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Testamos o novo Tiete

JT, Especial, p.A10-A11
23 de Mai de 2004

Testamos o novo Tietê
VALDIR SANCHES
Visto da margem, sob um céu fechado, num dia frio, chuvoso, o Tietê assusta. Na água escura, cor de esgoto, o marinheiro Jairo Contini espera, com o barco. Nove e meia passadas. As marginais ainda estão congestionadas. Jairo atracou bem em frente ao prédio do Grupo Estado, que produz o JT. Este lugar fica a jusante da Ponte do Limão.
A jusante é o trecho do rio abaixo da ponte (quem vai navegar deve saber essas coisas...). Se fosse acima, seria a montante. Os repórteres descem com certa dificuldade a barranca acidentada do rio, bem ao lado de um lixão.
Pulam a bordo e respiram aliviados. O cheiro habitual de esgoto está bem fraco, porque choveu e o volume da água aumentou.
Veste-se o colete salva-vidas. Máscara antipoluição? Um exagero, não existe.
Jairo Contini navega o dia inteiro com o barco e nunca teve problema de saúde. É verdade que a empresa para a qual trabalha o submete a "uma bateria completa de exames", a cada três meses. "Examinam a cabeça, tiram eletrocardiograma, tudo."
Saudável, acelera o motor de popa de 15 hp. O barco sai na frente de uma embarcação bem maior, um empurrador que se aproxima. Com menos de cinco minutos, a hélice engasga. Um pedaço de plástico se enroscou nela. Jairo desacelera e retira a intrusa. Repetirá o gesto outras seis vezes, durante os 8,5 quilômetros até o Cebolão, primeira etapa da viagem.
O barco avança devagar, no máximo 30 quilômetros por hora. Na água, a sujeira flutua. Embalagens de refrigerante (as pets), saquinhos plásticos, pedaços de madeira. Estudos oficiais dizem que o Tietê recebe 300 toneladas de lixo por dia.
A cada pouco, vêem-se, nas margens, as bocas de tubulações que despejam uma água bem suspeita. Em outros pontos, são galerias, das quais despencam verdadeiras cascatas de águas servidas. Isso causa nos navegantes de primeira viagem uma sensação ruim. É como se esses ralos da cidade estivessem contaminando cada vez mais a água por onde passam. Um consolo é agarrar-se aos dados oficiais. Eles dizem que 77% do esgoto lançado no Tietê é tratado.
O barco vai passando por grandes embarcações, que sustentam equipamentos usados no rebaixamento da calha, o ponto mais baixo do rio. As obras aumentaram a profundidade e já permitem a navegação dos batelões e outros barcos de serviço. Num desses barcos, pequeno, está Josenildo da Rocha. Seu trabalho é descer um tubo metálico até o fundo do rio. O tubo tem um visor na extremidade mantida fora da água.
O visor é lido com instrumentos óticos, das margens, por técnicos. A batimetria, esse trabalho, identifica o relevo do leito do rio. Neste ponto, pelos cálculos de Josenildo (e com ajuda de chuva recente), a profundidade é muito boa para se navegar: 3,5 metros.
Se o Tietê estivesse limpo, seria uma viagem agradável. As obras de rebaixamento da calha aumentaram o volume de água e removeram o grosso do lixo jogado pela população (que incluía móveis e carcaças de carro). A praga da pets e dos saquinhos plásticos é a que mais resiste. No meio desse cenário, às vezes assiste-se ao gracioso vôo de uma garça. Ou tem-se a surpresa de ver, à margem, no meio do mato, uma formação de flores arroxeadas.
Um empurrador (que move batelões e chatas) vem vindo em sentido contrário.
Passa pela lancha dos repórteres. Isso agita a água e o verdadeiro cheiro do Tietê se revela. Acre, ruim, de esgoto. Com 40 minutos e 8,5 quilômetros de viagem, a lancha atraca sob o Cebolão, no canteiro da construtora Básico Engenharia. O tempo continua ruim. E há uma barragem, com eclusa em obras, bem à frente.
