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Todo dia era dia de índio

OESP, Caderno 2, p. D1, D5
27 de Mar de 2008

Todo dia era dia de índio
Estréia amanhã o premiado Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, sobre massacre de tribo indígena

Luiz Carlos Merten

Quando assistiu a Bang Bang em Paris, em 1971, o então correspondente do Estado na Europa, Novais Teixeira, definiu Andrea Tonacci como um cineasta de bossa. "Tudo lhe sai de dentro com aquela espontaneidade exuberante das coisas que se pensam, meditam e congeminam. Bang Bang é uma mescla de Mack Sennett, chanchada nacional e commedia dell'arte", dizia o crítico. Há um culto a Tonacci no cinema brasileiro. Bang Bang foi um filme que marcou muita gente no começo dos anos 70, mas hoje o próprio diretor acha que ele ficou datado. "Não me surpreende mais."

Ninguém é melhor analista da própria obra do que Andrea Tonacci. Exatamente 37 anos depois de seu filme que virou marco do que se chamou de cinema marginal, ou 'udigrudi', ele está de volta com outro filme com vocação para cult - Serras da Desordem dividiu o Kikito de melhor filme do Festival de Gramado de 2006 com Anjos do Sol, de Rudi Lagemann. O outro filme estreou rapidamente, tão rapidamente como foi esquecido pelo público e pela crítica. Tonacci esperou um ano e meio para lançar Serras da Desordem em São Paulo. O motivo foi simples - o diretor não tinha dinheiro para o lançamento. O próprio filme foi feito com pouquíssimos recursos.

Quando conseguiu reunir a verba mínima para o lançamento, a data que surgiu era dezembro. A conselho de amigos (e distribuidores), Tonacci transferiu a estréia para março, e ela ocorre amanhã. No fim do ano, para cumprir seu contrato com a empresa produtora, Tonacci lançou Bang Bang em apenas uma sala de Belo Horizonte, onde o filme permaneceu um mês em cartaz. Finalmente agora você poderá acompanhar a saga de Carapiru, interpretada pelo próprio. Entrevistado pelo repórter do Estado na terça-feira à tarde, Tonacci situou a origem de Serras no seu interesse pela questão indígena, que sempre o motivou - "essa coisa do desrespeito pelo outro, em geral." Mas as motivações e o resultado foram muito mais complexos, como ele é o primeiro a admitir.

Tonacci ouviu falar pela primeira vez da história de Carapiru pelo indianista Sidney Possuelo, que lhe contou, em 1993, a saga do índio cuja família foi massacrada e ele nunca desistiu de reencontrar o filho, único sobrevivente da chacina, nem de voltar para a terra de seus ancestrais. O filme conta, linearmente, a história do massacre, a fuga de Carapiru, o reencontro com suas origens, a volta. Mas essa linearidade não é tão fácil quanto pode parecer. Serras da Desordem possui uma linguagem complexa. Como Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, e Santiago, de João Moreira Salles, situa-se nas bordas do documentário e da ficção.

A idéia inicial do diretor era fazer uma ficção, como em Bang Bang, mas ele tinha pouco dinheiro. "Teria de construir uma aldeia para destruir; o filme já tem muitos deslocamentos; o custo começou a crescer." A decisão de fazer um documentário próximo da ficção barateou num sentido e enriqueceu em outro o projeto - e é certamente um dos elementos responsáveis pela paixão que críticos jovens (principalmente) têm pelo filme e seu autor. O importante é que a história de Carapiru veio a calhar, num determinado momento da vida e da obra de Tonacci. Como Gustave Flaubert, falando de sua mais célebre criação - Madame Bovary -, ele também poderia dizer que Carapiru "sou eu".

Desrespeito na serra da desordem
Documentário resume 20 anos da história do Brasil sob o triste ponto de vista do índio Carapiru, que teve sua família dizimada

Luiz Carlos Merten

Passaram-se 15 anos desde que o indianista Sidney Possuelo contou ao diretor Andrea Tonacci a história de Carapiru. No intervalo, o cineasta tentou viabilizar outros projetos. Seu preferido era Agora Nunca Mais, que já tratava do massacre de um marginal na cidade grande e de um pai em busca do filho. Parceira, na arte e na vida, de Tonacci, a montadora Cristina Amaral contribuiu para sua decisão de fazer Serras da Desordem. "Ela dizia que o filme sairia mais barato, mas também tinha muito a ver com um sentimento que me consumia."
Tonacci trabalhou muito com a questão indígena nestes quase 40 anos decorridos desde Bang Bang, em 1971. "É muito séria essa questão de desrespeito pelo outro, de maneira geral. E o índio representa o verdadeiro brasileiro, briga pelas coisas dele, não deixa as pessoas dizerem como ele tem de viver." Quando Sidney Possuelo lhe contou a história - e ele conheceu Carapiru -, Tonacci atravessava um momento complicado. "Estava longe da mulher, dos filhos, tinha um menino de 9 anos. Era difícil para mim passar a viver separado, vendo eles só de vez em quando." A história de Carapiru bateu no diretor porque veio a calhar. "Havia ali um sentimento de perda com esperança de reencontro que eu conheci como o que eu próprio estava vivendo. Era um sentimento sobre o qual eu conseguiria falar, porque o que Carapiru vivenciara era o que eu estava sentindo. Claro, ninguém massacrou minha família, as histórias eram diferentes, mas a emoção era a mesma."

