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Terra produtiva pode ficar sem punicao, diz Carta

FSP, Brasil, p.A13
23 de Fev de 2004

Trabalho Escravo - Emenda visa permitir expropriação de fazendas com escravos, mas lei protege áreas produtivasTerra produtiva pode ficar sem punição, diz Carta
IURI DANTASEDUARDO SCOLESEDA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O texto da emenda constitucional em tramitação no Congresso Nacional que prevê a expropriação de terras nas quais for constatada a existência de trabalho escravo abre espaço para que as áreas consideradas produtivas fiquem imunes à punição.Isso porque a redação da proposta de emenda não sugere modificações no artigo 185 da Constituição de 1988, que coloca as áreas produtivas como "insuscetíveis" de desapropriação. Os índices de produtividade são verificados pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).O artigo constitucional 185 é considerado até hoje, além de uma proteção para os fazendeiros, como a maior vitória alcançada pela bancada ruralista e pela UDR (União Democrática Ruralista) durante o Congresso constituinte (1987-1988).O artigo 185 praticamente anulou os efeitos de um outro artigo, o de número 186, tido como pró-sem-terra e que sugere a desapropriação de áreas que não cumprem sua função social (produtividade e respeito às leis trabalhistas e ambientais)."Sem dúvida [o artigo 185] será o nosso paredão a partir do momento que se aprove essa proposta no Congresso. É uma forma de defesa, e vamos utilizá-lo", afirmou o advogado agrário Fernando Neves Baptista, que presta serviços à UDR nacional.ExpropriaçõesO objetivo da emenda do trabalho escravo, em discussão, é dar uma nova redação ao artigo 243 da Constituição, que prevê apenas a expropriação de áreas em que haja o cultivo ilegal de plantas psicotrópicas, como maconha. Com a nova redação, as expropriações atingiriam também as áreas onde houvesse trabalho escravo.Outro advogado agrário, José Theodoro de Araújo diz que nenhum artigo da Constituição, numa referência ao 243, pode ser aplicado ou interpretado de forma isolada. "O contexto geral da Constituição é que vale, em caso contrário, sem dúvida, poderá haver contestação."Para o advogado agrário Diamantino Silva Filho, "é preciso que o conceito de trabalho escravo fique muito claro no texto legal, porque senão haverá um ditatorial confisco de imóveis rurais", argumenta."O trabalho escravo é aquele que o trabalhador exerce tendo como remuneração: o transporte para o local do trabalho; alimentação; roupas; calçados; remédios, que só podem ser adquiridos da fazenda", afirma Diamantino.
Essa lei será a segunda Abolição, diz ministro
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA Antigo defensor do confisco de terras onde exista mão-de-obra em condição análoga à escravidão, o ministro Nilmário Miranda, titular da Secretaria Especial de Direitos Humanos, classificou como "contorcionismo" o argumento dos ruralistas baseado na previsão constitucional que impede a desapropriação de propriedades produtivas. Leia a seguir trechos da entrevista: 
Folha- A Constituição diz que as propriedades produtivas são "insuscetíveis" de desapropriação. O confisco ficará limitado às áreas improdutivas?Nilmário Miranda - Não depende disso. Estamos falando de impedimento do bem. Já existe essa tradição, como no caso dos traficantes, que perdem aeronaves, apartamentos. É uma questão penal. Desde a Constituição [de 1988], não existe direito de propriedade absoluto no Brasil e muita gente ainda não entendeu. Apelar para questão da propriedade produtiva é contorcionismo.
Folha - Essa emenda constitucional vai solucionar o problema da mão-de-obra escrava?Nilmário - No caso de trabalhador escravo, passou da porteira para dentro, o dono não tem como dizer que não sabe. Se delegou a contratação para outro, problema dele. Se o confisco for aplicado poucas vezes, vai acabar com o trabalho escravo, com papel educativo de intimidação. As pessoas já dizem que essa lei vai ser a segunda Abolição.
Folha - Por quê?Nilmário - A gente pode dizer que ainda há impunidade. A nossa lei estabelece de dois a oito anos de prisão no caso de trabalho escravo, mas na prática as penas viram alternativas, como doação de cesta básica. O impedimento do bem [imóvel rural] é uma punição definitiva.
Folha - Há casos de parlamentares acusados de usar trabalho escravo em suas fazendas. Isso dificulta a aprovação da emenda que prevê a expropriação das terras?Nilmário - Não acredito que a resistência vá conseguir impedir a aprovação. Com a morte dos fiscais do trabalho em Unaí, a sociedade está indignada. (ID e EDS)
UDR vê emenda com "extrema preocupação"
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA O presidente nacional da UDR (União Democrática Ruralista), Luiz Antonio Nabhan Garcia, afirma estar "extremamente preocupado" com a tramitação da emenda constitucional que estabelece a possibilidade de expropriação de terras cultivadas com mão-de-obra escrava.Segundo ele, que encara o artigo 185 da Constituição como uma forma de "proteção jurídica" dos fazendeiros, a proposta de emenda é uma "válvula de escape usada pelo governo para conseguir terra sem colocar a mão no bolso". 
Folha - A Câmara está apressando a aprovação da emenda constitucional que propõe a expropriação de terras com trabalho escravo. Isso o preocupa?Luiz Antonio Nabhan Garcia - Eu estou extremamente preocupado, principalmente porque já existem leis para coibir o trabalho escravo. Isso é uma válvula de escape utilizada pelo governo para conseguir terra sem colocar a mão no bolso. Eu não vou dizer que todos os proprietários de terra são corretos, mas radicalizar é uma forma inconseqüente que os nossos inimigos encontraram para tirar a terra dos fazendeiros.
Folha - Quem são esses inimigos?Nabhan Garcia - O deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, que preside a comissão [de Constituição e Justiça] que aprovou essa proposta, é um deles. Esse homem sempre atuou contra os fazendeiros e a favor do MST, que é uma organização criminosa. Infelizmente no poder há pessoas movidas por ideologias.
Folha - E sobre os critérios sobre o que será considerado uma área com trabalho escravo?Nabhan Garcia - Eu é que pergunto. Quem vai definir isso? Alguém já viu algum trabalhador levando chibatadas em uma propriedade rural? Eles querem confundir a sociedade. Isso será definido pelas ONGs, pelo Márcio Thomaz Bastos [Justiça] ou pelo Miguel Rossetto [Desenvolvimento Agrário]?
Folha - Mas vocês, por enquanto, ainda têm o trunfo do artigo 185 da Constituição...Nabhan Garcia - É claro que é uma forma de defesa jurídica.
Entenda a PEC
Proposta de Emenda à Constituição, número 438/2001
O QUE É? - Aprovada no Senado e em tramitação na Câmara, a proposta prevê a expropriação (retirada do título de posse sem indenização ao proprietário) de terras nas quais for constatada a existência da exploração de trabalho escravo
O QUE MUDA? - Pede a inclusão da exploração de trabalho escravo no artigo 243 da Constituição, que atualmente aponta apenas para a expropriação de áreas em que haja culturas ilegais de plantas psicotrópicas (como maconha)
Dúvidas
Falta definir quais serão os critérios para definir que uma área abriga trabalhadores em situação análoga à escravidão. Irregularidades trabalhistas vão desde à não-assinatura de carteira até o serviço em troca de alimento

