VOLTAR

Tony Gross : O inglês das lutas acreanas

Página 20-Rio Branco-AC
Autor: Elson Martins
25 de Mai de 2003

Ele se define como um cientista político que acabou se envolvendo com índios e antropólogos no Acre. Na verdade, é mais que isso: é um antropólogo inglês que veio fazer uma tese de doutorado sobre os conflitos de terra que envolviam os índios, mas deixou o estudo de lado para ajudá-los e também os seringueiros a permanecerem na floresta. De meados de 1979 a 1980, Tony Gross, na época com menos de 30 anos (hoje tem 53), passou a maior parte do tempo convivendo com os Apurinã de Boca do Acre. E daí para frente com todos os povos da floresta. Assumiu, nos anos oitenta, a representação no Brasil da Oxfam, uma agência inglesa que financia projetos comunitários na América Latina, o que lhe permitiu liberar recursos para a Comissão Pró-Índio do Acre e para outras entidades que executavam projetos de educação e organização comunitária na floresta. Os antropólogos Terry Aquino e Mary Allegretti foram parceiros preferenciais de Gross. Wilson Pinheiro e Chico Mendes, também. Em 1992, esse inglês que a gente só descobre que é gringo por uma sobra de sotaque trabalhou na organização da Conferência Eco-92, do Rio de Janeiro. Depois foi para Genebra, na Suíça, como integrante do secretariado da Convenção da Biodiversidade e de 1996 a 2002 viveu no Canadá. Casado com a acreana Othilia Barbosa, irmã da atriz Clarice (do Patrocínio) Barbosa, voltou a morar na Inglaterra e na semana passada reapareceu no Acre em "missão sentimental". No sábado, foi a Xapuri procurar pelo Raimundão (Raimundo Barros, primo de Chico Mendes), com quem conviveu no seringal Nazaré. Não o encontrou, mas foi ao seringal Cachoeira e visitou a colocação de outro primo de Chico, Nilson Mendes, com quem entrou na mata para conhecer as experiências com a exploração de madeira certificada e com os chamados quintais agroflorestais. Na cidade fez um estoque de mariola, bombons de cupuaçu e licor de mutamba. E tomou quase uma jarra de suco de cajarana.

O que o arrastou para o Acre?

É uma longa história. Primeiro vim ao Brasil, em 1975, para dar aula de inglês na Casa da Cultura Inglesa em Brasília. Nessa época conheci o Terri Aquino, a Mary Allegretti e o Antônio Pereira Neto, o Toninho da Funai. Eu queria fazer uma pesquisa para doutorado sobre conflitos de terras e o Toninho, que tinha sido nomeado para ajudante da Funai em Rio Branco, me convenceu a fazer a pesquisa no Acre. Nesse meio tempo voltei a Inglaterra e o Toninho foi transferido para Guajará-Mirim, em Rondônia. De volta ao Brasil, em 1979, no aeroporto de Brasília, encontrei o Terri que estava chegando de Rio Branco e ele me falou de uma casa na Cadeia Velha onde eu poderia ficar. Lá moravam os chefes de postos Ronaldo e Meireles, dos quais me tornei amigo. Em maio ou junho de 1979 eu comecei minha pesquisa na aldeia dos Apurinã, na estrada de Boca do Acre.

E aí se envolveu com as coisas daqui a ponto de colocar sua tese em segundo plano, não foi?

