VOLTAR

Tão perto, tão longe

O Globo, Amanhã, p. 10-15
14 de Ago de 2012

Tão perto, tão longe
Arquipélago das Cagarras, a apenas quatro quilômetros da costa do Rio, ainda tem biodiversidade desconhecida. Força-tarefa de pesquisadores descobre novas espécies, mapeia potencial turístico e aponta principais ameaças

CAMILA NOBREGA
camila.nobrega@oglobo.com.br
CLÁUDIO MOTTA
claudio.motta@oglobo.com.br

Vistas das praias da Zona Sul do Rio, as ilhas que formam o Arquipélago das Cagarras são marcas dos cartões-postais mais bonitos da cidade. Mas, apesar da proximidade e de estarem sempre um ao alcance do outro, a relação entre o carioca e o Monumento Natural das Ilhas Cagarras, área federal de proteção integral criada em 2010, está longe de ser íntima. Pesquisa realizada pelo projeto Ilhas do Rio com 200 moradores da Zona Sul apontou que 70% sequer sabem que o arquipélago é uma unidade de conservação. Este cenário, no entanto, deve mudar.
Pela primeira vez uma força-tarefa de pesquisadores está se debruçando sobre a riqueza ambiental e o potencial turístico ainda inexplorados. Empresas, ONGs e o governo produzem conhecimento, além de identificar os maiores riscos no caminho da preservação.
Entre 20 minutos a uma hora, dependendo do barco, as dez milhas náuticas que separam as ilhas das marinas da Urca estão vencidas.
Uma revoada impressionante de aves recebe o visitante, e ajuda a entender a mais provável explicação para o batismo do arquipélago.
Dejetos dos pássaros, principalmente fragatas e atobás - a segunda maior população das aves da costa brasileira -, pintam de branco as formações rochosas, que, quando úmidas, ganham tonalidades esverdeadas.
Tartarugas, golfinhos e diversos organismos marinhos, além de animais que vivem nas ilhas, dão a importância ambiental da unidade, que ainda conserva um remanescente de Mata Atlântica insular.
Desde o final do ano passado, pesquisadores do projeto Ilhas do Rio - uma das iniciativas da ONG Mar adentro - conseguiram patrocínio para fazer um raio X da fauna, flora e qualidade da água que cerca as Cagarras. Os pescadores, que sempre foram apontados como uma das ameaças à ilha por causa da pesca predatória, foram atraídos para o projeto.
Os recursos financeiros virão da Petrobras, que vai aportar R$ 3 milhões até 2013. A produção científica é tão intensa que tem feito das Cagarras um pedaço de terra cercado não só de água, mas, sobretudo, de pesquisadores por todos os lados.
São duas as frentes de trabalho. Uma delas é voltada para o monitoramento da biodiversidade marinha e terrestre, já que o arquipélago tem se mostrado um leque imenso de espécies. Algumas delas só existem lá (chamadas de endêmicas), como uma perereca (Scinax sp.) e uma barata do mato (Hormetica sp.). A segunda tem como meta analisar a composição das águas, que trazem esgoto in natura vindo do emissário submarino de Ipanema e altos níveis de poluição da Baía de Guanabara. O projeto prevê o estudo de contaminantes em aves marinhas e mexilhões, o monitoramento dos peixes do entorno dos recifes de corais, a quantificação das aves marinhas e o levantamento dos padrões reprodutivos de atobás e fragatas.
- Por estarem localizadas próximas ao Rio, as ilhas são cada vez mais impactadas.
Sem ações para mudar o cenário, a tendência é que os problemas cresçam. Nosso objetivo é impedir que isso aconteça, porque as Cagarras são um patrimônio importantíssimo. O turismo, que pode ser benéfico, precisa ser regularizado, o que não vem ocorrendo hoje - comenta o coordenador do Ilhas do Rio, Carlos Rangel.
Monitorando as espécies e a pressão humana, as pesquisas do projeto pretendem não só apontar os principais riscos ao ecossistema do arquipélago, como também aproximar os cariocas das ilhas, para o desenvolvimento de um turismo controlado, sem degradação ambiental.
Entre as riquezas ameaçadas estão mais de 150 espécies de plantas, sem falar nos organismos marinhos, fonte econômica para pescadores da região. A área de proibição de pesca a dez metros da ilha nem sempre é respeitada pelos profissionais.