Só no papel
0 artigo 1866 da Constituição já prevê a desapropriação de áreas nas quais haja desrespeito à sua função social (produtividade e o cumprimento das leis ambientais e trabalhistas). No aspecto trabalhista, porém, o artigo é ignorado

Bloqueio ruralista
Nem sequer citado na PEC, o artigo 185 da Constituição será mantido e poderá frear as expropriações em áreas com trabalho escravo. Segundo o artigo, áreas produtivas são "insuscetíveis" de desapropriação

Memória
Até hoje, o artigo 185 é considerada a maior vitória da bancada ruralista na Constituinte 1987-88. Sob pressão da UDR (União Democrática Ruralista),o artigo 185 praticamente anulou o 186, tido como pró sem-terra

Competência
Ainda não há definição sobre a quem cabe julgar a exploração de mão-de-obra em condição análoga à escravidão, se à Justiça Estadual ou à Federal. Questionado sobre isso, o STF (Supremo Tribunal Federal) ainda não se manifestou

Produção x escravidão
Na prática, com base na Constituição, advogados agrários podem alegar à Justiça que, mesmo após um flagrante de irregularidades trabalhistas, uma área produtiva não pode ser destinada à reforma agrária

NA PRÁTICA - Os fiscais do Ministério do Trabalho consideram a existência de mão-de-obra escrava quando os trabalhadores são impedidos de deixar a fazenda, seja por pressão moral na forma de dívidas impagáveis, seja por meio da retenção de documentos ou dos salários
15 mil
trabalhadores foram libertados de fazendas nas quais trabalhavam em condição análoga à escravidão nos últimos oito anos no país

25 mil a 200 mil
é a variação do número estimado de trabalhadores escravizados no país hoje segundo a CPT (Comissão Pastoral da Terra) ou Kevin Bales, especialista norte-americano

Fonte: Ministério do Trabalho, Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência, Constituição e Folha

FSP, 22/02/2004, p.A13

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