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Terra Indígena Yanomami sofre com segunda investida do garimpo ilegal

O Globo, Brasil, p. 12 e 13
29 de Jan de 2023

Terra Indígena Yanomami sofre com segunda investida do garimpo ilegal
Ao contrário de invasões dos anos 1980 e 90, invasores avançam com dragas pesadas, barulhentas e mais destrutivas

Por Lucas Altino e Paula Ferreira - Rio e Brasília
29/01/2023 04h30 Atualizado há 7 horas

Há cerca de mil anos, o Noroeste de Roraima e a Venezuela já eram ocupados por eles, no entorno da Serra Parima e do Rio Orinoco. Milhões de hectares de rios e montanhas no coração da floresta foram, por séculos, casa abundante para uma das maiores populações indígenas que o país já teve. Guardiões da mata, os ianomâmis são guerreiros ancestrais, somam mais de 30 mil pessoas em 228 aldeias protegidas pelo verde da Amazônia. Ianomâmi quer dizer "seres humanos". Centenas de anos se passaram até que o nome da etnia, consagrado pela antropologia, ganhasse um sentido trágico: o inferno é o outro, neste caso, o garimpo.
A cortina do descaso cai, mais uma vez, sobre a história dos ianomâmis que quase sucumbiram ao seu maior inimigo nos anos 1980 e 90. Cerca de 40% morreram na primeira corrida pelo ouro, que chegou a reunir uma horda de 40 mil criminosos à época. A saga de sobrevivência, a duras penas, se repete. Antes mais artesanais, os garimpeiros hoje avançam com dragas pesadas, barulhentas e muito mais destrutivas.
- Se 40 mil garimpeiros fizeram um grande estrago à vida indígena, agora, 20 mil são capazes de exterminar a etnia. Junte-se a isso a entrada de traficantes de drogas, que vêm completar o sequestro dos indígenas - alerta a antropóloga Alcida Ramos, que, no passado, diante da ameaça do garimpo, atuou no processo de demarcação do Território Indígena Yanomami. - A aura artesanal do garimpo ilegal acabou, e há empresários e políticos poderosos que financiam insumos e máquinas.

Olhar para os ianomâmis no passado e olhá-los hoje choca. Os rostos, sobretudo das crianças, estão fundos e derretidos pela fome. Com a caça afugentada pelas máquinas e com os rios contaminados por mercúrio, usado na separação do ouro, falta comida e água. Empoderados pelo discurso do ex-presidente Jair Bolsonaro, o garimpo ilegal, de outubro de 2018 a dezembro de 2022, contribuiu para aumentar o desmatamento em 309% dentro da reserva, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA). As violações dos direitos dos indígenas e os crimes ambientais são pano de fundo da crise humanitária que levou à decretação de Emergência em Saúde Pública nas terras ianomâmis pelo recém-iniciado governo Lula.
A malária é um importante marcador do potencial de destruição do garimpo. Malária e garimpo têm uma ligação univitelina. Com base em dados do Distrito Sanitário Especial Indígena, o Mapbiomas traçou o caminho da doença no rastro da atividade criminosa, nas últimas duas décadas. O gráfico escancara uma curva praticamente igual entre as duas variáveis. Com pouco garimpo, 2003 teve 246 registros de malária no território. Em 2021, no auge da ocupação, foram 21.883. No ano passado, teriam sido 12.754 casos, um recuo atribuído à subnotificação com o fechamento dos polos de saúde do distrito.