Se, em história de pescadores, a versão de que os dejetos das aves deram nome ao arquipélago é encarada como certa, o consenso não se repete entre os historiadores. A outra interpretação é que os portugueses teriam confundido as fragatas, abundantes no local, com um pássaro muito parecido que vive na Ilha da Madeira, território português a Oeste da costa africana. O nome da ave é cagarra ou cagarro (Calonectris diomedea), mas ela não é encontrada em terras brasileiras. O que se sabe ao certo é que o primeiro registro histórico de que se tem notícia das ilhas data de 1730. Uma carta náutica refere-se à Cagarra com nome afrancesado de "Ilha Cagade". Num outro documento, de 1767, aparece a mesma denominação, mas em português: "Ilha Cagado".
O arquipélago é frequentado por pescadores desde o início do século passado e, a partir da década de 1950, tornou-se ponto de encontro de praticantes de mergulho. As primeiras informações sobre os organismos marinhos vieram dos relatos dos mergulhadores, mas não evoluíram muito. O desconhecimento era tanto que, no início do Ilhas do Rio, os próprios pesquisadores não faziam ideia de que encontrariam uma diversidade tão grande.
O projeto seria voltado apenas para a biodiversidade marinha, mas, no decorrer das visitas, os especialistas se depararam com espécies de plantas e animais que sequer sabiam identificar. Resolveram, então, expandir a ideia. Segundo Fernando Moraes, biólogo marinho e pesquisador do Museu Nacional, que também é um dos idealizadores do Ilhas do Rio, a iniciativa é pioneira:
- Os trabalhos estão sendo desenvolvidos com muita qualidade e profundidade. Sempre olhamos a ilha e nunca fizemos nada. Tirando esponjas, golfinhos e peixes, praticamente não havia estudos científicos sobre as Cagarras - diz Fernando.
Tendo em vista as informações que constam em bancos de dados e levantamentos, os cientistas do estado têm hoje mais acesso a informações relativas a ilhas como Fernando de Noronha, a 2.338 quilômetros do Rio, do que sobre as Cagarras, no quintal de casa. E é provável que o número de cariocas que já foi à ilha na costa do Nordeste seja maior do que os que já estiveram no arquipélago conterrâneo.
Haverá mais informação sobre o arquipélago carioca disponível já no começo do ano que vem, quando será lançado um livro sobre as ilhas, com três mil exemplares e distribuição gratuita. A publicação terá capa dura e pelo menos dez capítulos sobre as Cagarras.
Também haverá um DVD com o trabalho dos pesquisadores, cujo lançamento está previsto já para outubro. Por fim, os profissionais prometem finalizar um documentário inédito em curta metragem, com imagens submarinas em 3D. O projeto também mantém uma página na internet, que pode ser visitada no endereço ilhasdorio.org.br.
- Fizemos 33 mil panfletos sobre o monumento natural, uma apostila para um curso de inglês gratuito voltado para pescadores e estamos elaborando uma apostila para um novo curso de pesca artesanal, que será ministrado por eles e terá noções de conservação na pesca - enumera Moraes.
Os pescadores da colônia do Posto 6 têm sido parceiros diretos. Eles, que têm como local de trabalho as águas entre o Arpoador e as Cagarras, são os principais afetados por qualquer impacto negativo sobre os peixes, que abastecem a mesa dos cariocas. Com apoio do Ilhas do Rio e do Instituto Chico Mendes (ICMBio), autarquia federal ligada ao Ministério do Meio Ambiente, mantêm atividades no centro de visitantes que fica aberto na beira da praia, das 9h às 18h. E fazem, ainda, a contagem e o registro de qualquer anormalidade com os peixes, na hora do desembarque.
A área total do arquipélago, somatório das ilhas e da porção marinha que compõem a unidade de conservação, é de 78 hectares (equivalente a 78 campos de futebol). A Ilha Comprida tem o acesso mais fácil e concentra a maior quantidade de barcos de turismo nos finais de semana. As ondas são menores no local por causa do seu formato, mais alongado. Por isso, ela é alvo constante de acampamentos ilegais, montados com o objetivo de capturar espécies locais. Já a Ilha das Palmas é marcada pela bela presença de palmeiras. É esta a ilha mais próxima do continente. A mais distante é a Ilha Redonda, a mais alta de todas, escolhida pelas fragatas, cujos machos inflam o papo vermelho para fazer a côrte para as fêmeas.