Um dos dilemas de um antropólogo é responder à pergunta sobre seus objetos de estudo. A comunidade pesquisada pode perguntar: "O que a gente ganha com isso? Você é um pesquisador marciano que cai de pára-quedas na nossa comunidade. É uma presença estranha no nosso meio, é incômoda. Você faz perguntas, atrapalha a vida, come a comida da gente. O que a gente ganha com isso?". A resposta da maioria dos antropólogos é que vai fazer uma pesquisa, publicar uma tese, escrever um livro que talvez ajude. Mas não ajuda coisa nenhuma. E eu convivi com essa pergunta o tempo que passei com os Apurinã. Ao voltar para a Inglaterra, no início dos anos 80 para fazer minha tese, fui contratado pela Oxfam, que é uma agência que financia pequenos projetos. A agência tinha um programa no Brasil mais enfocado no Nordeste e estava iniciando um trabalho na Amazônia. E a questão indígena era prioritária para esse programa. Nesse meio tempo, o pessoal daqui havia criado o Projeto Seringueiro para ajudar os seringueiros a sair da dependência dos marreteiros, começando com a região do Xapuri, e precisava constituir um fundo de reserva para financiar a produção e depois vender a castanha em maior escala. Da mesma forma os Apurinã começavam a elaborar essas iniciativas. Então eu me achei feliz, naquele momento, de poder, como representante de uma agência financiadora, ajudar nesse processo.

E sua tese, como ficou?

É uma pergunta pertinente. Por que não a concluí ? Fiquei com tanta coisa pra fazer... Mas o que eu teria escrito naquela época seria uma análise mostrando como o regime militar e duas políticas econômicas - o desenvolvimento regional e a política de segurança, a geopolítica - se faziam presentes num lugar como o Acre e nas comunidades como os Apurinã, os seringueiros e os produtores rurais que estavam iniciando o processo de criação de sindicatos. Bom, não fiz a tese, e se for fazer agora terá um outro enfoque.

Naturalmente mais otimista...

É por isso que estou entusiasmado com a possibilidade de retomar a pesquisa ou recomeçar a escrevê-la a partir daquelas iniciativas em situação de desvantagem... e de repente ver como foram sementes de um desenvolvimento que tomou corpo e provocou de certa forma, sem exageros, um processo político que, aliado com outras tendências políticas em nível nacional e internacional, deu a sustentação intelectual e política na mudança que houve nessa região. Uma mudança em que você tem o governo do Estado executando políticas voltadas para fazer com que a vida do seringueiro e do índio seja viável nos termos desejados pelas próprias comunidades; e que principalmente controla seu destino através do controle de suas terras. Enfim, uma mudança em que eles podem ter acesso ao que se chama de produtos da modernidade, mas sem ter que abandonar o estilo de vida tradicional. Era, de fato, o que os intelectuais de fora, o pessoal da universidade, da Funai e de órgãos públicos que queriam ajudar os índios estavam procurando.

Sua viagem é só sentimental ou você está pensando em voltar para o Acre?

As duas coisas. É sentimental porque eu saí do Brasil em 1994 achando que não ia passar muito tempo no exterior, mas já se foram dez anos. E como estava com o tempo livre para fazer uma viagem para cá, vim para visitar amigos e parentes que não vejo há anos. Mas também precisava ver como andam as coisas e sentir como está a política do meio ambiente.

E quanto a voltar para o Acre?

É um bom momento para voltar ao Acre. Acho que fechou um ciclo, que vai do início daquelas iniciativas até o segundo mandato de Jorge Viana, com a eleição do Lula. Aí se vê a transposição das idéias que são reconfirmadas no âmbito estadual e entram no nacional, com a eleição do Lula e a nomeação da Marina como ministra do Meio Ambiente. É um bom momento de contarmos como chegamos aqui, imaginando que a política ambiental do país agora, com sua projeção internacional e com sua transversalidade, que a ministra está propondo e tem que acontecer, é um bom momento para avaliar isso.

Você foi ao Xapuri no sábado e chegou a visitar um seringal onde Chico Mendes trabalhou. Que comparação você faz daquele tempo com o que viu agora?