Com desnutrição e doenças disseminadas, um dos rituais mais tocantes da etnia se tornou comum. Nos últimos quatro anos, o Ministério da Justiça estima que 570 crianças morreram pela contaminação por mercúrio, desnutrição e fome. Em algumas comunidades, o índice de crianças desnutridas beira 70%, aponta relatório "Yanomami sob Ataque" da Hutukara Associação Yanomami.
Quando um ianomâmi morre, a aldeia se junta no Reahu para que o espírito se desprenda do mundo dos vivos e siga para o céu. As fotos de ianomâmis com fome, autorizadas por eles próprios, que passaram a circular até em redes sociais, ganham um outro significado ao se saber que este é culturalmente um momento sagrado e de resguardo. Para seguir vivendo, eles precisam esquecer os mortos. O corpo é cremado, as cinzas e os objetos pessoais enterrados. Fica o silêncio.
Nas últimas semanas, os guerreiros adotaram uma nova estratégia para escapar do fim: expor os corpos magros, a falta de assistência e a violação de direitos. É preciso: no momento, há mais de 700 indígenas em hospitais de Boa Vista, resgatados por helicópteros da FAB. Ou que chegam a pé, em busca de ajuda, após longas jornadas de mais de 200 quilômetros.
-Houve um dilema, porque se não tivessem essas imagens tão impactantes, sobre a crise humanitária que estão vivendo, não teria causado essa comoção. Então foi preciso apresentar as fotos, mesmo sabendo da angústia que pode causar entre parentes de falecidos - explicou Hanna Limulja, antropóloga e autora do livro "O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos yanomami".
Em sua pesquisa, Limulja abordou o universo dos sonhos dos ianomâmis, outro tipo de vivência afetado pela crise humanitária.
- A relação com sonhos é parecida com o processo da morte . A pessoa ianomami é composta por várias partes e uma delas é a imagem que fica dentro do corpo. Quando sonha, essa imagem sai do corpo e vai viver as coisas no tempo do sonho. Isso tudo que afeta a imagem, afeta a pessoa. Então o sonho é fundamental como forma de conhecimento, porque consegue chegar a lugares distantes, conhecer seres desconhecidos através do sonho. E os mortos podem aparecer nos sonhos, o que se transforma num sonho perigoso, pois deixa a pessoa mais vulnerável.
Quando se fala em extermínio, a preocupação é real. Há dados científicos para ativar o botão de alerta. Os pesquisadores Bruce Albert, antropólogo e um dos pioneiros nos estudos sobre os ianomâmis, e Estevão Senra, pesquisador do ISA e também especialista no tema, com base em dados da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) do ano passado, mostraram que 76% da população ianomâmi têm menos de 30 anos.
A pirâmide demográfica se explica primeiro pela alta mortalidade na primeira corrida do ouro, que teve como ápice o massacre de Haximu, com 16 mortos, em 1993, primeiro caso de genocídio com condenação no Brasil. Após as terras terem sido demarcadas nos anos 1990, a estruturação de programa de saúde melhorou a qualidade de vida e a taxa de natalidade deu um salto. Os casamentos entre integrantes de aldeias diferentes foram outro fator sociocultural importante.
A saga ianomâmi teve outra reviravolta, nos últimos dois anos, com a escalada da mortalidade infantil. Agora, em uma população jovem e debilitada, e sem tantos velhos. Além da vida em si, há risco para a vida do povo como um todo com a quebra da cadeia de ancestralidade, em que uma geração passa a outra seus fundamentos culturais.
- Situação hoje deveria estar melhor. A homologação da terra foi fundamental. Mas nos últimos anos houve incentivo, em vez de proteção - afirma Hanna Limulja, que acredita que um plano para remoção dos invasores precisa passar por estratégia binacional, com a Venezuela.
Comunidades exploradas na primeira corrida do ouro sob forte ameaça
Hoje, as áreas mais exploradas são aquelas que já foram garimpadas nos anos 1980 por haver conhecimento geológico prévio. Ricas em rochas abundantes em minérios, Homoxi e Surucucu são mais cobiçadas e vulneráveis. Em Homoxi, garimpeiros sequestraram, há cerca de dois anos, as pistas de pouso usadas por profissionais médicos e para abastecer os polos de saúde.
- Homoxi é uma das que correm risco de desaparecer, pois está há mais de dois anos sem atendimento de saúde - afirma a antropóloga Ana Maria Machado, que trabalha junto aos ianomâmis. - A desnutrição já era um problema em comunidades nas serras, onde há menos caça disponível, mas é inegável que a última gestão formou a tempestade perfeita para a crise humanitária que vemos hoje. Foi uma degradação contínua, que agravou muito nos últimos seis meses, com a combinação entre o garimpo, as boiadas que o governo passou e o desmonte da saúde indígena.
Médica sanitarista, a pesquisadora da Fiocruz Ana Lúcia Pontes integra a força-tarefa organizada pelo governo para socorrer os ianomâmis. Ela conta que os especialistas alertaram as autoridades sobre a crise. Como a logística é um obstáculo importante, Pontes explica que o ideal é reativar os polos de saúde locais.
- Houve omissão do estado e subestimação do problema - afirma. - Tem um serviço, mas ele não está funcionando. Em alguns lugares, a gente tem uma completa desassistência, porque tem unidades de saúde fechadas por conta da insegurança causada pelos invasores.
