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A trágica defesa da alma indígena

OESP, Caderno 2, p. D2
03 de Mar de 2004

A trágica defesa da alma indígena
Livro narra o trabalho de Las Casas, missionário que lutou contra o extermíninio colonial

UBIRATAN BRASIL

As histórias da trágica conquista da América, no século 16, têm rendido obras importantes. No fim do ano, a Companhia das Letras lançou a A Controvérsia, em que Jean-Claude Carrière romanceia a célebre disputa verbal entre Bartolomé de las Casas, missionário coerente e sistemático, disposto a provar que os índios tinham alma, e o teólogo Juan Ginés de Sepúlveda, padre da alta hierarquia da Igreja, versado na arte da retórica, e que, aristotélico, tentava demonstrar que os indígenas não eram filhos de Deus.
O assunto também interessou o historiador José Alves de Freitas Neto, que se debruçou, porém, apenas sobre o discurso de Las Casas. O resultado de sua pesquisa é Bartolomé de Las Casas - A Narrativa Trágica, o Amor Cristão e a Memória Americana (Annablume), que será lançado hoje à noite, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional.
No início da colonização, tanto espanhola como portuguesa, os índios eram dizimados com naturalidade pois, segundo a mentalidade da época, não tinham alma. O próprio Las Casas seguia essa crença até que, em 1511, depois de uma celebração litúrgica, passou a enxergar os indígenas sob um novo ponto de vista - ele passou a interpretar o conceito de vítima apresentado na Bíblia para encontrar o motivo de pregar contra o extermínio indígena.
Assim, na difícil tarefa de defender os nativos americanos, Las Casas utilizou um código conhecido da tradição ocidental, herança da cultura grega, que foi recorrer ao trágico para expressar sua visão daquela realidade. Freitas Neto utilizou, em seu trabalho, dois textos de Las Casas:
História das Índias e Brevíssima Relação da Destruição das Índias. "Ele absorveu parte dos elementos trágicos ao apresentar uma visão do índio como sendo dócil, manso, servil e pacífico, que sofria com a cobiça e a ação dos encomenderos", afirma o historiador. "A denúncia por ele apresentada à Coroa era sua forma de assumir os compromissos de sua visão religiosa." Assim, os índios, vítimas inocentes, poderiam ser redimidos com a implantação de um outro modelo colonizador, em que o reino de Castela e os índios pudessem coabitar o Novo Mundo.
O compromisso religioso levou Las Casas a tomar medidas radicais, como proibir os exploradores de índios a receber a comunhão. "Mas as atitudes que se sobressaíram foram as ligadas aos textos e debates", argumenta Freitas Neto O texto de Las Casas adquiriu uma força tão extraordinária que seria correto considerá-lo o criador de uma versão solidificada do que teria sido a conquista da América pelos espanhóis. E o êxito dessa narrativa, como prova Freitas Neto, foi que, narrando esperanças e sacrifícios, interligando a visão idílica que se tinha das Índias com a verdadeira destruição comandada pelos espanhóis, Las Casas projetou uma imagem do que poderia ter sido a América.

OESP,03/03/2004, Caderno 2, p. D2

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