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A terra preta e promissora

O Globo, O Globo, p. 24 a 27
02 de Out de 2012

A terra preta e promissora
Oculto por milênios na imensidão da Amazônia, solo negro e fértil criado por homem pré-histórico é redescoberto por cientistas, que agora tentam replicá-lo em laboratórios

Renato Grandelle
renato.grandelle@oglobo.com.br

Primeira construção da cidade de Belém do Pará, fundada em 1616, o Forte do Castelo, alicerçado originalmente em madeira e palha, foi erguido sobre uma camada de entulho de 80 centímetros. Abaixo deste material, expedições arqueológicas encontraram uma porção de terra estranha e mais escura. As pesquisas apontaram que a região foi ocupada por populações menores quando ainda atendia por Presépio, séculos antes de a edificação militar, hoje museu e ponto turístico, tornar-se uma necessidade.
Aquela terra preta precisou de tempo para despertar a curiosidade dos cientistas. O consenso era que um ambiente de alta pluviosidade como uma floresta tropical só poderia ter solos ácidos e pobres em nutrientes - nada propícios, portanto, para a agricultura.
Foram poucos os naturalistas que acreditaram, já no século XIX, que a Amazônia é muito mais heterogênea do que aparenta.
Os estrangeiros foram os primeiros a associar a coloração escura do solo à uma maior fertilidade. E, mais ainda, a ocupações passadas. O alemão Curt Unkel - que, em 1922, naturalizou-se brasileiro, e trocou seu sobrenome para Nimuendajú - percebeu que as terras pretas foram desenvolvidas por meio de atividades promovidas por habitações indígenas. Nimuendajú chegou a mapear os sítios onde havia aquele chão fértil.
Cabem duas ressalvas: os índios, ao contrário do que se pensava, não usavam as terras exclusivamente para a agricultura. E o mapeamento, referente aos anos 1920, era bastante primitivo em detalhes, dependendo basicamente da observação direta dos assentamentos.
- Os índios simplesmente viviam naqueles locais - explica a geoarqueóloga Dirse Kern, do Museu Paraense Emílio Goeldi. - Encontramos marcas de cerâmica, enterros de mortos, enfim, denúncias de que tratavam-se de ocupações intencionais. Dirse foi a responsável por ressuscitar, e de vez, o debate sobre as terras pretas, o que fez em 1989, em sua dissertação de mestrado. De Nimuendajú até então, muito pouco havia se avançado naquele tema. Só nos últimos anos descobriu-se que a coloração do solo não é gratuita. Deve-se principalmente à presença de material orgânico decomposto, como restos de carvão de fogueiras. Os elevados teores de substâncias como carbono, fósforo, cálcio e magnésio são resultantes das sobras de cinzas, peixes, conchas, caça, cerâmica, dejetos humanos, entre outros compostos.
Também foi possível expandir - e muito - a área rastreada por Nimuendajú. Mesmo assim, estima-se que ela vai crescer bastante nos próximos anos, devido às dificuldades ainda existentes para explorar a Bacia Amazônica. Hoje, estima-se que até 0,3% do trecho brasileiro da floresta, o equivalente a 18 mil km², são cobertos pelas terras pretas. As dezenas de pesquisadores que se debruçam sobre este solo, no entanto, calculam que ele poderia corresponder a até 1% do bioma amazônico.
A área já mapeada tem tamanho respeitável, mas não é explorada comercialmente. Como os sítios são muito fragmentados, e a maioria é muito pequeno - varia entre dois e dez hectares -, apenas a agricultura de subsistência ainda faz uso de sua fertilidade. Nela, plantase principalmente mandioca, banana, milho e mamão sem adubo ou nutriente.
A viabilidade econômica do solo negro é, hoje, a maior vitrine entre aqueles que estudam o solo. O conceito de "terra preta nova" foi criado para definir as tentativas de replicar, em laboratório, aquilo que o homem primitivo fez na Amazônia ao misturar, no mesmo espaço, por milênios, fogueiras, dejetos, pertences e comidas.
