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Todo dia é dia de Índio (16/08/2013)

Tribuna do Norte - http://tribunadonorte.com.br
Autor: Dácio galvão
16 de Ago de 2013

O romance "Expedição Montaigne", de Antonio Callado, se insere naqueles parâmetros aonde fragmentos da narrativa projetam escritura própria para um país. Percepção contemporânea vasculhando a natividade da nação mergulhada num dado substrato da cultura e da história. Destroço étnico. A alegoria procura o rosto cultural, possibilitando o aparecimento de uma tessitura dramática e traduzindo o outro oprimido e a alteridade social decorrente. As vozes mostram a nação brasileira fraturada, descaracterizada. Na abordagem temática, há direções de várias nações indígenas: Camaiurá, Txukarramãe, Cariris, Xinguanos, Pataxós, Trunai, Jê, Aruak...

É no contexto dessas nações que podemos nos estribar ao que disse Sônia Torres, no ensaio "A nação e as narrações híbridas", publicado na Revista Brasileira de Literatura Comparada III: "o imaginário está povoado de imagens que subvertem a história oficial, abrindo desta forma, um espaço para que a margem possa narrar sua versão de nação". Ao refletir sobre etnias, somos obrigados a pensar nas perdas lingüísticas, religiosas, etnológicas, antropológicas. Os principais personagens marginalizados são Ipavú, Uiruçu "O gavião" e Vicentino Beirão.

Todos retratam um Brasil destroçado no tratamento dispensado às minorias. Do ângulo institucional, habitam o presídio-reformatório "Crenaque", ícone da desestrutura e inadequação no acolhimento. Os índios Ipavú, Atroari e Canoeiro são caricatos e absolutamente perdidos em referências tipológicas. Signos de prováveis extinções.

Vicentino Beirão infere a indecência e a picaretagem encarnada em viciadas políticas públicas indigenistas brasileiras. Alheamento, indiferença. Os atores percorrem veredas próprias e peculiares. Ipavú ficaria tuberculoso, alcoólatra e também ladrão ("... na sua nova organização, a Expedição Montaigne passou, sem que nada fosse dito, a direção geral de Ipavú, que, como ladrão de galinha e gado, batedor de carteira, pungista e ventanista, era o novo provedor..."); Atroari e Canoeiro formaram uma tríade. Incluíram Seu Vivaldo para praticar toda sorte de delitos, passando a ser visto como "o famigerado bando que assolou "as Gerais com os mais variados assaltos, homicídios e estupros"; Uiruçu, "o gavião-real", companheiro inseparável de Ipavú, permeia todo o romance nas situações mais lúdicas e arraigadas da vida indígena: caça, voa, exercita hábitos e rufla asas. Metaforiza perdas identitárias. Na aldeia Camaiurá, o nome de batismo de Ipavú era Paiap. Montagem anagramática espelhada do vocábulo "pai"? Posteriormente, seria substituído pelo topônimo da lagoa Camaiurá: "Ipavú". Paiap é o significante. A onomatopéia do coaxar de sapos nos charcos e de cantares de corujas nos aceiros, nas florestas.

Enfim, esse personagem principal tem significados vários. Alegoriza elementos da fauna e da flora. A lagoa, seu nicho. "O gavião-real" sugere resistência às investidas da cultura branca destruidora. Dois personagens associados e complementares: Ieropé (Pajé) e Javari (aprendiz de Ieporé). Maria Jaçanã (índia Trunai), no enredo, se enquadra no time. Ipú, Sá, Icó e Paranapiacaba são seringueiros vítimas parciais da exploração caloteira de Vicentino Beirão. Trapos humanos: "não tinham nada ou de tudo tinham muito pouco, até de nome, menos um deles, que parecia até querer afrontar os outros três, que se chamavam Icó, o de calça rasgada, Ipú e Sá. O tal outro se espalhava por aí afora com o nome de Paranapiacaba...".

Zeca Ximbioá é reminiscência da guerrilha do Araguaia. Ximbioá, o guerrilheiro, ficaria na memória porque queria que "o índio tomasse conta do Brasil de novo" ou por "aquele rasgão de bala que mais parecia pedir costureira (...)" ou, ainda, "quando a malária chacoalhava ossos dele feito um maracá".

Antonio Callado retalha aspectos da culinária. Marca de povos: compota de bacuri, bolo de aipim, mel de jati, beijú, rabo de jacaré, anta-na-brasa com espeto de pau-de-canela, caxiri, vinho de buriti, ovos de tracajá... Sabemos que as citações da alimentação fixada no "Expedição Montaigne" tem o timbre da particularidade.

Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, em estudos sobre alimentação no Brasil, visibilizam o enquadramento contributivo da colonização no cardápio brasileiro: receitas francesas, árabes, afro-ameríndias... O romance está impregnado de vocábulos indígenas. Personagens, alimentos e acidentes geográficos. A voz ideológica é do outro. Eurocentrista. Se coloca o índio desfigurado: "Ninguém no Brasil sabe nada de índio", fala Vicentino Beirão.

A desconstrução linguística deflagra e violenta o repertório e a linguagem. Fala de Ipavú: "Vou te dizer uma coisa, ô, cara, disse Ipavú, caprichando em falar bem bacana, bem papo de boteco, eu sou é brasileiro, tá sabendo..." A dominação, em regra geral, ativa o aniquilamento da língua. Mais uma entre tantas receitas da "Expedição Montaigne". Depreende-se da nação brasileira um conjunto diverso. Minorias étnicas, migradas ou não, ocupam margens sociais. Continuam a falar dialeticamente, revelando os processos falhos desequilibrados. Diz Homi K. Bhabha: "a nação revela, em sua representação ambivalente e vacilante, a etnografia de sua própria historicidade e abre a possibilidade de outras narrativas do povo e suas diferenças".

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