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A terra da discórdia

CB, Brasil, p.16
16 de Abr de 2005

A terra da discórdia
Homologação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, após quase três décadas de discussões, desagrada índios, agricultores e o governador do estado, que já decidiu recorrer ao STF contra decreto do presidente Lula

André Carravilla, Paloma Oliveto e Sandro Lima
Da equipe do Correio

Vinte e seis anos depois de o governo formar o primeiro grupo de trabalho para demarcação da Terra Indígena Raposa do Sol, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou ontem a área de 1,7 milhão de hectares localizada no estado de Roraima. A decisão do Planalto desagradou tanto índios quanto agricultores da região, que ameaçam argüir a inconstitucionalidade do decreto no Supremo Tribunal Federal (STF). A medida, que beneficia 14 mil indígenas, intensificou o clima de guerra existente entre as etnias e os produtores rurais. Os índios reclamam que o município de Uiramutã, com 4,7 mil habitantes, não será deslocado, conforme as lideranças reinvindicavam. Já os arrozeiros estão preocupados com o bolso e admitem que podem até pegar em armas para garantir sua permanência no local.
"Esse é um momento fundamental na história das causas indígenas, por isso o presidente Lula fez questão de assinar essa homologação hoje (ontem), antes do dia do Índio, para marcar a sua determinação e a sua vontade, expressa no seu programa de governo, de resgatar essa dívida que a nação tem com os povos indígenas", amenizou o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que, para evitar conflitos, determinou a ida de 50 agentes da Polícia Federal ao estado. Os policiais tentarão conter os ânimos e garantir a segurança dos índios e rizicultores.
Em encontro com o governador de Roraima, Ottomar Pinto (PTB), os produtores de arroz que têm propriedades dentro da reserva deram a entender que os policiais vão ter muito trabalho. Os arrozeiros deixaram o palácio do governo afirmando que não abrem mão da área pacificamente. "Tem que encontrar uma solução para evitar o confronto, que considero inevitável", disse o governador.
Batalha judicial
A pressão dos produtores surtiu efeito: o governador desembarca em Brasília na segunda-feira com o objetivo de contratar um advogado que reverta a decisão. Thomaz Bastos explicou que o ministro da Coordenação Política, Aldo Rebelo, conversou ontem com o governador de Roraima para resolver a questão. Mas dificilmente vai conseguir demovê-lo da idéia de contestar a homologação no STF. "Se for necessário, o governo do estado vai recorrer à corte de Haia ou até à Organização das Nações Unidas. O governo federal está deixando a população de Roraima desamparada", afirmou Ottomar Pinto.
O governador do estado não está sozinho na batalha judicial contra a terra indígena.
O secretário da Associação dos Arrozeiros de Roraima, Dirceu Spies, informou que os produtores pedirão a inconstitucionalidade da homologação no Supremo. Dizendo-se preocupado com o impacto financeiro da medida, o senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) também entrou no STF com uma medida cautelar contra a homologação. "Os produtores rurais criam mais de seis mil empregos diretos e indiretos e são responsáveis por 25% do PIB (Produto Interno Bruto) do estado", alega Cavalcanti.
Segundo o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Pereira Gomes, os produtores de arroz não ficarão desamparados.
As 16 Propriedades que serão retiradas da área da reserva serão indenizadas pelas benfeitorias feitas nas propriedades.
O governo também vai destinar 150 mil hectares de terra da União em outra parte do estado para a implantação de pólos de desenvolvimento agropecuário.
Com a homologação da Terra Indígena Raposa do Sol, fica proibida a permanência de não índios dentro da área. Com isso, dez mil pessoas serão desalojadas em, no máximo, um ano, prazo definido pelo governo federal para desocupação da reserva.
Elas serão cadastradas e incluídas em projetos de assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O governo também pretende viabilizar concessão de crédito aos colonos.
A primeira demarcação da Raposa Serra do Sol foi feita em 1998, no segundo mandato do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso.
Desde então, uma enxurrada de processos impediram a homologação das terras. Em vez de esperar uma decisão do STF sobre a questão, o Ministério da Justiça publicou uma nova portaria aumentando o tamanho da reserva em 300 mil hectares. Em menos de 24 horas, o governo demarcou e homologou a área.