Pesquisador do Instituto de Educação, Agricultura e Ambiente da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Milton Campos acredita que, antes de levar a terra para o laboratório, é necessário analisá-la com mais detalhes nos sítios arqueológicos.
- Não tenho dúvidas de que será possível replicá-la a médio ou a longo prazo, mesmo fora do bioma Amazônia - afirma. - Mas, antes, é preciso estudar a gênese dos diferentes sítios deste solo e suas variações. A terra não tem um desempenho uniforme. Aqui ela pode ser mais fértil do que ali. Depois que entendermos melhor todo esse processo, teremos condições de avançar para a produção.
O professor José Marques Júnior, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (Unesp), não tem a mesma certeza. E, além da grande quantidade de elementos químicos presentes na equação, ele lembra que boa parte da pesquisa está concentrada fora do país. Por aqui, a maior parte dos estudos está concentrada na arqueologia. O viés econômico - que viria com a agronomia e as ciências do solo - é ainda novidade.
- Temos os ingredientes, que são muitos, mas precisamos saber qual é a concentração de cada um - lembra. - Há um expressivo número de pesquisadores, principalmente estrangeiros, interessado em descobrir o segredo destas terras. A ciência está tateando, mas é um desafio fabricar um produto com essas qualidades extraordinárias, relacionadas à nossa sobrevivência, que o planeta demorou milênios para desenvolver.
Pesquisador da Embrapa Solos, sediada no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Wenceslau Teixeira foi no mês passado à China para apresentar os últimos esforços brasileiros na pesquisa com a terra preta. Os resíduos orgânicos que sustentaram a terra preta, como fragmentos de cerâmica, foram cruciais para estabilizar o CO2 no solo.
- Para criar um solo fértil nas condições tropicais você precisa de nutrientes e de características específicas da terra, para que ela não vá embora na próxima chuva - explica. - Nós descobrimos que a matéria orgânica aquecida pode ficar estável e criar cargas. Agora precisamos adicionar os nutrientes. O conceito que temos hoje é usar os nossos resíduos orgânicos para isso, dos resíduos da cozinha aos excrementos. Existe um esforço mundial de pesquisa, mas o Brasil não pode perder o protagonismo.
O mais novo investimento científico é em sensores de campo capazes de detectar a maghemita, um óxido de ferro característico da terra preta - nos solos naturais, a representatividade desse mineral é irrelevante. Quanto mais precisos esses equipamentos, menores as necessidades de levar o solo para análises em laboratório. Afinal, nem todo solo escuro na Amazônia é a famosa terra preta tão cobiçada por grupos empresariais.
Replicar a terra preta seria um negócio bom para todos os lados. O empresário não precisaria correr atrás de aditivos químicos para aumentar sua produção. E o meio ambiente não sairia ferido por esta atividade. Pelo contrário. O solo negro tão visado consegue reter seis vezes mais CO2, um dos gases do efeito estufa, do que qualquer outro solo brasileiro. Estima-se que até 2080 a temperatura na Amazônia Ocidental pode aumentar seis graus Celsius. Os mesmos prognósticos indicam a redução da pluviosidade - mistura que resultaria em uma mortandade generalizada na floresta. Se uma agricultura sustentável ganhar espaço na região, contribuindo para evitar este cenário catastrófico, melhor.
"Não tenho dúvidas de que será possível replicar a terra preta a médio ou a longo prazo" Milton Campos, Pesquisador do Ufam.

Esperando a tecnologia
0,3% da Amazônia brasileira é coberta pela terra preta. Esta região teria 18 mil km². Mas avanços tecnológicos, como novos métodos de rastreamento do solo, fazem alguns pesquisadores defenderem a tese de que o espaço ocupado por esta terra chegaria a 1%. Normalmente ela aparece em pequenos fragmentos, em espaços de 2 a 10 hectares, o que inviabiliza a sua exploração comercial no país.

O Globo, 02/10/2012, O Globo, p. 24 a 27

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