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A terceira abolição da escravatura

OESP, Alías, p. J4-J5
Autor: MARTINS, José de Souza
15 de Mai de 2005

A terceira abolição da escravatura

José de Souza Martins

Que o aniversário da Lei Áurea, em 13 de maio, desnude as marcas de um sistema de dominação que ainda nos faz cativos do passado
Há uma certa ironia da História na coincidência de que o 13 de maio, data comemorativa da Lei Áurea e da libertação dos escravos no Brasil, tenha sido precedido neste ano, em dois dias, pela divulgação, em Brasília, de relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o trabalho forçado no mundo atual. Foi quando se anunciou que ainda há em nosso país, no mínimo, 25 mil trabalhadores escravizados. A inoportuna coincidência nos diz que há aí muito a dizer e a esclarecer. Nós brasileiros, na imensa maioria, ignoramos completamente as anomalias de nossa história, vencidos que fomos pelo didatismo simplificador da ideologia da Ordem e Progresso.
Mas nem só de Brasil vive a escravidão contemporânea. Os dados da OIT anunciam que há no mundo, no mínimo, 12,3 milhões de pessoas submetidas a trabalho forçado. A imensa maioria delas está na Ásia e na região do Pacífico - 9,5 milhões. A América Latina e o Caribe têm 1,3 milhão. Portanto, é quase um alívio reconhecer que os números brasileiros são proporcionalmente insignificantes. Mas nem por isso deixam de ser indicativos de um problema estrutural grave na realidade do país, pois nos informam que a escravidão que nos disseram haver acabado de fato não acabou.
A própria dificuldade para fazer a contagem e ter estatísticas do número de trabalhadores submetidos a cativeiro no Brasil contribui para nosso menosprezo pela gravidade do problema. Basta verificar as discrepâncias de números que há entre os divulgados pela Comissão Pastoral da Terra e os divulgados pelo Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, o órgão encarregado de fiscalizar, identificar e libertar os trabalhadores. Más condições de trabalho podem, para alguns, configurar escravidão, mas a OIT alerta que não é o caso. Temos no Brasil uma disseminada ocorrência de sobre-exploração do trabalho, aquela em que o salário do cidadão é insuficiente para assegurar sua reprodução e de sua família. Há os que entendem que isso seja escravidão, embora não seja. No entanto, há escravidão efetiva no país.
No nosso caso, a escravidão contemporânea ocorre sob a forma de privação efetiva de liberdade, para forçar o cidadão a trabalhar para quem o emprega. Assume aqui a forma de escravidão por dívida. Fica o trabalhador cativo enquanto deve ao patrão por adiantamentos, alimentação, transporte, ferramentas. Geralmente é vigiado por pistoleiros. Nos anos 80 e 90, episódios de perversidade e crueldade foram registrados, geralmente pela Polícia Federal, a quem cabe a repressão ao tráfico de pessoas. Um deles se refere a uma fazenda do Pará em que um trabalhador que tentara fugir fora perseguido, preso pelos jagunços, morto e esquartejado e colocado no cocho como ração dos porcos. Assim foi encontrado pela polícia, que chegou à fazenda alertada por outros trabalhadores que conseguiram fugir. Eu poderia fazer uma lista de perversidades semelhantes nas últimas três décadas.
Seria descabido e absurdo se alguém dissesse que esse é um problema generalizado nas fazendas brasileiras. Entre 1998 e 2004, a Comissão Pastoral da Terra mencionou entre 14 (em 1998) e 236 (em 2004) fazendas que praticaram escravidão nesse período, número insignificante num país em que há cerca de 5 milhões de estabelecimentos rurais. Entre 1995 e 2001, o Grupo Móvel de Fiscalização constatou que apenas 2,1% dos trabalhadores alcançados por sua ação tiveram de ser libertados, isto é, estavam em situação de escravidão.
