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Testes para a Amazônia

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
09 de Jul de 2004

Testes para a Amazônia

Washington Novaes

No final deste mês, será realizada em Brasília a III Conferência Científica do LBA (Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia), que reunirá cerca de 800 cientistas, entre nacionais e internacionais (Nasa, Harvard, Universidades da Califórnia, Cornell e Oxford, Instituto Max Planck, entre outros). Com 61 projetos já concluídos e 59 em desenvolvimento, esse programa de cooperação científica supranacional investiga as interações da floresta amazônica com as condições atmosféricas e climáticas em escala regional e mundial. Antecedendo a conferência, haverá um painel - O conhecimento científico e a formulação de políticas públicas para a Amazônia -, que, ao tratar do papel da ciência no desenvolvimento sustentável, discutirá com membros do Executivo, do Legislativo e de ONGs temas como o papel dos ecossistemas nas variações climáticas locais e globais, a evolução do desflorestamento, as conseqüências da expansão da pecuária e das lavouras de soja.
Será interessante e instrutivo acompanhar. Não apenas para ouvir a palavra da ciência. Mas também para conferir o que pensam fazer a administração pública e os legisladores no maior bioma brasileiro, nesta hora decisiva.
Porque, apesar do anunciado e elogiável Plano Amazônia Sustentável (PAS) do governo federal (comentado neste espaço em 4/6), são preocupantes muitas notícias sobre o que está acontecendo na região - verdadeiros testes para as boas intenções.
Pode-se começar pelo projeto de pavimentação da rodovia Cuiabá-Santarém.
Numerosos especialistas têm alertado que, dependendo de como for feita, intensificará muito mais o desmatamento (que já é intenso) e os custos sociais em Mato Grosso e no Pará, para facilitar o escoamento da soja e das carnes - tal como aconteceu com a BR-364 (Goiás-Mato Grosso-Rondônia). O governo federal comprometeu-se a promover o ordenamento territorial e o zoneamento ecológico-econômico, antes de qualquer decisão. Mas o próprio presidente da República já ofereceu esse projeto aos investidores norte-americanos (Estado, 23/6) em Nova York, com financiamento quase total do programa Parcerias Público-Privadas - antes de conhecido o projeto técnico, antes de licenciado pelo Ibama, antes de cumprido o roteiro do PAS.
E enquanto o desmatamento prossegue solto em Mato Grosso.
Embora possa ter alguns ângulos favoráveis, também o gasoduto Coari-Manaus, além de exigir para a implantação a abertura de estradas, a construção de pontes e a transposição de rios caudalosos como o Solimões, dificilmente deixará de estimular a ocupação de áreas problemáticas. A Petrobrás compromete-se a eliminar depois estradas e pontes, o que será extremamente difícil.
Ainda recentemente, renovaram-se contratos para fornecer energia elétrica a tarifas subsidiadas para as empresas produtoras de eletrointensivos (alumínio principalmente), agravando um déficit (provocado pela primeira fase de 20 anos dos subsídios em Tucuruí) superior a R$ 5 bilhões na Eletronorte - déficit que terá de ser coberto pelos demais consumidores, principalmente residenciais. Para exportar produtos que, pelo custo social, ambiental e energético, não interessa aos importadores fabricar eles mesmos.
E ainda se anuncia a construção de Belo Monte, no Rio Xingu, provavelmente com a mesma finalidade.
Não bastasse, há poucos dias (O Popular, Goiânia, 29/6) diretores da Administração da Hidrovia Araguaia-Tocantins (Ahitar) informaram que já está em tramitação no Ibama um pedido de licenciamento para obras de dragagem e derrocamento no primeiro rio, no trecho Caseara-Santana do Araguaia.
Disseram eles que o incompetente e malfadado estudo de impacto ambiental para toda a hidrovia, prevendo cerca de 200 obras desse tipo, já foi abandonado. Agora, serão "apenas" 40 intervenções (dragagens e explosão de travessões), para assegurar a navegação durante quatro meses do ano, "ameaçada pelo assoreamento gradual que o rio vem sofrendo pela retirada de matas ciliares" na implantação de pastagens e lavouras de soja (e onde se vão depositar os sedimentos dragados?).
O trecho mencionado, logo abaixo da Ilha do Bananal, com muitas ilhas e planícies de inundação natural, é decisivo para a manutenção da flora e da fauna dessa região, como já se cansaram de explicar os cientistas. Se for alterado, ocorrerá uma inversão: áreas secas serão inundadas, áreas inundáveis ficarão secas. Além do mais, dragar o Araguaia para assegurar a manutenção de um canal permanente navegável é obra dos sonhos de empreiteiras, para milênios ou milhões de anos, porque se trata de uma região ainda em formação, com intensa movimentação natural de sedimentos durante todo o ano (um estudo do Laboratório de Geologia e Geografia Física da Universidade Federal de Goiás mediu em um único ponto - Aruanã, ainda no Médio Araguaia - a passagem de 8,6 milhões de toneladas de sedimentos num único ano). É um processo que junta causas naturais com o carreamento de sedimentos gerados na implantação de pastos e lavouras de soja e com a remoção de matas ciliares. Vem desde a região das nascentes do rio e está contribuindo para a desertificação dessa área, diagnosticada pelo professor Tadeu Veiga, da Universidade de Brasília.
Talvez a Ahitar devesse aconselhar-se com a Agência Nacional de Águas e o governo da Bahia, que estão desenvolvendo cartas náuticas digitais que indicam a presença de bancos de areia, a profundidade do talvegue e seus deslocamentos no trecho Ibotirama-Juazeiro do Rio São Francisco. De posse do CD-ROM com esses dados, e ligados a um sistema orientado por GPS, os pilotos de barcos serão capazes de navegar dia e noite, com qualquer condição de tempo. Ainda mais que, no processo de revitalização do rio, se conseguiu acordo com Furnas que propiciará liberação de mais água do reservatório de Três Marias na estiagem. E um programa de revitalização das margens.
Modernidade é isso aí. Dragagem zero, derrocamento zero, recuperação de margens, sinalização apenas virtual.
Retornando à Amazônia, com tem dito o competente e experiente professor Aziz Ab'Saber, "a questão não é ficar intocada; é saber como está sendo e será tocada".

Washington Novaes é jornalista

OESP, 09/07/2004, Espaço Aberto, p. A2

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