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A Transamazônica de Lula

CB, Brasil, p. 20-22
21 de Nov de 2004

A Transamazônica de Lula
Projeto de US$ 1,5 bilhão, que tem a intenção de levar água para população nordestina que sofre com a seca, vai beneficiar principalmente um campo de exploração de petróleo e empresas de camarão
Bernardino Furtado
Do Estado de Minas

Em 1971, o governo militar do presidente Médici respondeu a uma grande seca do Nordeste com a construção da rodovia Transamazônica. A estrada serviria de eixo para um amplo assentamento de nordestinos flagelados pela seca na vasta região úmida do Pará e do Amazonas. Em 2004, o governo Lula, eleito pela maioria da população brasileira, quer fazer a estrada das águas, uma idéia recorrente que brotou pela primeira vez nos gabinetes do poder central no reinado de Pedro II, na década de 1850, também para dar resposta a uma grande seca. A lógica da transposição do rio São Francisco guarda várias semelhanças com a da Transamazônica. É um projeto caro, avaliado em US$ 1,5 bilhão na sua parte principal, produzirá uma grande intervenção na natureza e sua condução revela um vezo autoritário, pois ignora críticas de profissionais e acadêmicos respeitáveis, de governos estaduais, além da legítima resistência de uma numerosa população atingida.
No próximo 30 de novembro, numa única reunião do Conselho Nacional dos Recursos Hídricos (CNRH), em Brasília, o governo federal pretende obter o aval para fazer a obra da transposição. Tem pressa porque quer gastar R$ 1,1 bilhão no projeto logo no primeiro ano, em 2005. O governo tem maioria no CNRH: 29 dos 56 conselheiros são representantes de órgãos federais escolhidos a dedo. A votação é uma forma de neutralizar a oposição do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) que, no último 27 de outubro, em Salvador, rejeitou a transposição por 42 votos a quatro.
A tratorada do governo no CBHSF vai parar na Justiça. Os comitês de bacia foram criados pela Lei das Águas, de 1997. O CBHSF foi instituído por decreto presidencial de 2001. Tem representantes do próprio governo federal, dos governos estaduais, prefeituras, empresas consumidoras de água, como as geradoras de eletricidade, universidades, associações profissionais e organizações não-governamentais ligadas ao meio ambiente, entre outras. Pela lei, os comitês têm a atribuição de definir critérios e limites de uso da água das bacias. Portanto, ao decidir vetar a transposição do rio para uso industrial e na irrigação, depois de realizar cinco consultas públicas em cidades da Bacia do São Francisco, o comitê cumpriu seu papel legal.
Na reunião de Salvador, o CBHSF instaurou um processo administrativo para analisar e decidir sobre o conflito de uso das águas na bacia provocado pela retirada de água do São Francisco para a transposição. Se o CNRH decidir passar por cima da decisão do comitê, estaria suprimindo uma instância administrativa, prevista no devido processo legal.É o princípio que garante ao cidadão multado pela Receita Federal, por exemplo, recorrer ao conselho de contribuintes local, depois ao conselho federal para só então, em caso de derrota, buscar a Justiça.
O embate da transposição não é burocrático. Está em jogo o ecossistema, a economia dos estados e o conforto da população. O rio e sua bacia têm um volume de água global. Se água é retirada além de um certo limite pode-se, numa situação drástica, secá-lo antes que ele chegue à foz. O rio São Francisco tem seu limite, representado por uma vazão média de aproximadamente 1.860 metros cúbicos de água por segundo depois do lago de Sobradinho.
