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Tentativa de desmonte de Belo Monte

OESP, Economia, p. B2
Autor: KELMAN, Jerson
26 de Out de 2009

Tentativa de desmonte de Belo Monte

Jerson Kelman

Um painel de especialistas de diversas instituições de ensino e pesquisa identificou "graves problemas e sérias lacunas no estudo de impacto ambiental (EIA) de Belo Monte" e consubstanciou essas críticas num relatório de 230 páginas protocolado no Ibama. No geral, os especialistas discordam da maneira como no EIA se responde à pergunta: "O que acontece se a usina for construída?" Todavia não demonstram interesse em formular e em responder a outra pergunta tão ou mais importante: "O que acontece se a usina não for construída?" A resposta é: a energia que seria gerada pela passagem de água nas turbinas passaria a ser gerada pela queima de algum combustível fóssil.

Numa democracia é assim mesmo. Uns se arrepiam ao pensar na realização de obras que modifiquem o ambiente, principalmente se houver a mínima possibilidade de alterar o estilo de vida e os valores das comunidades locais. Nem que seja para dar aos membros dessas comunidades a oportunidade de fazer as suas próprias escolhas.

Outros pensam que para transformar o Brasil em país desenvolvido e, simultaneamente, produzir eletricidade com pouca emissão de gases que contribuem para o efeito estufa é preciso utilizar parte - digamos 60% - do potencial hidráulico dos rios da Amazônia. E que nesse processo alguns impactos - positivos e negativos - são causados localmente, tanto ao ambiente quanto às comunidades atingidas. Para fazer omelete é preciso quebrar os ovos!

Os que não gostam de hidrelétricas sonham com a produção de eletricidade exclusivamente a partir de energia solar ou eólica, sem atentar para o impacto que teria essa política sobre as contas de luz. Desconhecem que as únicas alternativas economicamente competitivas para a produção em grande escala de eletricidade, em substituição ao uso da água, são o bagaço de cana, o urânio e os combustíveis fósseis. E que, lamentavelmente, não haveria suficiente bagaço para produzir toda a energia elétrica de que o País necessita. Desconhecem, ainda, que a hidreletricidade é uma forma indireta de utilização da energia renovável do Sol. Com efeito, a mesma água que hoje cai da atmosfera na forma de chuva ou neve se precipitará outras incontáveis vezes no futuro graças à energia solar, que causa a evaporação das superfícies líquidas e a transpiração dos vegetais.

Os argumentos utilizados pelo painel de especialistas são frequentemente de natureza protelatória, no sentido de pedir "mais estudos". Algumas vezes as questões levantadas são até pertinentes, mas não podem ser respondidas em consequência da inexistência do correspondente conhecimento científico. Outras vezes são questões curiosas. Por exemplo, Rosa Couto e José da Silva, ao criticar o EIA, afirmam que "não foi construído o inventário das substâncias químicas inerentes à produção de energia elétrica. (...) No EIA flagra-se a desconsideração por parte do empreendedor da análise dos efeitos à saúde humana, especialmente, área esta definida no próprio estudo como sujeita à deterioração da qualidade do ar por conta das emissões de poluentes". Dá a impressão de que houve um "corte e cola" de críticas feitas a alguma outra usina, só que termoelétrica, não hidrelétrica.

Seria, todavia, um erro desqualificar todo o relatório a partir da leitura dessas passagens "curiosas". Ao contrário, deve-se garimpar o texto para identificar os comentários consistentes, que são úteis para aperfeiçoar o processo decisório.

Por exemplo, Philip Fearnside argumenta, numa linha diametralmente oposta à que eu adotei mais acima, que "o aumento da capacidade geradora com a construção de hidrelétricas é sempre apresentado como uma "necessidade", fornecedora de energia para lâmpadas, televisores, geladeiras e outros usos nos lares do povo do País (e.g., Brasil, MME, 2009). (...) Mas no caso de Belo Monte a alternativa real seria simplesmente não gerar a energia e ficar com menos exportação de alumínio (e de empregos) para o resto do mundo".

Há mérito nessa posição: Fearnside não adota a atitude protelatória de muitos de seus colegas de painel e apresenta uma proposta corajosa em defesa da tese contrária à construção de Belo Monte. Para ele, o Brasil deveria abdicar de ser um exportador e se tornar um importador de eletrointensivos. Não sei - e imagino que ele também não saiba - quais seriam as consequências macroeconômicas dessa medida.

É assunto que deveria ser analisado tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo. Se a conclusão fosse favorável à limitação do uso de energia elétrica na indústria, seria possível dar tempo ao tempo, como quer Fearnside. Na hipótese contrária, o Congresso deveria tomar a iniciativa de remover o emaranhado legislativo que serve para que as minorias organizadas impeçam que governos legitimamente constituídos instalem a infraestrutura de que o Brasil precisa para atender às necessidades das maiorias desorganizadas. É o mínimo que o Congresso deve à população: fazer que a democracia não seja um estorvo ao nosso desenvolvimento.

Ultimamente essas minorias organizadas têm se comportado de forma muito ousada. Por exemplo, uma carta aberta dirigida ao presidente Lula, disponível na internet (http://gestaopublicaesociedade.blogspot.com/2009/08/belo-monte-carta-ao…), contém explícita tentativa de intimidação do governo federal: "Diferentemente do que foi feito no Rio Madeira, os povos do Rio Xingu não se subordinarão à decisão sobre a construção da AHE de Belo Monte." Ou seja, "os povos do Xingu" ameaçam não se subordinar à decisão do governo do Brasil, legitimamente eleito e que tem observado o devido processo legal, inclusive no que diz respeito ao licenciamento de obras. O mais surpreendente é que, segundo o que consta no sítio eletrônico, dois procuradores da República assinam a ameaça!

Jerson Kelman é professor da Coppe-UFRJ

OESP, 26/10/2009, Economia, p. B2

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