Os números absolutos, tendo em conta esse máximo de 25 mil trabalhadores cativos mencionado pela OIT, não são, portanto, o centro do que deveria nos preocupar. E sim o fato de que, sendo escravidão temporária e ocorrendo em três quartos dos casos na Amazônia e no Centro-Oeste, o problema tem se regenerado contínua e crescentemente. Isso nos diz que um setor economicamente insignificante mas territorialmente extenso do país vive na ilegalidade. Especialistas têm observado que o crime da prática da escravidão no Brasil é no mais das vezes conexo a outros: grilagem de terras, danos e depredação ambientais, sonegação fiscal, crime previdenciário, enfim, um elenco geralmente amplo de ilegalidades. Um fenômeno próprio de um país de legalidade frágil.
Não obstante estarmos diante de um problema que parece residual, o relatório da OIT informa que no mundo os rendimentos decorrentes do tráfico de trabalhadores escravizados é de US$ 31,6 bilhões. Na América Latina e no Caribe alcançam US$ 1,3 bilhão. No Brasil, a escravidão está clara e predominantemente associada à chamada acumulação originária de capital, ao desmatamento e à formação de fazendas na frente pioneira, onde se dá a expansão territorial do sistema econômico, o que nos remete de volta ao Brasil colônia. É o trabalho cativo que quase gratuitamente subsidia boa parte dessa expansão.
Para compreender essa economia política macabra é necessário ter em conta que em diferentes regiões do mundo e em diferentes países há diferentes escravidões. Que se encontre a escravidão em diversas regiões do mundo, como persistência ou como inovação, é fato que pede uma revisão crítica de nossas concepções de senso comum a respeito do lugar do escravismo na sociedade contemporânea. Particularmente no caso do Brasil, conviria considerar a realidade dos fatos e enfrentar de vez a suposição equivocada de que a escravidão acabou um dia e mesmo a de que a escravidão atual é um resíduo da que já tivemos.
Antes de mais nada é necessário reconhecer que tivemos três modalidades distintas de escravidão no Brasil, e ainda temos uma delas, cada qual com suas regras e até sua legislação próprias: a indígena, a negra a branca, que se tornou poderosa demograficamente com a imigração estrangeira para substituir escravos nas fazendas de café. Como também tivemos três abolições da escravatura, uma para cada modalidade. A primeira foi do marquês de Pombal, em 1755, com o Diretório dos Índios do Estado do Maranhão e Grão Pará, que seria estendida ao Estado Brasil, o território brasileiro extra-amazônico, dois anos depois. Aboliu a escravidão indígena. Em 1888, tivemos a lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, que aboliu a escravidão negra.
Em 27 de junho de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu a existência de escravidão no Brasil e criou o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf), que, passou a atuar através do Grupo Móvel de Fiscalização. O declínio das ocorrências foi significativo até 2002, quando o crescimento do número de trabalhadores nessa situação levou à criação da comissão especial que, no Ministério da Justiça, preparou um elenco completo de medidas para erradicar o trabalho escravo. Em outubro de 2002, o documento foi entregue ao presidente da República para o encaminhamento do formato legal das medidas sugeridas, que vão do perdimento da propriedade à severidade das sanções penais. Em março de 2003 o plano, já finalizado, chegou às mãos do presidente Luiz Inácio no Palácio do Planalto. Com as medidas de Cardoso, o Brasil se antecipou à própria OIT no trato da questão. Essa é nossa terceira abolição, ainda em penoso curso.
A idéia de que no Brasil houve "uma" escravidão, e não várias e bem distintas, distorce a compreensão dos fatos e de algum modo prejudica a afirmação dos negros como sujeitos de identidade e do próprio destino. De certa maneira, se a opção por Zumbi, e não pela Princesa Isabel, representa uma tentativa de desmistificação da história oficial, um gesto significativo de busca do simbólico e da identidade, há um conjunto de outras dificuldades a considerar. O gesto precursor das províncias do Amazonas e do Ceará, em 1884, na abolição da escravatura esconde a verdadeira história da servidão nessas regiões.
Essas mesmas províncias estavam na mesma época envolvidas na gestação da nova escravidão que se estenderia até os dias de hoje. Milhares de cearenses migravam, expulsos pela seca, para outras regiões do país e em grande quantidade para a Amazônia, para trabalhar na economia da borracha. O Ceará se livrava, assim de seus excedentes demográficos. Na província do Amazonas, eram escravizados na economia da servidão por dívida, que se multiplicou e se estende até os dias atuais.
