou.
Por outro lado, se esta água tiver que ser elevada ao chegar a região final de seu uso, para desde um ponto mais alto descer e promover alguma irrigação por gravidade, o processo todo aumentará ainda mais a demanda regional por energia. E, ainda noutra direção, como se evitará uma grande evaporação desta água que atravessará o domínio da caatinga, onde o índice de evaporação é o maior de todos? Eis outro ponto obscuro, não tratado pelos arautos da transposição.
A afoiteza com que se está pressionando o governo para se conceder grandes verbas para início das obras de transposição das águas do São Francisco terá conseqüências imediatas para os especuladores de todos os naipes. Existindo dinheiro - em uma época de escassez generalizada para projetos necessários e de valor certo -, todos julgam que deve ser democrática a oferta de serviços, se possível bem rentosos. Será assim, repetindo fatos do passado, que acontecerá a disputa pelos R$ 2 bilhões pretendidos para o começo das obras.
O risco final é que, atravessando acidentes geográficos consideráveis, como a elevação da escarpa sul da chapada do Araripe -com grande gasto de energia!-, a transposição acabe por significar apenas um canal tímido de água, de duvidosa validade econômica e interesse social, de grande custo, e que acabaria, sobretudo, por movimentar o mercado especulativo, da terra e da política. No fim, tudo apareceria como o movimento geral de transformar todo o espaço em mercadoria.

Aziz Ab'Sáber, 80, é geógrafo, professor-emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e professor convidado do Instituto de Estudos Avançados da USP.

A favor

Água para todos

Pedro Brito
Especial para a Folha

O Projeto de Integração da Bacia do São Francisco às Bacias dos rios intermitentes do Nordeste Setentrional tem um claro e importante objetivo: dar segurança hídrica a uma população de 12 milhões de pessoas e permitir o desenvolvimento social e econômico da região. O projeto pretende captar continuamente, para o consumo humano e animal, 26 m3/s, ou seja, 1% da água que o rio joga no mar. Quando, e só quando, a barragem de Sobradinho (a jusante da qual a captação será feita) estiver cheia ou vertendo, o volume captado poderá alcançar até 114m3/s, ou seja, 2,5% do que vai para o oceano. A água será levada por dois canais um na direção norte, outro na direção leste até os açudes estratégicos já existentes em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, a partir dos quais e por rede de adutoras já construídas ou em construção ela abastecerá pequenas, médias e grandes cidades daqueles Estados.
O projeto não terá qualquer impacto ambiental negativo acima ou abaixo da barragem de Sobradinho. Pelo contrário, pela primeira vez na história do rio, há em execução um programa de revitalização ambiental da bacia do São Francisco, beneficiando, principalmente, Minas Gerais, onde ele nasce na Serra da Canastra e onde se localizam seus principais focos de degradação as usinas mineiras que produzem gusa derrubam árvores e as utilizam como carvão. O orçamento de 2005 dos ministérios da Integração Nacional e do Meio Ambiente tem dotações de R$ 100 milhões com essa finalidade. O Ministério das Cidades vem investindo R$ 620 milhões em projetos de saneamento básico e de abastecimento de água em 86 cidades da bacia do São Francisco, cuja revitalização é um trabalho de longo prazo e de responsabilidade dos governos da união e dos estados e municípios que a integram.
A intregação de bacias permitirá a sinergia hídrica, ou seja, grande parte da água dos açudes que hoje se perde pela evaporação, nos anos secos, ou pelo vertimento, em anos chuvosos, será aproveitada permanentemente para diferentes usos. Assim, os açudes não precisarão mais permanecer cheios na expectativa de que o próximo ano será de seca. Quando eles forem recarregados pela água das chuvas, as bombas do projeto serão desligadas e só serão religadas quando isto se fizer necessário, ou seja, nos anos secos. Esta é a grande inovação do projeto São Francisco.
Há mais inovação: para evitar a especulação fundiária, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva baixou decreto, considerando de utilidade pública para efeito de desapropriação com fim social, 2,5 km de terras nas margens direita e esquerda dos dois canais. Essa área, de cerca de 350 mil hectares, 50 mil dos quais próprias para a agricultura, será utilizada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário para projetos de reforma agrária. Ao longo dos canais norte e leste serão instalados grandes chafarizes, que abastecerão, gratuitamente, 400 pequenas comunidades.
Os opositores do projeto, alguns por desinformação, outros por má fé, afirmam que o seu custo é muito caro e que o governo teria melhor resultado se aplicasse esses recursos em programas de cisternas e de perfuração de poços. A verdade é a seguinte: na primeira etapa do projeto, que é a mais importante, serão investidos R$ 4,5 bilhões. Isto representa o custo social de duas secas e quer dizer, muito claramente, que a pior opção é não executar o projeto de integração de bacias. Para atender as populações dispersas, o governo já vem executando o programa de construção de um milhão de cisternas, o de perfuração de poços e o de construção de pequenos reservatórios. O projeto São Francisco, vale repetir, destina-se a levar água para os centros urbanos do semi-árido setentrional, livrando-os dos constrangimentos do racionamento. Campina Grande, segunda maior cidade da Paraíba, com quase meio milhão de habitantes, sofre há anos esse constrangimento.
Também alaerdeiam os opositores que o rio não dispõe da água necessária à operação do projeto. É outra inverdade: a Agência Nacional de Águas (ANA), que, por lei, é a responsável pelas outorgas de água, já disse o contrário. Além disso, a ANA está revendo cada uma das outorgas já concedidas, uma vez que várias delas já caducaram e talvez não sejam renovadas porque nunca foram usadas. Outra acusação dos opositores insinua que a tarifa da água a ser cobrada dos usuários, quando o projeto estiver em operação, "será a mais cara do mundo". Aqui não se trata de desinformação, mas de pura má fé: o custo de operação do projeto está estimado em R$ 0,11 por metro cúbico. Exatamente: onze centavos de real. Para que se tenha uma idéia do que isto significa, basta dizer que em Múrcia, na Espanha, onde se fez a integração do rio Tajo (o mesmo rio Tejo que banha Portugal) com bacias de outras regiões espanholas, o custo da água é de 15 centavos de euro por metro cúbico, ou seja, quatro vezes mais.
Em resumo: o projeto é tecnicamente perfeito, socialmente justo e ambientalmente sustentável.

Pedro Brito, economista, é chefe de gabinete do ministro da Integração Nacional e coordenador-geral do Projeto São Francisco.

FSP, 20/02/2005, Brasil, p. A18

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