Água negra, flores e capivaras
Bem atrás da Barragem do Cebolão, as águas negras do Rio Pinheiros deságuam nas águas escuras do Tietê. A barragem está com as comportas abertas. Depois de escoar por elas, o Tietê corre 20,5 quilômetros até outra barragem, a Edgard de Souza, em Santana de Parnaíba.
Os primeiros quilômetros deste trecho serão usados para a navegação experimental de passageiros, anunciada na terça pelo Governo do Estado. A extensão toda foi percorrida pelo Jr, depois dos 8,5 quilômetros iniciais, do prédio do jornal até o Cebolão.
0 barco usado pelos repórteres teve que ser carregado à mão, por terra.A barragem tem eclusa, mas está em obras. As 11h o barco parte pelo rio deserto. No trecho dos 20,5 quilômetros, as obras de rebaixamento da calha, a parte mais funda do rio, já foram concluídas. A profundidade é suficiente para navegação. Mas a prática, por aqui, é rara.
Um Tietê muito escuro, tingido pelo Pinheiros, segue um trecho na companhia da Rodovia Castello Branco. Então, desvia para Osasco. À medida em que se avança, vai ficando mais largo. No primeiro trecho da viagem, até o Cebolão, tem 100 metros de largura. Aqui, um tanto mais.
Parece outro rio - embora a água preta e a sujeira à tona atestem que não é. As margens não têm pistas, trânsito. Não se ouvem as sirenes dos carros de resgate ou policiais, freqüentes nas Marginais. Em seu lugar há bastante vegetação, quando não surgem as construções pobres, casas sem reboco, de remotas vilas de Osasco.
A vegetação das margens às vezes exibe sua fauna. Lá estão as capivaras. Duas. Não, quatro. Paradas, impávidas, parecem pousar para as fotos. E logo ali... mamãe capivara com cinco filhotes.
Mais à frente, entrando-se em Barueri, um bem-te-vi cruza o rio. Na margem esquerda, mostram-se dois gaviões. Flores silvestres, bonitas, surgem de vez em quando. A natureza insiste em conviver com o rio e as pets, os saquinhos plásticos (que se enroscam na hélice e fazem o barco parar a cada pouco), pedaços de madeira, galões de plástico, latinhas de alumínio e latas em geral, tudo o que faz a felicidade de Roberto da Silva, o Alagadão.
Com um barco artesanal, feito de restos de tábua, Alagadão retira esses materiais do rio. Sustenta mulher e dois filhos e ajuda a limpar a água. Vem todo dia. "Se não vier, outro toma a vaga." Contando com ele, são três catadores fluviais, daqui até a Barragem Edgard de Souza, o fim da linha neste trecho.
A venda das latinhas de alumínio é "bom negócio": R$ 3 o quilo. Mas as pets, não: ocupam muito espaço e valem R$ 0,30 o quilo. 0 barco, "foi um colega que fez". Apesar da aparência estranha, navega bem. Alagadão está desempregado há dois anos. "Trabalhava em uma lanchonete na Castello Branco, mas ela fechou." Sua mulher não trabalha? "Não, ela veio da roça e já chegou cansada."
0 barco dos repórteres navega por um Tietê cada vez mais largo. Pelo caminho, passa pelos colegas de Alagadão, dois outros barqueiros catadores do lixo do rio. Cada qual em seu território, distante um do outro.
Vencidos 16,5 quilômetros de rio, está-se agora no lago de 4 quilômetros da Barragem Edgard de Souza, em Santana de Parnaíba. As margens são cobertas por mata nativa, exuberante. Um belo cenário, se for possível esquecer por instantes a qualidade da água. As três da tarde, a barragem, de 1901, que já foi hidrelétrica, está à vista. Fim da viagem. E não choveu.

Um rio verdadeiro, no Interior
O marinheiro Popeye, nesta história, é o cozinheiro. Este Popeye é um homenzinho cheio de vigor, aos 58 anos. Durante a viagem do comboio que vai partir de Anhembi, a 230 quilômetros de São Paulo, preparará 200 refeições.
