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Terra que não dá frutos

O Globo, País, p. 3
03 de Mar de 2013

Terra que não dá frutos
Pelo menos 36% dos assentados pela reforma agrária dependem do Bolsa Família para sobreviver

Cleide Carvalho
cleide.carvalho@sp.oglobo.com,br

Entre 1994 e 2011, o governo quase multiplicou por dez o número de assentamentos no país, de 934 para 8.565. Nos dois melhores anos para os sem-terra, 2005 e 2006, foram assentadas 263.864 famílias, o que significa cerca de 1,055 milhão de pessoas. É como se toda a população de Campinas, interior de São Paulo, ou de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio, tivesse sido reinstalada para começar vida nova. Já foram distribuídos 87 milhões de hectares (10,8% do território nacional). Mas a distribuição de terras não resolveu o principal problema dos sem-terra: a pobreza.
Hoje, 36% das famílias assentadas dependem de ajuda do Bolsa Família para sobreviver. Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 339.945 das 945.405 famílias que vivem em assentamentos recebem o benefício destinado aos 22 milhões de brasileiros classificados como miseráveis (renda por pessoa de até R$ 70, para famílias com ou sem filhos, e de até R$ 140 para famílias com filhos).
Terra pobre e Lotes Pequenos
Se consideradas todas as famílias de assentados inscritas no Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social que são pobres o suficiente para fazer jus a algum tipo de programa social (renda mensal por pessoa de até R$ 339), o número sobe para 466.218, o equivalente a quase metade (49%) de todas as que já receberam terras no país. Ou seja, de cada dez assentados, entre quatro e cinco não alcançaram emancipação financeira que permita retirar da terra, além do sustento, algum dinheiro para vestir, educar os filhos e ter confortos, desejos primários para quem se insere no mercado consumidor capitalista, cuja origem é justamente a propriedade da terra.
A situação dos assentamentos levou o secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, a dizer em fevereiro que eles se assemelham a "favelas rurais". Em janeiro, O GLOBO mostrou que oito em cada dez jovens já deixaram os assentamentos em busca de uma vida melhor, ou pretende fazê-lo, segundo a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Fetraf).
- Quando se candidatam à terra eles já são pobres. Depois de assentados, a qualidade de vida melhora, mas não muda o status de família pobre - diz Alexandre Valadares, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Os especialistas são unânimes ao listar os problemas da reforma agrária brasileira que impedem as famílias de gerar renda significativa. A começar pela qualidade das terras e o tamanho das propriedades, consideradas pequenas. Vários assentamentos são feitos em áreas de solo ruim ou que já foi esgotado pelo uso excessivo. Além disso, o crédito é difícil e escasso e os beneficiários têm dificuldade para se articular em torno de elementos fundamentais para o sucesso da produção, como obtenção de técnicas mais avançadas ou negociação com canais de distribuição e venda das mercadorias produzidas.
Os entraves levam muitos assentados a usar a terra só para morar e plantar para consumo próprio. Em sua tese de doutorado na Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp-Botucatu, defendida em 2011, Marcelo Magalhães diz que o grau de ocupação efetiva das terras disponibilizadas pelo Incra é baixo, só 23,6%, o que sequer permite o desenvolvimento de ganhos de escala.
Muitos assentados buscam ocupação fora de suas terras. Fazem serviços temporários em grandes propriedades rurais do entorno ou são prestadores de serviços nos centros urbanos próximos, em geral com trabalhos mal remunerados, como pedreiros.
