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Terra de ninguém

Estado de S. Paulo-São Paulo-SP e O Paraense-Belém-PA
Autor: Lúcio Flávio Pinto
07 de Out de 2002

Confronto entre comunidades e madeireiros na "Terra do Meio" adquire contornos de guerra

Xingu Na foz do rio fica Porto de Moz, principal núcleo urbano da polêmica reserva extrativista Verde para Sempre
Terra de ninguém

Líderes de 125 comunidades, representando 15 mil habitantes, estabelecidos em área de alta densidade florestal, exatamente no corredor de expansão da mais feroz frente madeireira da Amazônia, no Estado do Pará, travaram há duas semanas o segundo confronto de uma luta que está adquirindo os contornos de autêntica guerra. Querem que 1,3 milhão dos 8 milhões de hectares da "Terra do Meio", batizada com esse nome por se encontrar entre duas áreas de intenso desmatamento, avançando a leste pelo Araguaia-Tocantins e a oeste pelo Tapajós, sejam transformados na Reserva Florestal Verde para Sempre, já aprovada pelo governo fe-deral. Essa reserva serviria para barrar a destruição e promover o uso sustentável dos recursos naturais da região.
O segundo capítulo da disputa entre os que defendem e os que contestam o projeto foi mais violento do que o primeiro atrito, surgido quando a idéia foi apresentada publicamente pela primeira vez em Porto de Moz, pequena cidade na foz do rio Xingu, mas o principal núcleo urbano da "Terra do Meio", no seu limite norte. No final da semana retrasada, 400 moradores locais decidiram bloquear o rio Jaraucu, que é a principal via de transporte de madeira ilegal na região. Mais de 40 barcos, liderados por uma embarcação fretada pelo Greenpeace e outras ONGs, fecharam o rio, de 100 metros de largura. O objetivo era denunciar a ação de fazendeiros e madeireiros, que se apropriam ilegalmente de terras do patrimônio público, através de grilagens, ou patrocinam e executam a invasão da floresta para extrair clandestinamente madeira, abrem estradas ilegais e ameaçam a população nativa, que depende dos recursos florestais para sobreviver.
Durante o tempo de duração do bloqueio, duas balsas lotadas de toras de madeira (113 em uma delas) foram retidas. Ambas eram de uma madeireira da qual o prefeito municipal, Gerson Campos, é dono. As jangadas de madeira passavam tranqüilamente pelo local, que nunca havia sido fiscalizado até então, no rumo das serrarias. Com os incidentes provocados pela retenção da balsa, técnicos do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), deslocados de Altamira, constataram a irregularidade e multaram a empresa em 190 mil reais.
Foi o bastante para aumentar a agressividade dos que têm vivido da retirada e comercialização de madeira sem qualquer embaraço legal: pessoas foram agredidas e equipamentos destruídos nos sucessivos choques entre os manifestantes e seus oponentes. O aumento da tensão exigiu a intermediação policial para evitar que os danos se tornassem ainda maiores. O serenamento dos antagonismos, entretanto, parece ser apenas temporário. Os grupos comunitários e seus aliados continuam querendo criar a reserva Verde para Sempre; os madeireiros e seus parceiros permanecem dispostos a não deixar que isso aconteça.
Por seu ineditismo, o episódio de Porto de Moz sugere reflexão profunda e ação conseqüente. Ele suscita muitas questões, várias delas originais no contencioso de conflitos em que se tornou a Amazônia por força de uma ocupação intensa, através de migração em alta escala, e da busca do lucro desmedido e rápido. Na "Terra do Meio", exigências de manejo florestal ainda são quimera. O mesmo extrativismo predatório que prevaleceu na ocupação do vale do Araguaia-Tocantins, entre as décadas de 60 e 90, se expande de leste para oeste da Amazônia. O Xingu é a próxima vítima. É revoltante constatar que erros primários do passado, atribuídos ao desconhecimento da Amazônia numa época de pioneirismo absoluto, estejam se repetindo integralmente em plena época de clamor pelo "desenvolvimento sustentável".
Desta vez, como o Estado se retardou ou se especializou na montagem da infra-estrutura de apoio às frentes de penetração (o "Avança Brasil" é apenas um corredor de exportação), o colono (pessoa física ou jurídica) usa seus próprios recursos e segue adiante. Não tendo mais as rodovias abertas pelo go-verno para chegar ao interior da mata, nas áreas de fronteira serve-se agora dos rios. Às margens dos cursos d'água se espalham centenas de comunidades nativas, multiplicando-se numa proporção que os recenseamentos demográficos não conseguem registrar com fidelidade. Essa gente vive da floresta, mas sua cultura, sua capacidade tecnológica e seus recursos monetários as especializaram na coleta dos recursos da mata. Não são extratores de madeira. Ver centenas de toras escoando pelos rios, que lhes servem para tudo, é ver sua própria sobrevivência indo embora.