Uma médica de Roraima passou 14 dias velando a saúde de Heixa Yanomami, que foi encontrada em uma comunidade só pele e osso. Sem autorização para falar, a profissional cedeu a fotografia da criança deitada numa rede. Ao contrário de outras centenas que não resistiram aos maus-tratos, Heixa ganhou peso e sobreviveu.
Como o garimpo atua
O poderio do garimpo cresceu após a maior facção de tráfico do país ter dominado o estado de Roraima, no que passou a se chamar de "narcogarimpo". Atualmente, há 421 pontos de garimpos mapeados dentro da terra indígena, segundo o Ministério Público Federal de Roraima. Os criminosos têm ainda outras frentes, como a extração de madeira e na pesca ilegal. O órgão critica o fato de o governo federal ter optado por operações em ciclos de cinco a 15 dias em 2021, enquanto a exigência judicial era de total remoção dos invasores. Os procuradores da República alertaram para a existência de um plano do Ibama, nunca aplicado, para ocupar por seis meses toda a região até a saída definitiva do garimpo.
O relatório "Yanomami sob ataque" narra que os garimpeiros aliciam jovens indígenas e até lideranças e exploram o abandono, com ofertas de dinheiro e até bebidas alcoólicas. As mulheres são vítimas de estupros. No fim do ano passado, pouco antes da eleição, o vice-presidente da Hutukara, Dário Kopenawa, postou um vídeo que seria inimaginável há poucos anos. Em língua nativa - são seis ao todo - que ganhou legenda, um deles fez um apelo ao novo governo: "Quero continuar vivo. Quero criar meus filhos".
A presença do garimpo muda a dinâmica entre os subgrupos dos ianomâmis e chega a fomentar conflitos entre eles. Primeiro, o desmatamento causado pelo garimpo desequilibra o ecossistema, com fuga e morte de animais, e contaminação do solo, dos rios e dos peixes por causa do mercúrio. Além disso, grandes poças de águas paradas são abertas, o que prolifera a população de mosquitos que podem transmitir doenças.
Com as comunidades desarticuladas e o território escasso de alimentos, os indígenas ficam na mão dos garimpeiros, que não só os aliciam como também vendem a eles comidas industrializadas e de baixa qualidade. Entre os adultos, o diabetes se tornou mais comum. Entre as crianças, a desnutrição se agravou. A desestruturação é social e ambiental.
-- O garimpo instala, nas comunidades indígenas e arredores, um contexto de guerra. Não pode andar de qualquer jeito em qualquer lugar, é precisa ter cuidado com o que fala -- diz Luisa Molina, antropóloga do ISA, e que critica a falta de ação do governo Bolsonaro, e o estímulo às invasões. -- A Terra Indígena existe para garantir a sobrevivência física e cultural de um povo. Mas o garimpo faz o avesso, faz a desestruturação total, transforma a comunidade num lugar de insegurança, onde não têm segurança alimentar e liberdade.
O "contexto de guerra" foi descrito ainda na década de 1990 pelo então senador Severo Gomes. Como conta antropóloga Alcida Ramos, na época, após visitar uma área de garimpo na TIY, o parlamentar exclamou: "Isto é um Vitenã!". Os traços que chocaram Gomes estão presentes até hoje na atuação garimpeira. De acordo com a antropóloga, a ação de exploração degrada o território nos mínimos detalhes configurando um "pandemônio".
- O maquinário usado para demolir encostas e escavar os leitos dos rios produz ruído e fumaça em abundância, afugentando os animais de caça, deteriorando as águas e acabando com os peixes, além de despejarem quantidades perigosas de mercúrio que afeta o sistema nervoso e acaba com a fauna aquática. Os grandes rasgos lamacentos que se formam interceptam trilhas que levam às roças e a outras aldeias, isolando os habitantes das comunidades. Fica impossível plantar, caçar, pescar, coletar - explica.
Governo promete proteção
Ariel de Castro Alves, secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, promete reagir com políticas públicas contínuas. A partir desta segunda, novas equipes do governo federal chegarão a Roraima.
- A interrupção do ciclo de violações de direitos só ocorrerá com a retirada dos garimpeiros da terra indígenas e a disponibilização de políticas públicas de saúde, alimentação, educação, assistência social, escuta especializada e segurança territorial de forma permanente. - diz o secretário, que critica a omissão passada. - A gestão anterior do governo federal foi explicitamente conivente e até apoiou o garimpo de forma proposital para desmantelar a assistência de saúde e a fiscalização do território.
Comunidades ainda não afetadas pelo garimpo prosperam
Enquanto em Roraima as crianças ianomâmis morrem de fome, o fotógrafo e indigenista Renato Soares registrou, no ano passado, na aldeia Maturacá, perto da fronteira com o Amazonas, um lado de beleza e comunhão com a natureza dos ianomâmis que foi esquecido nos últimos dias. Durante 45 dias, ele fez muitos flagrantes de crianças com rostos espertos se divertindo em rios. Lá, o garimpo está mais distante.
- Os ianomâmi são gentis e têm uma cultura fantástica. Nos receberam bem e gostavam de ensinar sua língua. Com mais quatro anos de governo Bolsonaro, os garimpeiros chegariam a todas as aldeias - acredita o profissional, que há quase 40 anos fotografa indígenas de várias etnias e se prepara para lançar um livro.

O Globo, 29/01/2023, Brasil, p. 12 e 13.

https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/01/terra-indigena-yanomami…

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