Crateús (CE) é um retrato dos erros de um modelo de reforma agrária que perpetua pobreza. O nome da cidade significa "coisa seca ou lugar seco". Em junho passado, nove servidores do Incra foram condenados numa ação de improbidade administrativa por desapropriar, por R$ 622 mil, um imóvel rural considerado "imprestável" para assentamento, além de levar o órgão a gastar mais R$ 387 mil para tentar viabilizar o inviável, ou seja, o plantio.
O município abriga sete assentamentos federais e pelo menos 12 estaduais onde imperam, segundo a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará (Emater), culturas de subsistência (milho, mandioca e feijão) e dependência de recursos de programas sociais. Com 20% da população classificada como extremamente pobre, Crateús tem 10.386 famílias listadas no Bolsa Família, das quais pelo menos 1.514 são classificados como agricultores familiares e assentados.
- A maioria dos assentados espera por tudo do governo. E quem pegou crédito está inadimplente, à espera de anistia. Falta interesse - diz Wilson Mourão Soares, gerente da Emater no município.
No Ceará, 47% dos assentados têm renda máxima de um salário mínimo. Pior: 44% dessa renda são benefícios sociais dados pelo governo e 8% correspondem a ganhos com trabalhos externos, fora das terras recebidas. A produção agrícola responde por menos da metade da renda (48%), que já é pouca.
Estrada ruim dificulta escoamento
Mas há vários casos de reforma agrária bem sucedidos. Os assentamentos no país respondem por 9% da produção nacional de arroz e entre 8% e 11% dos feijões consumidos no Brasil, segundo o Censo Agropecuário de 2006. Em Santa Catarina, 76% da renda dos assentados são provenientes da posse da terra, seja produção de leite ou cultivo. Em Santa Catarina, os assentamentos são menores em extensão e em número de famílias, e inseridos numa região onde a agricultura familiar é tradição.
Um estudo feito pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário sobre qualidade de vida, produção e renda nos assentamentos, publicado em 2010, dá mostras do que pensam os assentados: 57,89% disseram que as estradas de acesso às terras são péssimas ou ruins, percentual que sobe para 65% no Norte e Nordeste; 21% que a água é insuficiente; e 56,14% informaram que não têm energia elétrica ou que o fornecimento é irregular.
O economista Guilherme Lambais, em sua tese de mestrado no Instituto de Economia da Unicamp, diz que a reforma agrária melhora a segurança alimentar, já que o beneficiário, pelo menos, planta para comer, mas ressalta que falta aos assentados um requisito fundamental para prosperar: o empreendedorismo.
- Muitos não buscam financiamento porque temem o risco e, por isso, não vivem da terra. Ou vão trabalhar fora ou vivem da assistência do governo. Não basta dar a terra, é preciso retirar as pessoas da armadilha da pobreza - afirma Lambais.
Segundo Lambais, os assentamentos mais bem sucedidos entre os visitados por ele num trabalho sobre o programa Cédula da Terra, onde os sem-terra financiam a aquisição da área, são os que têm uma liderança técnica, não política.
- As associações de assentados devem ser livres de interferências políticas para que os interessados possam se juntar por características semelhantes, com um objetivo comum. Há comunidades que se juntaram para plantar maracujá, por exemplo - afirma o economista da Unicamp.
Números
87 milhões de hectares é o total de terras em assentamentos entregues pelo governo.
339.945 famílias moram em assentamentos e recebem Bolsa Família.
21% dos assentados reclamam que falta água para irrigar as plantações prejudicando a produção.

