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Título de doutor é concedido pela primeira vez a indígena

FSP, Brasil, p. A7
17 de Abr de 2006

Título de doutor é concedido pela primeira vez a indígena
A pernambucana Maria das Dores Pankararu defenderá tese de lingüística na quarta-feira, em Alagoas

ANTÔNIO GOIS
ENVIADO ESPECIAL A MACEIÓ (AL)

Quarta-feira, 19 de abril, é o dia de uma índia. É também a data em que se celebra o Dia do Índio, mas não será por isso que Maria das Dores de Oliveira Pankararu, 42, será o centro das atenções na Universidade Federal de Alagoas. Na quarta, ela defenderá sua tese de doutorado em lingüística. Pode parecer pouco, mas não é. A Funai (Fundação Nacional do Índio) não tem registro de outro índio que tenha chegado ao mais alto grau acadêmico do país.
Ela conta que não vê a hora de visitar de novo sua aldeia, desta vez com um título de doutora, para comemorar com os pankararu da mesma maneira que fez quando concluiu seu mestrado. Eles, que vivem no município de Tacaratu (no sertão pernambucano), porém, não serão os únicos a terem motivos para comemoração.
Durante seu doutorado, Maria pesquisou a língua indígena ofayé. Ela hoje é falada por 11 pessoas da comunidade ofayé, de Brasilândia (MS), e está em risco de extinção. Seu trabalho, em parceria com a professora ofayé Marilda de Souza, foi fazer uma cartilha para ensinar as crianças da comunidade o idioma e criar uma correlação entre a língua oral e a escrita para facilitar o aprendizado.
Chegar ao topo da carreira acadêmica não foi simples, mas ela encarou como mais um passo. Os primeiros, e mais difíceis, foram dados ainda criança, quando andava a pé por uma hora e meia por morros e trilhas até chegar à escola mais próxima de sua aldeia, no município de Tacaratu.
Ainda criança, ela se mudou para São Paulo quando a família fugia da seca e buscava emprego. Fez até a sétima série e voltou com seus pais para sua aldeia.
Apesar de ter vivido na maior cidade brasileira, Maria conta que ela só "descortinou o mundo" quando voltou a estudar na pequena cidade de Tacaratu. "É uma cidade pequena, mas chegar lá de novo para mim foi como descortinar o mundo. Minha família sempre me protegeu muito, mas eu tive que estudar sozinha. Tive que ter coragem para continuar na escola porque muitos tinham aquela visão de que os índios são bêbados, vagabundos."
Após se formar no ensino fundamental e no médio, Maria passou no vestibular do curso de história de uma pequena faculdade próxima de Tacaratu. Depois, fez outro curso de graduação, pedagogia. Dessa vez, porém, foi mais longe e passou no vestibular da Universidade Federal de Alagoas.
"Sofri muito quando vim morar em Maceió. Perguntava o que eu estava fazendo aqui. Mas disse para mim mesma que tinha que parar de ser vítima da história", diz.
Em sua trajetória acadêmica na universidade, Maria trombou muitas vezes com o mesmo preconceito que enfrentou em Tacaratu. "No mestrado, um professor chegou a repetir em aula, sem saber que eu era índia, os mesmos estereótipos sobre os indígenas. Eu protestei, mas ninguém quis se posicionar na briga."

Apoio
Mas em seu caminho na universidade ela também encontrou apoio, como o de suas orientadoras Januacele de Costa e Adair Palácio. A oferta de bolsas também foi fundamental. No mestrado, veio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Alagoas. No doutorado, a ajuda foi da Fundação Ford.
O programa de bolsas da Fundação Ford, feito em parceria com a Fundação Carlos Chagas, é de ação afirmativa, mas não trabalha com cotas. Ele prioriza os segmentos da população menos presentes na pós-graduação: negros ou indígenas que venham de famílias que tiveram poucas oportunidades econômicas e educacionais e nascidos no Norte, no Centro-Oeste ou no Nordeste.
Além de fazer todo ano anúncios das inscrições -as deste ano estão abertas até 22 de maio e mais informações podem ser obtidas no site http://www.programabolsa.org.br-, há também um programa pró-ativo na busca de candidatos que se encaixem no perfil. Após serem selecionados, eles ganham uma bolsa para se manter durante o curso e para compra de recursos didáticos.
"Eu fiquei sabendo que haveria uma seleção de bolsas a partir de critérios de ação afirmativa pela Fundação Ford. Vi que me encaixava em todos os requisitos e tentei. A bolsa foi fundamental para que eu pudesse viajar com freqüência para a aldeia ofayé e fizesse minha pesquisa", conta Maria.
O resultado das viagens de Maria e de sua pesquisa de doutorado pode significar para os ofayé o resgate de uma língua. Tentativas anteriores de ensiná-la para a geração mais jovem tiveram pouco êxito. Dessa vez, no entanto, o projeto partiu de uma índia para índios. Fez toda a diferença.

FSP, 17/04/2006, Brasil, p. A7

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