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A Transamazônica e seu trágico legado

The Wall Street Journal - http://online.wsj.com
Autor: Johan Lyons
20 de Mai de 2014

Em um dia abafado de fevereiro, uma busca feita pela polícia em uma reserva indígena na Amazônia resultou numa descoberta aterradora: os corpos de três homens vistos pela última vez dirigindo em direção à reserva pela Transamazônica, a polêmica estrada que corta as profundezas da floresta desde a década de 70.

A descoberta gerou pistas sombrias em um caso de assassinato que colocou a cidade amazônica de Humaitá contra a reserva indígena Tenharim, 130 quilômetros ao leste. A polícia prendeu seis índios Tenharim, que foram acusados na semana passada de assassinato -os seis negam as acusações e aguardam julgamento. Em Humaitá, onde duas das vítimas moravam, a polícia diz que os habitantes se revoltaram e atearam fogo em uma clínica de saúde e uma agência de assistência social a indígenas. E ameaças de mais violência estão em todas as conversas, dizem residentes locais.

O triplo assassinato expõe um legado preocupante da rodovia amazônica. Quatro décadas depois de o governo brasileiro abrir quase 4.000 quilômetros de estrada no vasto interior da floresta, a Transamazônica continua a ser uma fonte de tensão entre os novos exploradores que vieram com ela e os índios que vivem em seu trajeto. E essas tensões transbordaram à medida que o Brasil dá um novo impulso para o desenvolvimento da maior floresta tropical do mundo.

Algumas dessas tensões estão vindo à tona agora porque a região Amazônica - que tem o mesmo tamanho que a Europa Ocidental - passou por um boom populacional notável, crescendo 50% em duas décadas, para 25 milhões de pessoas, à medida que minas e propriedades para a produção de gado e soja atraem migrantes. Trabalhadores chegam aqui para ajudar a pavimentar estradas e construir uma série de grandes hidrelétricas planejadas para os grandes rios da região.

Ao mesmo tempo, as populações indígenas, que já foram dizimadas por doenças, estão voltando a crescer. Com uma maior taxa de natalidade e melhor acesso a cuidados médicos, o número de índios vivendo em reservas está aumentando a um ritmo quase quatro vezes maior que a taxa anual de crescimento populacional em geral; interesses divergentes dessas duas populações colidiram em várias etapas do desenvolvimento da região.

A tribo Kayapó, que se opôs à Transamazônica, por exemplo, está liderando protestos contra a construção da gigantesca barragem de Belo Monte, perto da cidade de Altamira, onde a rodovia foi inaugurada em 1970. Mais a oeste na Transamazônica, perto da cidade de Jacareacanga, a tribo Munduruku formou milícias para expulsar garimpeiros ilegais de suas terras. A Polícia Federal diz que não monitora os números de crimes por disputas territoriais, mas o Conselho Indigenista Missionário, um grupo de defesa dos direitos dos índios da Igreja Católica que se opõe ao desenvolvimento da Amazônia, diz que cerca de 450 índios foram mortos entre 2003 e 2010, muitas vezes em brigas por direitos sobre questões de propriedade e outras disputas.

Lidar com os conflitos da Amazônia passou a ser prioridade para a presidente Dilma Rousseff, que prometeu durante a campanha há quatro anos levar mais desenvolvimento à Amazônia e tenta a reeleição este ano. No rescaldo dos assassinatos e do motim em Humaitá, Dilma mandou um general do exército e dezenas de soldados para manter a paz na pequena cidade.

Tal policiamento, porém, é raro na região, onde a justiça paralela pode ser tão relevante quanto a legal. Cerca de 250 agentes são responsáveis por cuidar dos crimes federais em todo o Estado do Amazonas, onde os assassinatos ocorreram.

Na verdade, os três homens assassinados ficaram desaparecidos por dez dias, até que a Polícia Federal dirigiu seis horas em estradas de terra e usou dois barcos para procurá-los na reserva. Isso ocorreu após moradores enfurecidos de Humaitá terem se insurgido para exigir uma investigação, diz a polícia, e ateado fogo na sede local da Fundação Nacional do Índio, a Funai, numa clínica de saúde para os índios, barcos e mais de dez caminhonetes, numa noite de incêndios que fez com que índios e funcionários da Funai fugissem para salvar suas vidas.

As tensões mais recentes "mostram bem tragicamente as complexidades do desenvolvimento moderno da Amazônia", diz o especialista na região David Cleary, do grupo de proteção ambiental The Nature Conservancy. Com as populações indígenas em expansão, diz ele, as relações com os colonos podem se tornar mais difíceis enquanto o papel que o governo desempenha não fica claro. "De repente, tudo sai do controle e as pessoas estão mortas."