Aplausos contidos
"Podemos aplaudir a homologação, mas as palmas não vão ser fortes", afirma Dionito José de Souza, liderança da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
A insatisfação do índio macuxi, uma das quatro etnias beneficiadas pela homologação, é a mesma do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e do Conselho Indígena de Roraima (CIR). As entidades de defesa dos direitos indígenas reclamam que a cidade de Uiramutã não será esvaziada, como elas sempre reivindicaram.
O município foi fundado em 1996 por garimpeiros que chegaram à região em busca de ouro e diamantes.
Aos poucos, funcionários públicos, policiais e índios passaram a viver na cidade, ponto de tensão constante. "Em novembro do ano passado, eles (os não-índios) destruíram as casas dos indígenas. Nós não reagimos, mas também não saímos de lá", conta Marinaldo Macuxi, do CIR.
Na homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Uiramutã é excluída da reserva, mas seus moradores não serão deslocados para outras áreas. "Eles vão acabar tentando invadir nossas terras", acredita Marinaldo.
"Nesse sentido, a demarcação de 1998 era melhor porque previa a extursão dos não-índios do município. Sempre que houve homologações no Brasil, os núcleos urbanos foram esvaziados", afirma Saulo Feitoza, vicepresidente do Cime.
"Vai ter guerra"
Também ficam excluídos da reserva a área do 6ª Pelotão Especial de Fronteira, os equipamentos e instalações públicos federais e estaduais, as linhas de transmissão de energia elétrica e os leitos das rodovias públicas federais e estaduais.
Dionito José de Souza diz que os rizicultores não têm do que reclamar, pois todo o estado de Roraima tem terra propícia para o plantio de arroz. "Onde se planta, dá", diz. Ele conta que os garimpeiros já não incomodam tanto quanto os agricultores, pois quase não há mais ouro e pedras preciosas na reserva. Embora cerca de 2 mil índios dos 14 mil que habitam a reserva sejam contrários à homologação, Dionito não acredita que haverá conflitos entre eles. "Esses índios receberam uns trocados dos fazendeiros pra ficarem contra nós, mas temos que nos unir porque é do interesse de todo mundo", acredita. Quanto aos agricultores, os índios sabem que haverá conflitos. "Vai ter guerra", prevê o macuxi Marinaldo. (PO)

Cronologia
A Raposa-Serra do Sol fica a noroeste de Roraima, na fronteira com a Guiana e a Venezuela. Possui 1.743 milhão de hectares, onde vivem 14 mil mil índios das etnias Ingarikó, Makuxi, Taurepang e Wapixana. Eles ocupam 152 aldeias.Desde 1917, a região passa por conflitos entre indígenas, fazendeiros, garimpeiros e políticos.
1917 - A lei estadual 941 do Amazonas destina o território entre os rios Surumu e Contigo para ocupação e usofruto dos índios Macuxi e Jaricuna. Dois anos depois, o Serviço de Proteção ao Índio começa a demarcar a área, que estava sendo invadida por fazendeiros.
1977 - Um Grupo de Trabalho Interministerial é instituído pela Funai para demarcar o território indígena, mas não se chega a nenhuma conclusão. Em 1979, outro grupo propõe a demarcação provisória de 1,34 milhão de hectares.
1984 - Outro GTI é instituído para realizar o levantamento fundiário da área. São identificadas cinco áreas contíguas, no total de 1,57 milhão de hectares. Quatro anos depois, é feito novo levantamento fundiário e cartorial, mas não se chega a qualquer conclusão.
1992/1993 - A Funai forma mais GTs. O parecer, conclusivo, é publicado no Diário Oficial da União, propondo ao Ministério da Justiça o reconhecimento da extensão contínua de 1,67 milhão de hectares.
1996 - O presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, assina o decreto 1.775, que permite contestação dos atingidos no processo de reconhecimento das terras indígenas. São apresentadas 46 contestações. O então ministro da Justiça, Nelson Jobim, assina um despacho rejeitando os pedidos de contestação, mas propõe uma redução de 300 mil hectares da área.
1998 - O ministro da Justiça, Renan Calheiros, assina a portaria 820/98, que declara a Terra Indígena Raposa Serra do Sol posse permanente dos povos indígenas.
1999 - O governo de Roraima impetra mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça (STJ), com pedido de anulação da Portaria 820/98.
2002 - STJ nega pedido do mandado de segurança 6210/99, impetrado pelo governador de Roraima e que solicitava a anulação da Portaria 820/98.
2005 - Ontem, o Diário Oficial da União publicou a portaria 534, que demarca a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. À tarde, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou a TI.

CB, 16/04/2005, Brasil, p. 16

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