A história de Agora Nunca Mais também tinha a ver com pai e filho, com separação, mas a de Carapiru se revelou mais adequada. Em 1995, Tonacci já estava escrevendo o roteiro, mas pensava numa ficção. A opção pelo documentário veio depois. A de mesclar preto-e-branco e colorido, digital com 35 mm, também. "O filme tem muitas imagens de TV e eu não queria dividir, dizer que isso é TV e isso é cinema. Nosso olhar está cada vez mais acostumado com essa questão do digital. Até os filmes que a gente vê são transferidos para (ou de) uma captação digital. Usei o 35 mm para obter uma definição que queria que ficasse impressa e o preto-e-branco e a cor para marcar o tempo. Mas não queria a separação tradicional, cor, presente, preto-e-branco, passado. É mais uma maneira de dizer que a situação continua, que não mudou nada."

Cristina Amaral é responsável por um bloco de cenas que lança a história de Carapiru no contexto da história do Brasil. "Não foi uma invenção a posteriori. Estava previsto no roteiro. Resumimos ali 20 anos da história de Carapiru e do Brasil. A única imagem anterior é a de Marighella morto no carro, que virou um simbolismo da derrubada da floresta e da queda de um tronco muito grande, como era aquele homem." Em vários momentos, Carapiru se expressa na sua língua, que não é traduzida e, no fim, sua fala ainda é obscurecida pelo ruído do avião - que é um dos raros efeitos de Serras da Desordem, já que foi inserido, ali, digitalmente. "A fala, em si, não é importante. A gente não precisa ouvi-la para entender o sentimento. O mais importante é que aquele estranhamento é o meu. Procurei ser o mais fiel possível à história e à experiência de Carapiru, mas, no limite, o filme não é sobre a aculturação do índio, mas sobre a nossa aculturação num mundo em que os valores vão perdendo sentido."

A radicalidade do encontro com o outro
Filme de Andrea Tonacci se instala na confluência de culturas excludentes

Luiz Zanin Oricchio

Há muitas maneiras de "contar uma história" e Andrea Tonacci escolheu uma das mais originais. Se bem que, aqui, a expressão "contar história" tenha de ser matizada e desdobrada. O diretor escala os personagens reais para (re)viver o que passaram anos atrás. Assim fazendo, traz não apenas um relato factual, mas já uma reinterpretação da história, pois reconstruída em momentos diferentes do tempo.

O fato inicial é de uma trágica banalidade no Brasil - o massacre de uma tribo indígena por brancos que cobiçam suas terras e o que elas contêm. Árvores, metais, o que for. Quem escapa da matança é o índio Carapiru, que se torna nômade e perambula pela mata durante dez anos. Quando foi encontrado, em 1987, estava a 2 mil quilômetros do lugar onde sua família foi dizimada. Carapiru encena a si mesmo, em suas andanças pela floresta e contato com brancos que não falam a sua língua. É uma experiência de estranhamento radical.

E quem poderia encenar Carapiru a não ser ele mesmo? Ninguém se coloca no lugar de ninguém, e uma cultura não "lê" a outra senão com os olhos do preconceito. Tudo o que se pode fazer é reconhecer o mistério do Outro e instalar-se na posição de simpatia em relação a ele. Colocar as emoções em sintonia, pois isso é o que quer dizer simpatia. A humanidade é una e diversa, e esse é o maior milagre de todos.

Nesse sentido, o ítalo-brasileiro Andrea Tonacci não tenta ser o índio que ele obviamente não é. Mas procura colocar-se nesse ponto de interseção entre duas culturas, que permite passar de uma a outra, sendo ambas irredutíveis. Por isso, não se traduz o que fala Carapiru em "tupi antigo"; suas palavras são apenas significantes aos nossos ouvidos. E o tempo dos brancos, a bela passagem de dez anos, construída com imagens de arquivo ou de outros filmes, também corre paralela ao índio internado na mata.

O encontro entre esses dois universos separados teima em se fazer. Às vezes no modo trágico; outras, no registro da ternura. Serras da Desordem o demonstra de maneira estupenda.

Serviço
Serras da Desordem (Brasil/2005, 135 min.) - Documentário. Dir. Andrea Tonacci. Cotação: Ótimo

OESP, 27/03/2008, Caderno 2, p. D1, D5

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