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Terras que em se plantando nada dá

Azelene Kaingang
Autor: Azelene Kaingang
23 de Abr de 2003

A invisibilidade histórica a que fomos submetidos por sermos culturalmente diferentes, tornou-nos aquilo que queriam que fôssemos, pobres e miseráveis. A nossa diferença cultural desaparece em meio à pobreza, nivela-nos por baixo e torna-nos, agora sim, invisíveis.

A sociedade brasileira pensa que não existe fome entre os povos indígenas. Quando sabe, a tendência é dizer que são preguiçosos ou que têm terras improdutivas. Isso não é verdade. É preciso analisar que as terras indígenas que não estão na Amazônia sofreram um processo de exploração bastante irracional.

Essa história de que índio come caça e peixe, sobrevivendo dos produtos da natureza, já não existe há muito tempo em algumas regiões. A maior parte de nossas terras são ácidas, secas, desgastadas e minúsculas. Fomos vítimas de políticas irresponsáveis de governos passados.

Os povos indígenas em alto risco nutricional são os que perderam suas terras e vivem conflitos infindáveis pela reconquista das mesmas. São aqueles que, por força das circunstâncias, moram próximos às cidades, pressionados pela sociedade não-índia. Os que se encontram em alto risco nutricional são os Kaingáng/RS, Maxakali/MG, Kaiwoá/MS e alguns povos do Nordeste.

Um dos maiores índices de mortalidade infantil por desnutrição está entre os Kaingáng. Convivemos há pelo menos um século com políticas públicas equivocadas, entre as quais, o arrendamento ilegal de suas terras e a exploração madeireira.

Nas décadas de 1960 a 1980, foram implementados os programas de governo que arrendavam nossas terras para os não-índios, com o objetivo de torná-las produtivas. Para aumentar a área agricultável, o SPI (Serviço de Proteção ao Índio), órgão indigenista que precedeu a Funai (Fundação Nacional do Índio), instalou uma rede de serrarias oficiais nas terras Kaingáng, que vão do Rio Grande do Sul até São Paulo. Presenciamos conflitos armados e mortes em nome da colonização e da assimilação forçada. Tiraram do nosso povo a referência ancestral que a terra representa.

No Centro-Oeste, o problema mais sério é dos Kaiwoá, que não têm sequer onde construir suas casas. Em uma de suas terras, de 3 mil hectares, vivem 11 mil índios. Fica difícil imaginar que possam produzir seu próprio alimento. Quanto aos povos do Nordeste, se em país tão desigual ser nordestino é difícil, é inimaginável o que é ser um índio nordestino. Além de ser considerado incapaz, é chamado de preguiçoso por ter fome.

As pessoas resistem em analisar o contexto histórico do contato destes povos com a sociedade não-indígena. A invasão começou no Nordeste, tendo descido para o Sul, levando as famosas linhas de transmissão que também passaram pelo Centro-Oeste e pelo Sudeste. Em nome do progresso, levaram a pobreza. Somos e fomos considerados, em pleno século XXI, um obstáculo ao progresso.

Saída de emergência

Tive a oportunidade de vivenciar na minha aldeia Kaingáng, há alguns anos, a distribuição de toneladas de leite em pó. Só que não sabíamos como usar, apenas disseram para dissolver em água e foi o que fizemos. O que seria a solução para a fome no inverno do Sul do Brasil continuou matando nossas crianças que, além de desnutridas, passaram a ficar desidratadas.

A água estava contaminada com agrotóxico dos não-índios que plantavam em nossas terras. Revoltadas, as mães deixaram de usar o alimento. Em um dia de futebol na aldeia, precisava-se de cal para pintar as marcas do campo, como não tinha, os índios usaram o leite e acharam que foi um sucesso.

Isso é para demonstrar que se deve tomar muito cuidado com a simples distribuição de alimentos para os povos indígenas. O Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar (Mesa) já foi alertado sobre isso.

Há pelo menos um ano, a Warã Instituto Indígena Brasileiro e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) têm promovido, com um grupo de técnicos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - Pronaf, Embrapa, Funasa, Funai e líderes indígenas - discussões para que haja ampla consulta aos povos indígenas de todo o país, para a construção coletiva do "Programa Nacional de Etnosustentabilidade para os Povos Indígenas".

Pensamos que esta é a forma mais legítima de se propor a adoção de uma política pública que reflita efetivamente os desejos e as demandas desses povos na promoção da segurança alimentar. A proposta foi acatada pelo atual governo e está em execução. Serão realizadas 17 oficinas pelas mais diversas regiões do país com a participação de 25 lideranças indígenas, técnicos dos mais diversos órgãos de governo e organizações indigenistas não-governamentais.

Para se resolver a questão da fome e da pobreza entre os povos indígenas no Brasil deve haver, antes de tudo, um compromisso político do governo em demarcar e homologar terras indígenas. A ação deve ser entendida como um reconhecimento de um direito histórico dos povos indígenas sobre suas terras, não como uma concessão ou um favor. Não basta dizer que somos um país multicultural, as políticas públicas devem traduzir esta afirmação.

É necessário que se formulem e se definam políticas que resgatem as economias tradicionais desses povos. Já que a monocultura introduzida em nossas terras não deu certo, há que se respeitar os conceitos e os valores de ocupação, produção e economia dos indígenas, não disseminando o preconceituoso e ultrapassado discurso de que há muita terra para pouco índio e que a demarcação de terras é uma ameaça à soberania nacional.

É inacreditável que em pleno século XXI tenhamos que suportar este tipo de terrorismo, a ameaça de que as gerações futuras estão condenadas a abdicar de suas culturas porque necessitam ser "integradas", porque não podem ser "diferentes", mas iguais.

*Socióloga, membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), presidente do Warã Instituto Indígena Brasileiro

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