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Temor nos Andes

O Globo, Ciência, p. 39
15 de Jul de 2007

Temor nos Andes
Redução de geleiras da Bolívia ameaça hidroelétricas do Rio Madeira

Ana Lucia Azevedo

A face visível do aquecimento global está nos Andes. A mais longa cadeia de montanhas da Terra perde suas geleiras num ritmo que impressiona especialistas e preocupa governos. Não se trata de previsão, mas de um fenômeno em curso. À medida que as grandes geleiras andinas desaparecem, aumenta o risco de falta de água, perdas agrícolas e redução do potencial hidroelétrico para a maioria dos países da América do Sul. O Brasil, distante da cordilheira, não está imune. Nascentes de afluentes do Rio Madeira, onde o governo federal vai construir hidroelétricas de Santo Antônio e Jirau, estão nas geleiras da Cordilheira Oriental da Bolívia, afetadas pelo derretimento.

Os cientistas alertam que é um fenômeno em curso há anos sobre o qual ondas de frio muito intenso ocasionais, como a que castiga este mês parte da América do Sul, não têm efeito. O glaciologista Jefferson Simões diz que a situação dos Andes da Bolívia é dramática. Os chamados Andes tropicais são mais vulneráveis à elevação da temperatura e as geleiras da Bolívia tiveram drástica redução. Elas estão restritas às áreas altas das montanhas mais elevadas.

- Qual o impacto da variabilidade das geleiras na vazão dos rios e suas conseqüências para as barragens? As geleiras estão em franca redução e isso tem conseqüências - alerta Simões, representante brasileiro no Grupo de Trabalho de Neve e Gelo, uma rede latino-americana de pesquisa ligada à Unesco, e coordenador do Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o único grupo do Brasil que estuda geleiras.

Maioria das geleiras já perdeu área

Há dois tipos de conseqüência. A primeira - mais imediata - é o aumento do volume de sedimentos lançado nos rios, com implicações nos processos de erosão. A segunda, a médio prazo, diz respeito ao volume de água propriamente dito. O grupo de Simões, em colaboração com colegas sul-americanos, monitora os Andes da Bolívia com o satélite sino-brasileiro CBERS-2.

- Não temos geleiras no Brasil, mas precisamos delas. As bacias do Amazonas e do Paraná têm a água do degelo em suas origens. Uma alteração da magnitude da que tem sido observada afeta o balanço hídrico e a erosão. Causa transformações nas bacias das quais dependemos para água potável, irrigação e energia. A retração do gelo terá profundo impacto social e econômico na América do Sul - diz Simões.

Os Andes são a cadeia de montanhas menos estudada da Terra. Vastas regiões foram parcamente mapeadas ou são terra incógnita. Ainda assim, estima-se que de 80% a 90% das geleiras mapeadas tenham perdido até 30% de sua área desde a década de 60.

- E só cerca de 30% das geleiras andinas foram mapeadas - destaca Simões.

Geleiras são grandes reservatórios de água. São elas que provêm água na estação seca para alimentar os rios de origem andina. À medida que se retraem e degelam, num primeiro momento aumenta o fluxo de água. Mas depois, ele se torna cada vez menor, até se extinguir por completo.

- Não sabemos exatamente o que vai acontecer com os rios. Isso só começa a ser estudado agora. Mas sabemos que o Brasil não é imune a problemas globais, como as mudanças climáticas. E algumas das geleiras bolivianas nem ficam tão longe assim, estão a cerca de 600 quilômetros da fronteira com a Bolívia - frisa o pesquisador gaúcho.

Não é preciso ser especialista para ver o que acontece.

- A linha de neve, isto é, a altitude em que a neve não derrete mesmo no verão está cada vez mais alta. Isso significa menos água congelada acumulada - explica o climatologista José Marengo, do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC/Inpe), em Cachoeira Paulista, São Paulo.

Ele diz que estudos no Peru revelam um claro degelo.

- Com o derretimento, a água começa a arrastar para os rios imensa quantidade de sedimentos.
Os rios parecem até mais volumosos. Mas o aumento de fluxo não é de água, é de sedimentos trazidos das montanhas.

Segundo ele, os rios do Peru, onde está a nascente do Amazonas, já carregam mais sedimentos. Rodolfo Iturraspe, coordenador do Grupo de Neve e Gelo e pesquisador do Centro Austral de Investigação Científicas, em Ushuaia,
na Argentina, frisa que a nascente do Rio Amazonas recebe uma contribuição importante das geleiras andinas.

- É por isso que há um representante do Brasil no grupo de neve e gelo. O Brasil tem muita água, e as chuvas da Amazônia são sua fonte primordial. Porém, para países (que usam hidroeletricidade) como o Brasil, cada metro cúbico de água que se perde é energia que não se produz. Para os brasileiros o problema não tem a mesma relevância que para a Bolívia e o Peru, mas não é pequeno - frisa Iturraspe.

A agonia dos refúgios do gelo nos trópicos
Ondas de frio têm pouco impacto contra força de um fenômeno global

Os Andes guardam uma das maiores concentrações de gelo - e, por conseguinte, de água doce - do planeta. Importantes para a regulação do clima de boa parte da América do Sul, eles também são vulneráveis ao aquecimento global. Este ano, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC, na sigla em inglês) incluiu as geleiras andinas, marcadamente as situadas nas regiões tropicais, na lista dos pontos mais vulneráveis da Terra à elevação da temperatura e suas conseqüências.

- Elas já diminuem e essa tendência deve se acelerar - diz o climatologista Carlos Nobre, do CPTEC e um dos autores do relatório do IPCC.

É um fenômeno observado desde o início do século XX e acelerado a partir dos anos 60. Observações feitas por satélites começam a oferecer um cenário mais detalhado da situação, principalmente em áreas elevadas e remotas.

- As geleiras recuam a olhos vistos. A maioria delas mostra sinais de declínio - diz Jefferson Simões.

Isso acontece porque a cada ano a taxa de neve preservada durante os meses de verão é reduzida. Por isso, fenômenos ocasionais, como as violentas ondas de frio que castigaram Bolívia, Peru, Chile e Argentina nas últimas semanas, têm efeitos temporários e não são suficientes para repor o volume de gelo perdido ao longo de décadas.

A última nevasca, que levou neve a Buenos Aires pela primeira vez em cem anos, pode estar associada ao fenômeno da La Niña, cuja origem é o resfriamento da água do Oceano Pacífico ao longo da costa da América do Sul.

A La Niña costuma causar invernos mais frios em parte da América do Sul. Muitos dos invernos mais rigorosos no Sul, no Sudeste e no Centro-Oeste do Brasil no último meio século aconteceram em anos de La Niña. A temperatura da água do Pacífico tem estado anormalmente baixa no litoral equatorial da América do Sul, o que, segundo uma análise da Nasa, configura a formação da La Niña. Cientistas dizem, porém, que ainda é cedo para saber se a La Niña vai perdurar por muito tempo.

O Globo, 15/07/2007, Ciência, p. 39

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