'A gente não tem ajuda do Incra', diz assentado
Maioria dos sem-terra da zona canavieira de PE vive com o Bolsa Família

Em assentamentos rurais na zona canavieira de Pernambuco, é difícil encontrar uma residência não contemplada com o Bolsa Família. Nos municípios de Escada e Palmares, famílias de sem-terra sobrevivem apenas desse benefício ou o utilizam para complementar a renda que conseguem fazendo "ôias" (biscates) no corte de cana ou na construção civil. No assentamento Pirauíra, em Escada, a 62 quilômetros de Recife, há famílias morando em casas de taipa e em estrebarias. O assentado José Amaro Martins, militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), diz que a única renda certa dele, da mulher e dos dois filhos são os R$134 do programa do governo.
No São João da Prata, em Palmares, a 125 quilômetros do Recife, mais de 80% dos lavradores recebem o benefício do governo no assentamento, coordenado pela Federação dos Trabalhadores de Agricultura de Pernambuco (Fetape). Em situação um pouco melhor do que os de Escada, os assentados de Palmares moram em casas de alvenaria, mas sem abastecimento de água, que só chega nas casas em cacimbas. Segundo o Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Palmares, Gilvanildo Marques dos Santos, o Incra só decidiu construir as residências dos assentados após muita pressão dos movimentos sociais, já que os ex-sem-terra tiveram as casas de taipa destruídas numa cheia em 2010.
Cícero Cavalcanti da Silva, de 45 anos, luta com a mulher, Severina Maria de Lima, de 44, para sustentar sete filhos, com idades de 7 meses a 18 anos. Após enfrentar desemprego na entressafra de cana, conseguiu emprego fixo numa usina e está, finalmente, ganhando um salário mínimo, o que dá uma renda de R$ 75 por pessoa. Diz que não pode abrir mão dos R$ 268 da ajuda federal.
- O dinheiro do Bolsa Família é o certo. Emprego a gente tem hoje, mas não amanhã. A gente não tem nenhuma ajuda do Incra. Nem crédito nem assistência técnica, e, este ano, o roçado não rendeu nem uma macaxeira (aipim) devido à seca. Se não fizer um bico lá fora e não tiver a ajuda, vai viver de quê? - indaga Cícero.
Situação semelhante foi constatada no município paulista de Agudos, onde vive Maria Aparecida Fernandes, de 37 anos. Abandonada pelo marido, ela viveu cinco anos com os três filhos à beira da estrada. Foi atraída pela possibilidade de ganhar um lote de terra, onde poderia ter uma casa, plantar e tirar dali seu sustento. Foi parar num acampamento do MST, na região de Bauru, em São Paulo. Em 2009 conseguiu um lote no assentamento Loiva Lurdes, na estrada que liga os municípios de Agudos e Borebi (SP).
Produção quase nula
Maria ocupou seus seis alqueires de terra em 2010. No fim de 2011, o assentamento passou a ter água e luz. Mas, até hoje, para sair de casa ou voltar, tem de caminhar 6,2 quilômetros por uma estrada de terra. Ela não produz nada. Já plantou e vendeu pimenta, sem sucesso. Hoje, tem três pés de jiló, dois de pimenta e quatro árvores frutíferas em volta da casa inacabada. Com filhos, com idades entre 17 e 20 anos, vive do salário de um deles, que trabalha como pedreiro na cidade, de um auxílio-doença do INSS, de R$ 70 do Bolsa Família e de R$ 38 do Benefício Jovem, pago a um filho menor de idade.
Da terra, não vê um centavo. Não pegou o crédito de R$ 20 mil do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) para investir, temendo não conseguir pagá-lo.
- Aqui era fazenda de cana, que deixou a terra ruim. Mandei analisar e disseram que o solo é ácido, precisa de muito calcário. Tentei plantar horta mas, quando começa a crescer, morre tudo - diz Maria, que cursou até a 6ª série do ensino fundamental e, agora, junta sementes de seus pés de jiló para tentar aumentar a plantação.
Maria comprou três vacas com dinheiro dos filhos, que fazem bicos, mas hoje só tem duas. Uma quebrou a perna e Maria pediu ajuda do Incra, que não mandou veterinário. Ela e os filhos tentaram fazer "uma cirurgia", que não deu certo, e a vaca morreu. Com dó de comer a carne, deu o bicho morto para outro assentado.
- Ninguém aqui teve coragem de comer - diz Maria, com os olhos cheios d'água. (Letícia Lins e Cleide Carvalho).

O Globo, 03/03/2013, País, p. 3

http://oglobo.globo.com/pais/bolsa-familia-sustenta-um-em-cada-tres-ass…
http://extra.globo.com/noticias/brasil/a-gente-nao-tem-ajuda-do-incra-d…

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