Tem dois tipos de comparação: tem a logística, a facilidade de chegar a Xapuri, no seringal, hoje, e poder observar como a vida mudou para aquela comunidade que tem acesso à rede de energia, a posto de saúde... Vi nos seringueiros, entrando e saindo da floresta de moto, algo inviável na década de oitenta. Outra coisa que me impressionou foi a conversa que tive com seu Nilson [Nilson Mendes, primo do Chico Mendes que mora na colocação Retiro 2] sobre o que ele está fazendo, acrescentando à sua vivência práticas que estão proporcionando a condição de continuar morando na sua região com uma renda anual bastante interessante. O que mais impressionou é como tem assimilado a lógica e a prática do que obviamente começou como experiências de cientistas, agrônomos, engenheiros florestais e biólogos dizendo o que era possível para as comunidades. Impressiona a capacidade das comunidades terem assimilado a prática, de ter o domínio cientifico do que estávamos fazendo, o grau de organização de como estão zelando pelo processo de identificação e organização do espaço no tempo de 10, 30 anos.

Você está se referindo a experiência de manejo florestal para exploração de madeiras certificadas no seringal?

Essa é uma das novidades. Os estudiosos a serviço do movimento daquela época já defendiam que as pessoas da floresta têm sim, a capacidade de agir racionalmente. Entretanto, tinha muita posição implícita e explícita, de que o seringueiro não tinha informação do que era melhor para ele. Muitos achavam que quem sabia era o Incra, as Forças Armadas, enfim. O que está sendo comprovado, porém, é que ganhamos o argumento. Você vai ao seringal e percebe as transformações no pensamento, na cabeça das pessoas. O grau de certeza de que estão encontrando de crescer enquanto pessoa, vivendo naquela mesma colocação do seringal. Isso é muito importante.

Ou seja, o Acre está criando um novo argumento para os que planejam o desenvolvimento na Amazônia?

O mais importante é que vislumbra um novo modo de pensar, nesse momento, para a reversão da pobreza, da fome no Brasil. Existem meios de reverter a exclusão social, a pobreza, a fome sem necessidade de grandes migrações ou pregações urbanas de que a vida rural é uma coisa arcaica que não tem futuro. Economistas até hoje pregam isso. Participei de uma conferência nos Estados Unidos onde um economista mor do sistema dizia que o modelo para o mundo é o da Malásia, onde a população migra para a área urbana. Mas a Malásia identificou atividades econômicas de tecnologia de ponta e criou um projeto em cima da urbanização e de apoio da indústria automobilística e de semicondutores. E aparentemente deu certo. Mas imaginar a repetição dessa lógica em escala global para todos os países do mundo que estão precisando superar essa questão de pobreza e de fome, é meio apocalíptico. Eu acho que as populações rurais devem encontrar meios de não precisar migrar para a cidade. E o Acre é muito importante para isso. Lembro-me que no início desse processo eu estive uns dias na colocação do Raimundo Barros e quando estava indo embora, ele me falou que por eu ter passado um tempo com eles, conhecia a vida dos seringueiros e o problema que estavam enfrentando, mas que também conhecia o lado positivo da vida do seringal. E disse que queriam continuar vivendo no seringal, mas com acesso a vida moderna. E ele estava articulando isso já no início dos anos 80.

É nessa direção que caminha o Governo da Floresta. O modelo é correto, então?

As alternativas em políticas públicas adotadas agora no Acre servem não somente para os países da América Latina ou os que vivem em florestas tropicais, mas podem extrapolar as regiões e o meio de floresta porque os princípios são universais. As comunidades por mais humildes que sejam na ótica da academia, dos dirigentes governamentais, têm sua capacidade de discernimento, de identificar quais são as opções mais válidas para sua comunidade. É preciso proporcionar às comunidades os instrumentos para que elas possam potencializar as opções que possuem e conseguem identificar.

Você moraria naquela colocação que visitamos no sábado?

Moraria. Eu fiquei encantado com o pomar. Eu acho uma vida que tem tudo a ver. Tem energia e acesso à cidade quando quiser. Estamos entrando em um sistema de globalização em que o mundo não determina o seu acesso aos serviços e aos bens que você quer por sua posição geográfica.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.