VOLTAR

Terra de ninguém

CB, Brasil, p. 16
16 de Mai de 2004

Terra de ninguém
Mato Grosso e Pará disputam no Supremo Tribunal Federal o direito a 2,4 milhões de hectares, dos quais fazem parte a maior província , mineral do mundo, o Vale dos Carajás, e um pedaço da Ilha do Bananal

ULLISSES CAMPBELL
DA EQUIPE DO CORREIO

Engana-se quem pensa que disputa por posse de terra ocorre só entre índios garimpeiros ou sem-terra e fazendeiros. Dois estados brigam no Supremo Tribunal Federal (STF) por um pedaço do Brasil de 2,4 milhões de hectares - cinco vezes o tamanho do Distrito Federal. O governador d Mato Grosso, Blairo Maggi (PPS acusa o governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), de emitir títulos de posse numa área rica em minério de ferro e pratica mente não desbravada. A decisão do STF deve ser anunciada ainda neste mês.
No mapa, as terras em quer tão são paraenses. Mas, segundo Maggi, há um erro na demarcação e o trecho pertenceria mesmo ao Mato Grosso. Por trás dessa briga, está a maior provir cia mineral do mundo em atividade, o Vale de Carajás, que explorada no Pará pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRE em parte das terras requerida pelo Mato Grosso. Os dois esta dos disputam ainda parte d maior ilha fluvial do mundo, do Bananal, que produz a bani na mais doce do Brasil.
O detalhe nessa briga inusitada é que os estados em questão estão entre os três maiores do país em extensão de terra, só perdendo para o Amazonas.
A área disputada pelos de estados tem o mesmo tamanho do estado de Alagoas e corresponde a 5% da área do Par Nela, há pelo menos 100 n pessoas em 12 municípios e povoados. São brasileiros que podem mudar de uma hora pari outra mudar de endereço, se sair do lugar. A mudança, caso ocorra, trará transtornos e muita burocracia porque envolve troca de documentos, como título de eleitor e escrituras de imóveis.
Desde 1981
Santana do Araguaia e Cumaru do Norte são os maiores municípios paraenses que nasceram na área em conflito. O primeiro tem 42 mil habitantes, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). 0 segundo tem quase 15 mil moradores. "Acho essa disputa uma briga idiota. Os dois estados são grandes. Se vierem me perguntar, quero continuar sendo paraense", diz o prefeito de Santana do Araguaia, Wagner Pereira da Silva (PDT). Ele diz que nem quem nasceu no Mato Grosso e hoje vive no Pará quer ser mato-grossense.
A disputa pelo domínio da área, situada no coração do país, arrasta-se desde 1981. Tem três reservas indígenas com 12 aldeias, inclusive com índios não civilizados, como os Mekregnotire. Na semana passada, o estado do Mato Grosso conseguiu a primeira vitória. O presidente do STF Marco Aurélio Mello, deferiu um pedido de liminar, impedindo que o governo do Pará emita qualquer título de posse na área sub judice. A decisão foi motivo de festa na Assembléia Legislativa do MT, que comprou a briga desde que o governo do Pará passou a fazer pouco caso do problema.
Fronteiras confusas
O limite entre o Pará e o dato Grosso realmente é confuso e gera situações complicadas para os dois estados. Os postos de fronteiras instalados na BR-163, que liga Santarém (PA) a Cuiabá (MT), estão em lugares errados. Por conta dessa confusão, o viajante de carro não sabe quando sai de um estado e entra em outro.
Quem segue do Mato Grosso rumo ao Pará, assim que chega no quilômetro 770 da BR-163, encontra um posto fiscal da Secretaria Estadual da Fazenda mato-grossense. Quinze quilômetros depois, há outro posto fiscal, dessa vez da Secretaria da Fazenda do Pará. Cinco quilômetros adiante, há outro posto do Mato Grosso.
A área subi judice tem outros predicativos, que deixa a disputa entre os dois estados mais acirrada. Segundo o Ministério da Agricultura, há 100 mil cabeças de gado na região. Eles estão no grupo de animais de melhor controle sanitário do país. Atualmente, essa área é a única do Brasil que está livre da sigatoka negra, uma praga que ataca plantações de banana.
Outra reclamação: o Mato Grosso, assim como outros 12 estados, podem exportar carne bovina para todo o mundo. Os pecuaristas do Pará não desfrutam dessa regalia, pois não têm certificado sanitário de erradicação da febre aftosa, uma praga que ataca o gado e deixa a carne imprópria para o consumo.
Disputa antiga
A origem da disputa de terras entre o Pará e o Mato Grosso é uma confusão que começou no ano de 1900, quando os dois estados assinaram a primeira convenção de limites. No documento, ficou acordado entre as duas partes que a linha que dividiria os dois estados seria traçada a partir de uma acidente geográfico chamado Salto das Sete Quedas, situado à margem do Rio Teles Pires. Esse traço seguiria seguiria em linha reta, até a margem esquerda do Rio Araguaia.
Em 1922, o antropólogo francês Henri Candreau, funcionário do Clube de Engenharia, órgão que deu origem ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi pessoalmente até o Salto das Sete Quedas. Coube a ele fazer o trabalho de campo para desenhar o mapa oficial do Brasil.
Tão logo foi impresso o primeiro atlas, o governo do Mato Grosso reclamou, dizendo que a demarcação estava errada. 0 chefe do Serviço Cartográfico do Exército, marechal Cândido Rondon, foi até o local conferir. Descobriu que o francês havia se enganado. Num documento do Exército, consta que, invés de fazer a demarcação no Salto das Sete Quedas, um conjunto de cachoeiras de mais de 70 metros de altura, Henri se confundiu e marcou o limite entre os dois estados numa pequena queda d'água, chamada Cachoeira Sete Quedas. (UC)