Para manter as condições ecológicas na foz e na zona costeira, o comitê fixou um valor médio de 1.500 metros cúbicos por segundo a ser despejados no Oceano Atlântico. Sobram 360 metros cúbicos por segundo para serem usados para abastecimento residencial, matar a sede de animais, para irrigação e para indústrias. É desse bolo que a transposição do São Francisco pretende tirar uma fatia máxima de 127 metros cúbicos por segundo e média de 63,5 metros cúbicos por segundo para levar para as bacias do Jaguaribe, no Ceará, do Apodi e do Piranhas- Assu, no Rio Grande do Norte e na Paraíba, e do rio Paraíba, na Paraíba.
A mordida da transposição não é pequena. A Região Metropolitana de Belo Horizonte, com seus 4 milhões de habitantes e um parque industrial considerável, consome 15 metros cúbicos por segundo. Há um agravante. Dos 360 metros cúbicos por segundo disponíveis na bacia do São Francisco, 335 metros cúbicos por segundo estão prometidos a projetos ainda não iniciados ou em andamento de irrigação, pecuária, indústrias e abastecimento de residências. Trata-se da soma das outorgas já concedidas pela Agência Nacional de Águas (ANA) e pelos órgãos estaduais responsáveis pelos afluentes do São Francisco, a exemplo do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam).
Fazer a transposição num volume de 25 metros cúbicos por segundo significaria esgotar a possibilidade de novos projetos econômicos de uso de água nos estados da bacia. Se for concretizado o valor médio de 63,5 metros cúbicos por segundo, será necessário deslocar projetos já estabelecidos.
A irrigação no Jaíba, norte de Minas, por exemplo, consome atualmente no máximo 18 metros cúbicos por segundo. O projeto, contudo, prevê uma expansão, já outorgada, para 80 metros cúbicos por segundo. Na Bahia, a irrigação do Baixio de Irecê, tem uma outorga inicial de 10 metros cúbicos por segundo e outros 50 metros cúbicos por segundo para expansão. No entanto, as obras do Baixio de Irecê nem sequer começaram por falta de recursos.
É esse conflito que o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco quer examinar em profundidade antes que se decida conceder uma outorga de até 127 metros cúbicos por segundo para a transposição de um rio combalido pela poluição.
Grandes projetos
O outro lado da moeda é a necessidade e a racionalidade dos usos da água nos estados receptores. Numa viagem de carro de 3.700 quilômetros em nove dias pelos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, o Estado de Minas e o Correio Braziliense constataram que a água do São Francisco está mais próxima de grandes negócios, como uma refinaria de petróleo para o Ceará e a expansão dos viveiros de camarão no Rio Grande do Norte, do que das canecas dos sedentos cearenses do sertão dos Inhamuns e potiguares do Sertão do Seridó, excluídos do desenho dos grandes canais. A viagem revela também que a miséria no Baixo São Francisco aguarda obras bem mais modestas de distribuição de água do próprio rio em Sergipe e Alagoas.
Não existe água de graça. Além da cifra de US$ 1,5 bilhão nas obras básicas, será preciso gastar uma fortuna em energia elétrica anualmente para bombear água. São 304 metros de desnível no Eixo Leste, que atende à Paraíba, e 165 metros no Eixo Norte (Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará).
Se os empresários de irrigação e criadores de camarão não conseguirem pagar esse preço, a conta será apresentada à sociedade brasileira.

