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A transposição da truculência

FSP, Tendências:Debates, p. A3
Autor: BORGES, César Augusto Rabello
21 de Dez de 2005

A transposição da truculência

César Borges

Incrível como uma publicação técnica pode merecer reação tão descabida como foi o artigo "Águas, erros e omissões", do chefe-de-gabinete do Ministério da Integração Nacional (MIN), Pedro Brito, publicado em "Tendências/Debates" no dia 7/12. Para defender o projeto de transposição das águas do rio São Francisco, o dirigente agride a lógica, a elegância e as normas do debate científico.
Seu alvo principal são os técnicos do Banco Mundial (Bird) que participam do sétimo volume da série "Água Brasil", cujo tema é "Transferência de Águas entre Bacias Hidrográficas". É um trabalho bem fundamentado, como todos dessa série, e, portanto, merecedor de uma interlocução mais respeitosa. Ele pode ser lido no endereço www.obancomundial.org/index.php/
content/view-document/1542.html.
À falta de melhor argumentação, o chefe-de-gabinete classifica a publicação como "exemplo de má-fé" e acusa os funcionários do Banco Mundial de usarem "informações técnicas distorcidas" com a intenção de "confundir o debate" sobre o projeto de transposição. Sobra até para meu Estado, a Bahia.
Maldoso, diz que o Estado não implantou comitês de bacia nos seus rios e, ainda assim, conseguiu aprovar financiamentos para projetos de recursos hídricos junto ao Banco Mundial.É uma intriga desleal: a Bahia é uma das referências no setor, com cinco comitês instalados (nas bacias leste, do Salitre, do Paraguaçu, do Itapicuru e do Recôncavo Norte). Tanto assim que acabou de sediar o congresso brasileiro de comitês de bacias.
A agressividade do chefe-de-gabinete tem outra explicação: é preciso interditar o debate técnico-científico sobre a transposição do rio São Francisco, no qual o governo Lula tem levado grande desvantagem. Entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e técnicos de renome, inclusive dos Estados beneficiados pelo projeto de transposição, têm se colocado contra a idéia.
As análises do Bird poderiam até socorrer o governo, mas são desqualificadas pelo próprio MIN. E a autoridade desses técnicos para o debate do tema é evidente. Afinal, é público que o banco tem expertise internacional no aproveitamento de recursos hídricos em prol da redução da pobreza. Além disso, o organismo se debruça sobre a transposição desde o governo Fernando Henrique Cardoso.
Os dirigentes do MIN se irritam porque não podem sustentar a efetiva necessidade do projeto de transposição tal como está sendo imposto ao país. Os estudos apontam que apenas a região atendida pelo chamado eixo leste do projeto nos Estados de Pernambuco e Paraíba apresenta iminente esgotamento das disponibilidades hídricas para atender o crescimento de demanda.
O eixo norte, cujo principal beneficiário é o Ceará, Estado do ministro Ciro Gomes, esgotaria suas disponibilidades para além de 2030, levando em conta o consumo doméstico, consumo difuso e mais irrigação existente. Tanto é assim que seu foco é empresarial, e a irrigação responde por 57,4% da demanda de água total no atual projeto da transposição. Essa informação é sempre omitida.
Mesmo o custo do projeto, avaliado em R$ 4,5 milhões, é irreal, porque não inclui os custos adicionais de transporte de água até o usuário final e os projetos complementares, como os das áreas irrigadas. O custo real permitiria contraposição com os benefícios totais estimados, e por isso permanece oculto.
Na parte ambiental, o MIN trabalhou para avaliar apenas o impacto positivo da transposição. O relatório de impacto não resiste a uma simples leitura nem sequer nos diz sobre as conseqüências do projeto para o desenvolvimento futuro da região doadora, que está sendo preterido. Também nada se sabe sobre os efeitos da transposição para a ecologia do baixo São Francisco.
Aliás, outro sofisma é incluir a revitalização do São Francisco, uma obrigação federal, como uma compensação para os Estados doadores. Estes não querem compensação, querem o arquivamento do projeto de transposição do rio e a continuação do processo de revitalização, que é uma imposição legal.
O governo diz que reabriu o debate, mas somente o debate a favor, como se vê. Enquanto isso, continua a desapropriar terras e construir estradas no ponto de captação do projeto, por meio do batalhão de engenharia do Exército.
Isso, sim, é má-fé. Má-fé contra o bispo dom frei Luiz Flávio Cappio, que acreditou na palavra do governo e cessou sua greve de fome. Má-fé contra o país, que espera um debate qualificado. E má-fé contra os Estados doadores.

César Augusto Rabello Borges, 57, engenheiro civil, é senador pelo PFL da Bahia. Foi governador da Bahia (1999-2002), vice-governador (1995-98) e secretário de Recursos Hídricos, Saneamentos e Habitação do Estado (1991-94).

FSP, 21/12/2005, Tendências:Debates, p. A3

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