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'Transamazônica' mostra desastre da ditadura

Valor Econômico, Eu & Fim de Semana, p. 33
Autor: LABAKI, Amir
12 de Fev de 2021

'Transamazônica' mostra desastre da ditadura
Jorge Bodanzky e Fabiano Maciel dirigem série do HBO Mundi

Por Amir Labaki

Há algo de premonitório no registro da jornada didática por toda a Transamazônica realizada pelos cineastas Jorge Bodanzky e Fabiano Maciel há pouco mais de quatro anos para a série documental lançada ontem pela HBO Mundi. "Transamazônica - Uma Estrada Para o Passado" percorre em seis episódios de uma hora de duração os 4260 km da hoje rodovia BR230, que liga o porto de Cabedelo na Paraíba à cidade de Lábrea no Amazonas.
Iniciado antes da eleição de Jair Bolsonaro à Presidência, o projeto revela com contundência e sem histrionismo os pecados originais, tanto ideológicos como socioeconômicos, de uma das mais desastrosas obras da ditadura militar (1964-1985), cujos bases são apresentados como modelo para o atual governo federal.
O primeiro episódio, "Tudo Começa no Mar do Nordeste", relembra como o catalisador da empreitada foi uma viagem, em junho de 1970, do general-presidente Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) ao Nordeste devastado pela seca. O então ministro da Fazenda, Delfim Netto, testemunha que, chocado frente à miséria, o ditador teria dito: "Preciso abrir uma porteira para esta gente sair daqui". Surgiu a ideia de uma estrada para levar "os homens sem terra para uma terra sem homens". Segundo Delfim, a rodovia ligaria "um desespero à esperança. Mas", reconhece, "o desespero era verdade e a esperança fracassou".
Já em setembro do mesmo ano eram iniciadas as obras da Transamazônica, jamais terminadas. "Até hoje não se sabe quanto se gastou", explica Bodanzky no duplo papel de codiretor e narrador. "Algumas estimativas falam em US$ 2 bilhões do dinheiro da época. Dois bilhões para ligar a miséria ao nada".
Logo na sequência de abertura Bodanzky apresenta suas credenciais insuperáveis para guiar nossa viagem audiovisual. Em parceria com Orlando Senna, ele rodou no calor da hora (1974) o clássico docuficcional definitivo sobre a abertura da estrada, "Iracema, Uma Transa Amazônica". No quase meio século passado, Bodanzky jamais parou de visitar e documentar a Amazônia, em projetos para as mídias mais diversas. Assim, quando ele afirma ao fim de sua intervenção inicial, que "todos os problemas se agravaram", não há como descrer.
Os três episódios a que tive acesso da série estabelecem uma estrutura sólida e dinâmica. A caravana Bodanzky-Maciel percorre a Transamazônica parando nas principais cidades do trajeto, colhendo entrevistas sobre o impacto da estrada e o presente estado das coisas. Trechos de filmes institucionais da ditadura militar apresentam a versão oficial do regime. Entrevistas com testemunhas iluminam episódios específicos. A narração econômica de Bodanzky, aqui e ali temperada por recordações pessoais, cimenta tudo.
O primeiro episódio recupera as origens históricas e geográficas da estrada, enquanto percorre seu trecho inicial nordestino. No segundo, "Da Guerra de Guerrilha à Luta pela Terra", relembra-se a repressão brutal à guerrilha na região do Araguaia atravessada pela obra, assim como a posterior transformação da área em palco trágico, com episódios como o massacre de Eldorado da Carajás de 1996 e o assassinato da irmão Dorothy Stang em 2005. Já no terceiro, "Um Sonho de Brasil Novo", alcançando-se o rio Xingu, "o coração da Amazônia" segundo Bodanzky, aflora o desamparo oficial dos pequenos agricultores convencidos a transferir-se para os lotes à beira da nova estrada.
A série não se furta de retratar exemplos de sucesso familiar na transferência para a região, mesmo estes concordando, contudo, que o desenvolvimento feliz aconteceu apesar da omissão do poder público. Também contribuindo para matizar o quadro crítico geral, o trajeto da megalomania do passado cruza-se com outra dos tempos recentes, já da era petista.
"[A usina hidrelétrica de] Belo Monte é um desastre. Talvez o maior desastre previsto e anunciado da Amazônia", sustenta Bodanzky. Marcelo Salazar, do Instituto Socioambiental, complementa: "Belo Monte é para gerar caixa de campanha, não é um projeto para gerar energia".
Vencido meio percurso, o pesquisador Adalberto Veríssimo do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) adianta serenamente o diagnóstico da série: "A Transamazônica se revelou uma visão completamente desastrosa por desconhecer a realidade objetiva da Amazônia, do ponto de vista de recursos naturais, e também uma obra faraônica, caríssima, que nunca se completou. Então foi um projeto que teve resultados ambientais desastrosos e graves sequelas sociais que até hoje a região procura sarar".
Especial atenção merece o fecho de sua fala: "Os militares tinham uma visão muito simplificada da Amazônia. Entendiam que a floresta era um obstáculo ao desenvolvimento, um sinônimo de pobreza e de atraso. E que, de fato, sob aquela floresta exuberante, residia um solo fértil - o que é obviamente falso". Soa hoje familiar?

Por Amir Labaki Formado em Cinema pela ECA-USP, é diretor do É Tudo Verdade - Festival Internacional dos Documentários, que fundou em 1996. Foi por duas vezes diretor técnico do MIS-SP.

E-mail: labaki@etudoverdade.com.br
Site do festival: www.etudoverdade.com.br

https://valor.globo.com/eu-e/coluna/amir-labaki-transamazonica-mostra-d…

Valor Econômico, 12/02/2021, Eu & Fim de Semana, p. 33

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