Fartura vale da pobreza tem, petróleo e camarão
No Vale do Rio Assu, no Rio Grande do Norte, região que será beneficiada pelo projeto, não há sinal de miséria na paisagem. O que se vê são bombas de exploração de petróleo e criatórios de camarão Assu (RN) - Nada melhor do que uma visita ao Vale do Rio Assu, no Rio Grande do Norte, para derrubar o argumento de que a transposição do rio São Francisco vai levar água para uma população sedenta e miserável. A começar pela onipresença dos cavalinhos, como são chamadas pela população local as bombas de petróleo da Petrobras. Com seu movimento pendular interminável e silencioso, os cavalinhos estão nas margens do rio, no meio das plantações de banana irrigadas e nas imediações dos vastos tanques de criação de camarão. É o maior campo terrestre de óleo e gás da Petrobras no Brasil e está em expansão.
O rio Assu é o continuador do rio Piranhas, abaixo da gigantesca barragem Engenheiro Armando Gonçalves. Construída pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), foi, até a inauguração do Castanhão, no Ceará, em 2003, o maior açude do Nordeste. Tem capacidade para 2,4 bilhões de metros cúbicos e sangrou no início de 2004, ou seja, despejou água pelo vertedouro porque o nível de acumulação seguro foi ultrapassado.
A fartura de água não pôde ser aproveitada nos meses secos que se seguiram pelos agricultores do Perímetro de Irrigação Baixo Assu, também um projeto federal. Uma dívida de R$ 2 milhões em contas de energia levou a Cosern, a distribuidora de eletricidade do Rio Grande do Norte, a cortar o fornecimento para as bombas que alimentam os canais do Baixo Assu, no município de Alto do Rodrigues. O bombeamento só foi retomado no segundo semestre deste ano por força de uma liminar judicial, mas não há solução à vista para o débito.
A inadimplência assusta quando se considera que os gastos de energia no bombeamento são relativamente baixos já que o desnível existente entre o rio Assu e os canais de irrigação não passa de 20 metros. Imagine usar água da transposição do Rio São Francisco, que terá de superar um desnível de 165 metros no Eixo Norte, canal que servirá à bacia do Piranhas - Assu.
O agricultor Janilson Araújo de Macedo diz que a dívida de energia do Perímetro Baixo Assu é impagável. Ele faz parte da segunda geração de produtores do Baixo Assu. Chegou há seis anos da Paraíba, onde plantava banana e pimentão abaixo da parede do Açude Epitácio Pessoa, o Boqueirão. A seca rigorosa de 1998 levou o abastecimento de água de Campina Grande a um colapso. Para amenizar o problema, foi interrompida a agricultura irrigada no Boqueirão, principal fonte de abastecimento da segunda cidade mais populosa da Paraíba.
No mesmo ano de 1998, Janilson comprou por R$ 6 mil o direito de posse de um lote no Baixo Assu de um agricultor que desistiu da empreitada. Nos anos seguintes, comprou mais dois lotes, por R$ 12 mil e por R$ 20 mil. Nesse período, a dívida de eletricidade do Baixo Assu estava em crescimento. Deram lotes, créditos subsidiados, casas e infra-estrutura para pessoas que não tinham vocação para a agricultura, interpreta o agricultor.
Segundo Janilson, boa parte dos lotes foram salinizados por excesso de irrigação e falta de obras de drenagem. Encharcaram a terra e o sal do subsolo subiu para a superfície, explica. Ele mesmo reconhece que precisa ampliar as valas de drenagem nos seus lotes.
O Baixo Assu foi projetado, numa primeira etapa, para irrigar 3 mil hectares, mas menos da metade dessa área está sendo cultivada atualmente. O governo do Rio Grande do Norte tem um projeto para ampliar as plantações irrigadas para 8 mil hectares, com base apenas na capacidade de suprimento atual da Barragem Engenheiro Armando Gonçalves. No Relatório de Impacto Ambiental da Transposição do São Francisco, estima-se um crescimento da irrigação no Vale do Assu para 22 mil hectares.
Polígono do Camarão
O Vale do Assu é também chamado de Polígono do Camarão. É uma cultura que consome no mínimo duas vezes mais água do que a agricultura irrigada. O estado do Rio Grande do Norte consome atualmente 32 metros cúbicos por segundo de água. Cerca de um terço desse volume, 11,11 metros cúbicos por segundo, é absorvido pelos criatórios do crustáceo, o principal produto de exportação do estado. A agricultura irrigada leva 14,5 metros cúbicos por segundo.
Já a área da Petrobras no Vale do Assu rendeu em 2004 uma média 22.492 barris de óleo por dia, correspondentes a 9% da produção nacional em campos terrestres. As operações compreendem os municípios de Alto do Rodrigues, Macau, Assu, Guamaré, Pendências, Carnaubais e Porto do Mangue, que faturaram até outubro, a título de royalties pela produção de petróleo, cerca de R$ 43 milhões. A Petrobras tem na região 347 empregados próprios. Empreiteiras contratadas pela estatal asseguram mais 1.740 postos de trabalho.
R$ 2 Mil dívida que os agricultores do perímetro irrigado do baixo Assu têm com a distribuidora de energia do Rio Grande do Norte
22 MIL hectares estimativa de crescimento da irrigação no Vale do Assu segundo relatório de impacto ambiental da transposição do São Francisco.
2,4 BI de metros cúbicos capacidade da Barragem Engenheiro Armando Gonçalves, a segunda maior do nordeste , onde chegarão as Águas transpostas do São Francisco

CB, 21/11/2004, Brasil, p. 20-22

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