Passa das oito da noite e a partida está atrasada, de certa forma por causa dele. O fornecedor que trouxe o rancho esqueceu-se da cebola. E sem cebola não há culinária.
O empurrador TQ 23 está atracado no armazém da Empresa Paulista de Navegação, EPN. Chegou de São Simão, em Goiás, com 5.450 toneladas de soja, trazidas em quatro chatas. A soja foi descarregada. Imensos caminhões de duas carrocerias a levarão ao Porto de Santos. Agora, o empurrador vai voltar a navegar, para pegar nova carga em São Simão. Viagem de 759 quilômetros e pelo menos três dias e meio, descendo o Tietê, subindo o Paraná e o Paranaíba.
Tudo muito bem, mas o interesse imediato dos repórteres é: como será o Tietê aqui embaixo? (Ele corre da Capital para o Interior.) Que cor terá sua água?
Como é noite, a resposta terá que ficar para o dia seguinte.
O empurrador tem três camarotes, com quatro beliches cada. Os hóspedes são apresentados a seus beliches. Na cozinha-refeitório, é servido o jantar, com Vinicius Campos de Oliveira, ou melhor, Popeye, falando de seu orgulho de servir a Marinha do Brasil (à noite, no convés, tocará gaita para entreter a marujada).
Às 20h30, o comandante Leônidas Padilha Nascimento aciona, devagar, dois manches. No porão, os dois motores diesel de 400 hp respondem. O TQ 23 começa a navegar. Manobra para que as quatro chatas, duas ao lado das outras duas, sejam amarradas à frente do empurrador, com cabos de aço. E... "Lá vamos nós", diz o comandante.
O trecho pelo qual se navegará por uma hora e quarenta é o mais complicado de todo o percurso. Sinuoso, tem quatro curvas acentuadas. Não é fácil passar com o comboio de 137 metros. O rebocador, é verdade, possui modernos instrumentos de auxílio à navegação; e o comandante, dez anos de experiência.
Nos rios, as embarcações seguem pelo canal, que é a parte mais profunda. Mas o canal não corre necessariamente pelo meio do rio (pode estar mais perto da margem). Um dos instrumentos de auxílio é o GPS, que recebe as coordenadas do ponto em que o rebocador está, via satélite. Um programa de computador interpreta a informação e a coloca na tela. O comandante vê onde está o canal e, nele, a posição de seu barco. Outro grande auxílio, o radar, sinaliza a posição do rebocador e os obstáculos à frente. Há ainda o ecobatímetro, que informa a profundidade.
A cabine de comando é móvel. Ao toque de um botão, ela sobe, para Leônidas poder enxergar por cima das chatas que vão à frente. Ou desce, para passar sob pontes não muito altas. Outra coisa: não há timão, aquela roda que os comandantes giram para fazer o barco derivar à esquerda ou à direita. Em seu lugar existem duas alavancas sobrepostas, que a simples pressão de um dedo pode mover. Uma aciona os dois lemes principais. Outra, os auxiliares. Com isso o empurrador anda até de lado.
O rebocador é nacional, como as chatas. Foram fabricados pela Torque, que também é dona da EPN, a empresa para a qual o comandante Leônidas trabalha.
A empresa leva 47% da carga de longa distância do rio (na verdade a Hidrovia Tietê-Paraná).
Às seis da manhã Popeye já está em ação, animado. Oferece café recém-coado.
Com um pouco mais, o dia clareia. A água que a luz mostra é limpa, mas neste momento o comboio está não no rio em si, mas no grande lago da Hidrelétrica de Barra Bonita (por terra, 297 quilômetros de São Paulo). Aproxima-se de sua barragem. Bem à esquerda, está a eclusa. Mas não é possível passar com duas chatas amarradas ao lado de outras duas.
Comboio na eclusa. Começa a descida
Duas das chatas são desmembradas do comboio e deixadas em uma bóia de atracação. O empurrador, com as duas restantes, entra na eclusa. É uma câmara, com a água no mesmo nível do lago. A água é escoada e seu nível baixa, levando o comboio junto. Depois, abre-se a porta da câmara, à frente.