Construída a um custo de US$ 500 milhões, pelo câmbio de hoje, a Transamazônica foi uma peça central para a estratégia do governo militar que comandou o país entre 1964 e 1985 para povoar a Amazônia com os pobres brasileiros. O slogan era "terra sem homens para homens sem terra". A percepção comum é que poucas tribos estavam no caminho da estrada.

"Se você voltar o filme, a crença era que os índios que [os construtores da estrada] poderiam encontrar pelo caminho seriam poucos e seriam rapidamente assimilados", diz Steve Schwartzman, diretor do Fundo de Defesa do Meio Ambiente, uma organização de Washington que trabalha com questões envolvendo conflitos na Amazônia desde os anos 80.

Essa percepção se mostrou um engano. A construção da rodovia incitou um desastre humanitário, à medida que índios de mais de uma dezena de tribos que viviam na rota da estrada começaram a morrer de gripe e outras doenças. A questão das doenças foi agravada pela escravidão por dívidas, prostituição e álcool, dizem antropólogos. Com o tempo, o governo brasileiro admitiu muitos dos erros, tentando corrigir alguns ao demarcar reservas indígenas. "Houve escravidão na abertura da Transamazônica, e morte", diz Antonio Tenharim, porta-voz da tribo Tenharim.

Hoje, os índios Tenharim têm um pé no passado e outro no presente. Em torno do vilarejo, os membros da tribo usam roupas ocidentais, mas falam sua própria língua. Os homens usam remos de canoas para mexer mandioca, que é assada em tonéis em grandes fogueiras. Não há serviço de telefonia disponível, mas um remoto transmissor pago pelo governo oferece ao vilarejo acesso à internet. A melhor forma de entrar em contato com os líderes Tenharim é pelo Facebook FB +1.37% .

Mas os líderes tribais dizem que eles também precisam de outras ferramentas atuais, como eletrodomésticos, combustível e educação superior. "Eu preferia viver isolado aqui", diz Humberto Tenharim, um membro da tribo de 24 anos que estava usando uma camiseta preta da banda de heavy metal White Snake. Mas como a rodovia trouxe mudanças, "os índios não podem viver exatamente como antes", diz ele. "Precisamos ir para a cidade para comprar comida, para comprar roupas, para estudar."

Ao longo dos anos, muitos índios da Amazônia conquistaram diplomas universitários e trabalham no setor governamental. Mas, precisando de dinheiro, algumas tribos fizeram alianças com madeireiros e mineradores de ouro ilegais, permitindo que atuassem em suas terras, dizem as autoridades. Em 2006, os índios Tenharim decidiram começar a cobrar um pedágio- US$ 30 por caminhão e US$ 10 por automóvel- na Transamazônica, nos pontos onde ela corta suas terras. O pedágio é ilegal, o que a tribo não questiona, mas diz que é justificável como compensação pelas doenças que a estrada trouxe. As autoridades acabam permitindo a situação.

Em Humaitá, a população local considera o pedágio uma extorsão. O pagamento reforça a opinião que os moradores têm de que as instituições governamentais, como as responsáveis pela aplicação das leis, ignoram a Amazônia. De acordo pessoas que dirigiram pela região, o ambiente na remota rodovia pode ser tenso, especialmente à noite, com jovens índios Tenharim circulando pela área, alguns consumindo bebidas alcoólicas e até mesmo portando armas.

Atualmente, a rodovia é um cenário de crimes. A polícia afirma que cinco integrantes da tribo balearam e enterraram três homens que chegaram a Humaitá na manhã de 16 de dezembro. Caio Paiva, o defensor público que representa os índios acusados, diz que o caso da polícia federal contra os seus clientes não é sustentável. Ele pretende questionar, por exemplo, a dependência dos investigadores da polícia de informantes anônimos em vez de provas concretas. "Nenhuma das evidências deles prova que esses homens mataram alguém", diz Paiva.

Situada na junção entre a Transamazônica e o Rio Madeira, a cidade de Humaitá é um centro movimentado que junta madeireiros, fazendeiros, garimpeiros, pescadores e outros colonos da região. Conforme crescem as tensões com os índios, a população local se queixa que os líderes Tenharim estão comprando caminhonetes caras, enquanto os índios dizem que sofrem com o racismo na cidade, onde alguns se referem à sua língua simplesmente como "Blablablalala".

A situação começou a se deteriorar em 2 de dezembro, quando o chefe Ivan Tenharim, de 45 anos, supostamente caiu da sua moto e morreu a caminho da sua casa, vindo de uma localidade conhecida como "180", no extremo leste da reserva. A polícia e os membros da tribo que encontraram o líder morto dizem que ele caiu da moto e bateu a cabeça.