Ferro, ouro e índios
A área disputada pele estados do Mato Grosso Pará guarda uma das maiores províncias auríferas do mundo, além de ser rica em bauxita e minério de ferro. Segundo o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), só das jazidas localizadas no Vale dos Carajás, foram extraídas cinco toneladas de ouro em 2003, equivalente a R$ 139,3 milhões. 0 Pará é o maior produtor de ferro do país. No ano passado, foram beneficiadas 55,8 milhões de toneladas, gerando um faturamento de R$ 53,3 milhões.
A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), empresa que tem a maior concessão do governo para explorar minério no Pará, pretende expandir a extração de ouro e alcançar 29,5 toneladas ao ano. As terras sub judice abrigam ainda as aldeias com a maior população de índios não-civilizados. Do Xingu até as cabeceiras do rio Iriri (PA), predominam 12 reservas.
O Mato Grosso é veterano em disputas jurídicas envolvendo terras. Durante 23 anos, o estado brigou com Goiás por conta 2,2 milhões de hectares de terras. No ano passado, o governo mato-grossense conseguiu no STF uma decisão favorável e teve suas terras de volta. Na nova demarcação, ficou decidido que a divisa entre os dois estados seria a cabeceira do rio Araguaia e não a do rio Araguaína, como constava nos mapas do IBGE. Nos anos 1970, o Mato Grosso conseguiu quase 1 milhão hectares de terras de Rondônia. A alegação era a mesma: erro na demarcação.
O governador do Pará, Simão Jatene (PSDB), garante que os limites atuais estão corretos. Ele diz possuir farto acervo de documentos que provam que a divisa atual entre os dois estados está historicamente certa. "Não há motivos para nos preocuparmos, nem há qualquer chance de haver uma negociação" , diz. As declarações de Jatene constam no site oficial do governo do Pará.
Para o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi (PPS), o governo do Pará negligencia a área em litígio porque, segundo ele, não dá assistência educacional e de saúde nos municípios. Confiante em uma decisão favorável por parte do STF, ele já conta com aumento na arrecadação de impostos tão logo o Pará seja obrigado a devolver os 2,4 milhões de hectares. "Essas terras serão incorporadas ao patrimônio público do Mato Grosso", garante. (UC)

CB, 16/05/2004, Brasil, p.16

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.