O comboio sai. Está no nível do rio abaixo da barragem. Em um ponto do rio deixa as duas chatas. E volta para buscar as duas deixadas lá em cima, no lago.
Recomposto, o comboio navega por um Tietê de águas de um marrom claro, sem tons de poluição. Um belo rio, largo, piscoso, à frente de Barra Bonita, com seus barcos de turismo atracados.
Nesta época de pouca chuva, o Tietê permite a navegação de barcos com até 2,80 metros de calado (a parte submersa do barco não pode exceder essa metragem). Com chuva e o rio mais encorpado, o calado pode chegar a 3 metros. As chatas, que levam 1.362 toneladas de carga cada uma, podem transportar 1.500.
O calado tem uma importância econômica estratégica. O Departamento Hidroviário, do Estado, exige um mínimo de 30 centímetros entre o fundo do barco e o leito do rio. Mas essas modernas embarcações, diz executivo da empresa, navegam com grande precisão. Podem, em trecho crítico, navegar com apenas 10 centímetros entre o barco e o rio. Cada 10 centímetros a mais de calado significa carregar 250 toneladas de carga a mais.
À hora do almoço, depois de navegar 120 quilômetros, o comboio alcança Pederneiras. Popeye chama para um prato especial: costela de boi preparada com maça, guarnecida por mandioca frita. Uma elaborada salada, feijão, arroz. A tripulação de nove pessoas, do comandante aos marinheiros de convés, aprovam o prato com louvor.
O marujo era camelô em São Paulo
David Soares da Silva, 22 anos, é marinheiro de convés. Trabalha com os cabos de aço, para amarrar as chatas no empurrador e entre si. Foi camelô em São Paulo: comprava relógios na Galeria Pagé e os vendia na Barão de Itapetininga. Gosta de navegar. Tem um sonho, ser enfermeiro padrão a bordo de um transatlântico.
Neuzair Binder, 40 anos, é o máquina. Cuida dos motores (20 mil litros de diesel para ir e voltar a São Simão) e da mecânica. Deixou Guaíra, às margens do Rio Paraná, quando a navegação perdeu força por lá. Foi parar em São Paulo. Trabalhou quatro meses no Tietê, em uma das embarcações usadas nas obras do rio. Trabalha 25 dias, folga 5. Nas folgas, viaja 18 horas de ônibus para chegar em sua casa, em Guaíra.
O comboio navega dia e noite. O comandante reveza-se com o imediato nos comandos. A tripulação cumpre turnos de seis horas. A qualquer hora, com qualquer tempo (na chuva, com capas), quando preciso, os marinheiros têm que separar ou unir as chatas. Os que estão de folga jogam cartas ou dominó, na cozinha de Popeye. Pescar, só quando chegar ao destino, São Simão.
Em Pederneiras, há um terminal intermodal. A soja chega de barco, é passada para vagões de trem e levada para o porto de Santos. Barco e trem são opções muito mais baratas do que caminhão (a cada um milhão de litros de diesel gastos por caminhão, consomem-se 52 mil por barco). A EPN, que carrega os vagões por esteira, diz que há um problema: pouca freqüência de trens para buscar a soja.
O começo da tarde surpreende o comboio com frio e chuva. O cenário das margens é o verde uniforme dos canaviais. A cabine do comando, envidraçada, um bom lugar para se apreciar o rio sob chuva. O comboio segue em sua toada, no devagar-e-sempre dos 12, no máximo 14 quilômetros por hora. Aproxima-se a Hidrelétrica de Bariri. Já há um comboio usando a eclusa. Outros dois, de transportar cana, surgiriam. Rush na eclusa.
Fazer a eclusagem com duas chatas, deixá-las, voltar para buscar as duas que ficaram pode demorar quatro horas. A tripulação não se impacienta. É seu trabalho. Enquanto espera, lota a cozinha de Popeye, que tem sempre café para oferecer. Às 19h, depois de 160 quilômetros de viagem, o JT desembarca em um pequeno porto de Bariri.

JT, 23/05/2004, p. A10-A11

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