Mas, enquanto lamentavam a morte de seu chefe, alguns membros da tribo começaram a especular se talvez os colonos que se opõem à cobrança do pedágio não tinham algo a ver com a sua morte, segundo pessoas que ouviram comentários a respeito.

Poucos dias após a morte, o diretor regional da Funai, Ivã Bocchini, escreveu um comunicado no site da fundação afirmando que a morte era suspeita. Numa coletiva de imprensa realizada posteriormente, militares que investigava o caso mencionaram o post, dizendo que poderiam ter ratificado as suspeitas da tribo sobre a morte do seu líder. A teoria dos investigadores é que a opinião de um alto funcionário da Funai tem um peso extraordinário entre os membros que dependem amplamente da entidade.

Em uma entrevista publicada em 9 de fevereiro pela revista Carta Capital, Bocchini disse que nunca afirmou que o líder tinha sido assassinado. Em vez disso, disse que seu "texto tentou dar voz aos índios", o que afirma que era uma obrigação do seu trabalho. As autoridades da Funai não permitiram que Bocchini fizesse comentários adicionais.

A polícia alega que, apenas uma semana após o comunicado de Bocchini, um índio Tenharim matou três colonos que pararam no pedágio num Volkswagen VOW3.XE +1.17% preto de quatro portas. Apesar de mal se conhecerem, as vítimas eram todas chefes de família que trabalhavam no setor de serviços que está tomando corpo em Humaitá - e que contraria a típica imagem de uma terra de madeireiros ou fazendeiros.

Stef Pinheiro, um professor de 43 anos, estava dirigindo seu primeiro carro, o Volkswagen preto, comprado um dia antes em Humaitá. "Era a primeira vez que Stef estava dirigindo seu próprio carro na Transamazônica", disse a viúva da vítima, Irisnea Azevedo, de 36 anos.

No banco do passageiro estava Luciano Freire, um vendedor de 29 anos que tinha ajudado a fechar a compra do carro. No banco traseiro estava Aldeney Ribeiro, gerente da companhia de energia local. Ribeiro tinha pegado carona com os demais em uma balsa, cerca de uma hora antes.

Dar carona a Ribeiro pode ter sido uma decisão fatal. De acordo com a decisão de um juiz que recusou o pedido de fiança dos cinco acusados no caso, a polícia alega que um olheiro Tenharim o escolheu como um possível alvo de vingança, enquanto Ribeiro aguardava pela balsa na Transamazônica. Pelo rádio, passou informações sobre o carro com o qual ele entrou nas terras da tribo.

A Polícia Federal e os promotores se recusaram a comentar porque o caso corre em segredo. Carlos Terrinha, advogado das famílias das vítimas, diz que Ribeiro se tornou um alvo porque ele era conhecido na tribo e já tinha sofrido ameaças dos índios antes, quando tentou cobrar a tarifa pelo uso de eletricidade. Os integrantes da tribo dizem que os índios não têm nenhum envolvimento com os assassinatos.

A noite de Natal chegou e Ribeiro já estava desaparecido há mais de uma semana. As autoridades de Humaitá afirmaram que pediram à Polícia Federal para que fizesse buscas na reserva. Receberam como resposta que não haveria ninguém disponível antes do Ano Novo, segundo Terrinha. A Polícia Federal não quis comentar.

Fartos, os moradores de Humaitá se rebelaram no dia de Natal. No dia seguinte, um grupo de colonos da região chamada "180" incendiou o posto de pedágio, o que fez com que policiais e soldados fossem para o local no dia seguinte. Poucos dias depois, a equipe de busca encontrou partes do carro na reserva. Após outro mês, com um cão farejador de cadáveres procurando as vítimas na lama, os corpos foram encontrados.

Agora, a missão é aliviar a tensão entre os índios que temem ir à cidade e os colonos receosos de cruzar a Transamazônica. Por ordem da presidente Dilma, o Exército desativou o pedágio depois que os corpos foram encontrados. Liderados pelo coronel Marcio de Gôyes Alves, que comanda a divisão regional do Exército, um grupo de soldados fez a segurança de 45 índios Tenharim enquanto eles faziam compras e outros serviços em Humaitá. Os militares portavam rifles, sinalizando à população que os índios não deviam ser deixados em paz.

O coronel Alves diz que acredita que a paz voltará a reinar em breve na região. Mas Terrinha, o advogado, não tem tanta certeza. Ele tem receio do que pode ocorrer quando os homens armados se forem. "Meu medo, infelizmente, é que deve haver alguns acertos de contas", diz.

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