O nativo já foi despojado da posse da terra que ocupava e já foi obrigado a se mudar para uma cidade hostil, incapaz de reagir em um cenário que mudou completamente quando uma estrada deu acesso a áreas até então protegidas na "terra firme". Agora, está sendo atacado em seu sítio natural, no ambiente ao qual ele se amoldou e que recriou ao longo de séculos de fixação ribeirinha. É essa a paisagem do novo conflito. Não mais na beira de uma estrada poeirenta, entre migrantes mal chegados e predispostos contra o local, mas nas margens de rios, pelos quais descem as toras de madeira de lei (pelo método à margem da lei) que jamais serão substituídas na floresta.
O grande ausente nesse novo conflito é o poder público. Considerando o passado da presença estatal nos sertões amazônicos, essa ausência podia até ser considerada positiva: o mercado iria se auto-regular, sem os atropelos da burocracia. Mas não é assim: a lei que acaba funcionando é a do mais forte. Para se saber quem é mais forte, necessário se torna a medição de forças. Esse darwinismo social, que já prevalece no conturbado vale do Xingu, terá um preço humano e ecológico muito elevado. Pode-se prever esse desgaste pelos componentes das duas forças em choque.
De um lado há a aliança entre ONGs ambientalistas e associações de defesa dos direitos humanos com as populações locais, entregues à própria sorte pelos atores dominantes no cenário desse laissez-faire primitivo. Como autênticas catequistas, essas entidades vêm se empenhando na conscientização teórica e atualização informativa das populações locais. Líderes surgem desse relacionamento dispostos a colocar em prática, em locais como Porto de Moz, as últimas palavras de ordem em Nova York, Londres ou Berlim. Encontram do outro lado, porém, personagens para cujos ouvidos esse tipo de pregação soa como demoníaca. Não só pelo que significa em tese: sobretudo pelo prejuízo material que provoca. Também esse grupo se atualiza com seus aliados externos: eles chamam a atenção para a presença (que preferem classificar de "infiltração") de elementos estranhos ao meio, vindos tanto de outros lugares do Brasil, como do exterior. Por que essas pessoas trocaram seus países de origem pelos fins-de-mundo da Amazônia? A pergunta suscita de pronto uma torrente de teorias conspirativas.
A manifestação de Porto de Moz, por exemplo, teve - se não o apoio direto - ao menos a simpatia militante do Serviço Alemão de Cooperação, sem falar na sempre ostensiva participação do Greenpeace, com a mais destacada de todas as atuações. Dedo alemão, e outros dedos internacionais, às vezes explicitamente, às vezes pela impressão digital, podem ser detectados cada vez mais em tudo o que acontece dentro da Amazônia, especialmente nos momentos conflituosos.
O que isso significa? Para o tipo de gente que investiu contra os comunitários que bloqueavam o rio, é claro: os estrangeiros querem congelar o desenvolvimento da Amazônia para mantê-la inexplorada e inabitada, assim se tornando presa mais fácil de algum projeto de internacionalização. Ecologia seria o novo nome do imperialismo, nessa versão à ou-trance da velha palavra de ordem da esquerda. Por motivos escusos, de natureza comercial ou visando obter informações estratégicas, os estrangeiros fomentam as crises, jogando um lado contra o outro, para tirar vantagem.
É muito provável que argumento desse porte se aplique a alguns ou vários casos de pirataria, contrabando, roubo ou mesmo plano geopolítico com raízes fora da região. Mas não é uma causa geral, nem serve de explicação padrão para o que está ocorrendo na Amazônia. Se os que extraem madeira e a comercializam dependem de uma eficiente cadeia de capital, que os faz se mover no recôndito da mata, é natural que um elo de solidariedade funcione em sentido contrário. O parâmetro aceitável para esses dois mecanismos opostos é o da legalidade, do ajuste do comportamento às normas e formas de procedimento sancionados, ao acervo do melhor conhecimento disponível hoje no mundo sobre a maneira correta de utilizar as abundantes e valiosas riquezas da natureza na Amazônia, sem por isso destruí-la.
Mas quem imporá o cumprimento dessas regras e punirá os faltosos? Obviamente, o agente autorizado pela sociedade a desempenhar esse papel, que lhe representa os interesses e necessidades. O governo estará capacitado a cumprir essa missão? Tem legitimidade? É respeitado? Seus agentes podem pôr em execução o que lhes ditam as leis e regulamentos? Os meios para cumprir o bem social são proporcionais aos instrumentos de ofensa à dignidade da natureza e dos seus habitantes?
Tantas perguntas, tão poucas respostas, diria um alemão que certamente faria figura nesse cenário, o poeta Bertolt Brecht. Se é preciso fazê-las, ainda que de pronto pareçam não mais do que utopia, num terreno marcado pela selvageria, é necessário, sobretudo, que esteja presente aquele a quem elas se destinam: o governo. Se com ele é ruim, sem ele é muito pior. Como estamos a ver

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