A escravidão negra estava se tornando obsoleta não porque fosse menos racional do que o trabalho assalariado. A opção brasileira não foi essa, e sim a substituição da escravidão cara pela servidão barata. O escravo negro representava imobilização de capital e risco. A nova servidão por dívida dispensava a imobilização de capital na pessoa do trabalhador, sem dispensar os mecanismos sociais de coerção física e moral que o mantinham tão dependente e tão servil quanto o escravo, com resultados econômicos similares. O Brasil evitou o trabalho assalariado, que só se difundiria muito lentamente no campo. Na verdade, apenas no último meio século o problema do assalariamento se pôs amplamente em relação à nossa agricultura. O imigrante estrangeiro que veio substituir o trabalhador escravo não veio como assalariado, mas como colono, só parcialmente remunerado em dinheiro. A revolta dos colonos de Ibicaba, em meados do século 19, bem indicam que também nos cafezais de São Paulo estava em andamento a substituição da escravidão cara pela servidão barata.
Como no passado, temos uma luta pela libertação de pessoas, mas não temos uma luta pela emancipação das pessoas. Mantêm-se, portanto, as condições da reescravização, fenômeno que vem ocorrendo. A luta se baseia, em boa parte, não numa demanda do cativo, mas numa tutela dos setores médios e esclarecidos que se inquietam com a servidão dos outros e querem libertá-los. Assumem uma demanda social: o cativeiro se tornou intolerável para a consciência do homem médio, mas incompreensível para muitas das vítimas. Trabalhadores escravizados têm recusado a liberdade que lhes oferece o Grupo Móvel de Fiscalização quando este os encontra.
O 13 de maio é, sim, uma data importante para o Brasil. Não é uma efeméride do negro apenas. É a data em que o país formalizou seu repúdio à escravidão e afirmou uma consciência nacional comprometida com a concepção da liberdade da pessoa. A Lei Áurea, mais que qualquer outro alcance que pudesse ter, é a proclamação de uma utopia, a proclamação da repugnância que o cativeiro nos causa e o compromisso de liberdade a que nos obriga a todos. Mesmo que a motivação de sua origem não tenha sido essa, e sim a superação das irracionalidades econômicas da escravidão negra. Isso não afasta as contradições que a escravidão inscreveu profundamente na nossa consciência social, na nossa cultura e nas nossas relações sociais. Nem suprime iniqüidades. Este país ainda carece de uma consciência da História que não seja caricata e simplificadora concepção do que fomos e ainda somos.
A escravidão negra foi também um sistema de dominação e se apoiou num tipo de personalidade gestado nessa dominação, a da sujeição, da obediência, da subserviência, do medo estrutural. A interrupção legal e jurídica da escravidão, com a Lei Áurea, não interrompeu a cultura da servidão nem modificou as relações sociais de sujeição subitamente. Na verdade, a cultura escravista tem permanecido forte na sociedade brasileira, sob vários disfarces, o que faz de muitos brancos e mestiços culturalmente negros, vítimas culturais impotentes da escravidão que sociologicamente não cessou. A Lei Áurea não branqueou os negros e ao mesmo tempo enegreceu todos aqueles condenados, brancos, índios ou negros, às funções ínfimas da economia. De certo modo, hoje negros são todos os que estão privados de direitos e de respeito como pessoas.
José de Souza Martins é professor titular de Sociologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Na mira da OIT
Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo funciona
Relatório da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), divulgado na quinta-feira, revelou que há 12,3 milhões de escravizados no mundo. Destes, 25 mil
estão no Brasil. Mas o esforço do país para enfrentar o problema foi reconhecido.

OESP, 15/05/2005, Alías, p. J4-J5

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