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Terra de poliglotas

FSP, Mais, p. 6
Autor: LEITE, Marcelo
09 de Mai de 2010

Terra de poliglotas
Na região da Cabeça do Cachorro, é comum a população saber pelo menos três línguas

Do enviado especial ao Alto Tiquié (AM)

A região da Cabeça do Cachorro, no noroeste do Amazonas, fronteira com a Colômbia, é um exemplo peculiar de território multicultural. Convivem ali, em seis terras indígenas com cerca de 110 mil km2 -uma área maior do que a de Portugal-, mais de 21 mil índios de 22 etnias.
Esta parte da bacia do rio Negro é habitada há pelo menos 2.000 anos. As línguas faladas são muitas, de três famílias -tucano oriental, aruaque e macu- distantes umas das outras e dos troncos principais tupi e jê. Fala-se também o nheengatu, língua geral formalizada pelos jesuítas, com base no tupi, em outras paragens do Brasil em formação.
Quem levou o nheengatu para lá foram religiosos católicos, que o espalharam pelo rio Negro. Nos rios Uaupés, Tiquié e Papuri, vingou como língua franca o tucano, espontaneamente adotado nos colégios internos multiétnicos da região mantidos pelos padres salesianos até os anos 1970.
O idioma tuiuca, por exemplo, pertence à família tucano oriental. A distância que o separa do tucano falado por todos no Tiquié é similar à que existe entre o português e o francês. Como os índios da região só se casam com mulheres de outro povo (sistema exogâmico), é comum uma pessoa falar três línguas ou mais, incluindo o português.

Escola comunitária
Além da disciplina rígida, se preciso fosse com castigos físicos, os padres proibiam falar as línguas de origem. Impunham o casamento, condenavam rituais indígenas e habitações coletivas (malocas). Idiomas como o tuiuca quase desapareceram. Ficou arraigado, porém, o valor dado à alfabetização.
Os grandes colégios internos nas missões -São Gabriel da Cachoeira, Pari-Cachoeira, Taracuá, Iauareté, Assunção do Içana- foram progressivamente substituídos por escolinhas rurais no nível mais básico de ensino. Em geral, sob a supervisão de freiras das Filhas de Maria Auxiliadora, outra ordem salesiana. O apoio governamental, no entanto, começou a minguar.
Em 1988, surgiu a Foirn, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. Com a nova Constituição e, depois, a Lei de Diretrizes e Bases, ganhou força o projeto de criar escolas próprias, sob orientação da comunidade.
Em meados dos anos 1990, o movimento das escolas tuiucas, tucanas e baniuas passou a contar com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA), sediado em São Paulo. Havia professores indígenas, mas que falavam português em classe. Sua reciclagem, em oficinas de matemática, política linguística e gestão escolar, contou com apoio financeiro da Fundação Rainforest, da Noruega.
Muitas malocas foram construídas desde então. São usadas só para rituais ou festas e para as refeições coletivas matutinas, em que cada mulher traz de sua casa o beiju de mandioca e a quinhãpira (caldo de peixe apimentado). (ML)

PIETER-JAN VAN DER VELD
(WISÕKA), 46
Agrônomo especializado em agricultura tropical formado em Deventer, Holanda, prefere ser identificado como frísio (grupo étnico presente na Holanda e na Alemanha) a holandês. Morou na Espanha e no México. Um suíço o contratou para trabalhar em seu sítio em Teresópolis (RJ).
Presenciou a Eco-92, mas teve de deixar o Brasil por ter apenas visto de turista. Voltou em 1994 para trabalhar num viveiro de espécies nativas em Rondônia, que fracassou. Foi então contratado como amostrador de solos para o projeto de macrozoneamento do Estado.
Em 1998, mudou-se a convite do Instituto Socioambiental para São Gabriel da Cachoeira, onde conheceu a mulher brasileira, Márcia, educadora que trabalhava com os índios baniuas

JOSÉ BARRETO RAMOS
(POANI), 50
Suas primeiras letras foram em espanhol, na comunidade colombiana Acaricuara. Um ano depois foi transferido para o colégio da missão salesiana em Pari-Cachoeira, onde ficou nove anos. Voltou para a comunidade Fronteira, onde tinha nascido, para trabalhar com o pai na coleta e secagem de cipó.
Por pressão da comunidade e dos padres, aceitou tornar-se professor. Ficou quatro anos. Tornou a trabalhar na roça um ano, mas não se adaptou. Em 1985 escreveu a Higino Tenório, que o chamou para ser professor.
Em 1987, participou de seminário em São Gabriel da Cachoeira em que pela primeira vez ouviu falar da necessidade de escrever e ensinar a própria língua. Em 2009, ajudou a formar a primeira turma, 13 alunos, de ensino médio em São Pedro

ALOISIO CABALZAR
(ARUSU), 41
O antropólogo formado pela USP começou a frequentar o Tiquié e os tuiucas em 1990, ainda como aluno de graduação em iniciação científica. Desenvolveu ali seu mestrado sobre a organização social desse povo, que deu origem ao livro "Filhos da Cobra de Pedra", publicado em 2009 pela Editora da Unesp.
Foi um dos arquitetos do projeto de pesquisa participativa que reuniu índios e ictiólogos (especialistas em peixes) para estudar a fauna do Alto Tiquié, que resultou na descoberta de várias espécies e na publicação do livro "Peixe e Gente no Alto Rio Tiquié" (ISA, 2005). Hoje é assessor do Instituto Socioambiental e visita os tuiucas, a trabalho, duas ou três vezes por ano

HIGINO PIMENTEL TENÓRIO
(POANI), 55
O líder da comunidade tuiuca São Pedro estudou nas missões salesianas de Pari-Cachoeira (seis anos) e São Gabriel da Cachoeira (quatro). A mãe teve de abandonar a família por pressão dos padres, por já ter sido casada. Em 1975, tornou-se professor por indicação de uma freira. Em 1979, foi para a Colômbia atrás da mãe, remando por um mês inteiro (a fronteira fica a apenas sete quilômetros, em linha reta). Trabalhou em fazendas de coca.
De volta ao Brasil, aderiu ao garimpo no igarapé Traíra, que depois dirigiu. Foi um dos primeiros a fazer magistério indígena, nos anos 1990, figurando entre as duas centenas que conseguiram se formar dos cerca de 600 que iniciaram o curso

FSP, 09/05/2010, Mais, p. 6

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0905201006.htm

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