Juntas, elas formam a unidade de conservação administrada pelo ICMBio. A chefe do parque - e única funcionária - é Fabiana Bicudo. A bióloga de 33 anos é especializada em áreas costeiras e tem mestrado em oceanografia. Mergulhadora há mais de dez anos, e fã do famoso oceanógrafo e cineasta francês Jacques Cousteau, carrega no currículo a chefia do Parque Nacional Marinho Fernando de Noronha, em Pernambuco, entre 2008 e 2011. De lá, trouxe a experiência de ordenar o turismo e promover o uso público em unidades marinhas.
- Lidamos diariamente com logística de atividades embarcadas, mergulho, fiscalização de áreas marinhas e tudo isso exige uma forte capacitação - conta Fabiana. - Neste primeiro momento, gostaria muito de ver consolidada a gestão institucional do ICMBio, por ser a primeira servidora da unidade de conservação. A grande responsabilidade e o desafio neste campo está em garantir as condições de trabalho e garantir o cumprimento dos objetivos de criação da unidade.
A chefe do parque espera poder contar, um dia, com uma equipe . Ela também planeja uma sede para a unidade de conservação.
Embora seja uma área de preservação desde 2010, a ilha só passou a receber fiscalização efetiva em maio deste ano, com o objetivo principal de coibir os acampamentos ilegais e a pesca predatória. O que é muito pouco para garantir a proteção.
As marcas do uso predatório são visíveis.
Pedaços de tubos de PVC podem ser vistos encravados nas rochas. Eles são usados como suporte para varas de pescadores que ficam nas pedras ilegalmente. Muitas vezes, o local é de tão complicado acesso que até mesmo a fiscalização encontra dificuldade de chegar.
De acordo com as contas da chefe da unidade de conservação, uma equipe com três ou quatro pessoas seria suficiente. Enquanto não é feito um concurso público, Fabiana conta com os integrantes do Conselho Consultivo, composto por 28 instituições dos mais diversos setores (governo, universidades, ONGs, setor de turismo, mergulho e colônias de pesca), que muitas vezes prestam ajuda através de apoio voluntário.
A futura sede do Monumento Natural das Cagarras deverá ser erguida no Parque Municipal Penhasco Dois Irmãos, no Leblon, cuja vista para as ilhas é privilegiada. Lá será possível aproveitar a estrutura mantida pela prefeitura, com a qual o ICMBio está negociando a viabilidade do uso compartilhado do espaço. Até lá, a chefe das Cagarras usa o escritório da coordenação regional do Instituto Chico Mendes, na Tijuca.
- Em um segundo momento, preciso elaborar o Plano de Manejo, documento técnico previsto no Sistema Nacional de Unidades de Conservação com regras de ordenamento, normas de uso e zoneamento - revela Fabiana. - Com o apoio de ONGs vamos ter auxílio para atingir um patamar de gestão privilegiado, que poderá tornar as Cagarras modelo.
O Monumento Natural das Ilhas Cagarras já conta com um apoio financeiro da ONG SOS Mata Atlântica, que captou R$ 1 milhão para a criação de um fundo de investimento perpétuo, além de R$ 200 mil para garantir ações emergenciais, como a construção da sede, compra de equipamentos etc. Segundo Márcia Hirota, diretora da ONG, a obtenção de recursos continuará por cinco anos:
- O fundo terá sua renda líquida investida nas Cagarras, com recursos do cartão de afinidade Bradesco SOS Mata Atlântica Visa, do qual parte da anuidade é investida em projetos. Há coisas simples que dificultam o trabalho, como comprar gasolina ou uma pequena peça. Montaremos um local para que as pessoas possam observar o monumento, mergulhar etc.
A logística é fundamental para gerenciar uma unidade a quatro quilômetros do continente. O desafio não assusta a chefe do parque, que já atuou em Fernando de Noronha, a 545 km de Recife. Mesmo sendo um arquipélago, ela considera que o Monumento Natural das Ilhas Cagarras deve ser tratado como uma unidade urbana. Isto porque a unidade de conservação sofre com a poluição da cidade. A conexão com a Baía de Guanabara, que recebe esgoto, rejeitos industriais, lixo, derrames de óleo e metais pesados em suas águas, é uma preocupação. Isopor, plástico e todo o tipo de sujeira vão parar no arquipélago. Até em ninhos já foram encontrados.
Num mutirão de coleta de lixo marinho realizado este ano, foram recolhidos 80 kg em um único dia. Somado a tudo isso está o fato de o emissário submarino de Ipanema fazer jorrar esgoto da Zona Sul e parte do Centro, sem tratamento, no equivalente a 6 mil a 8 mil litros por segundo. Embora a análise de qualidade da água aponte que as ilhas ainda estão bastante preservadas, já há impactos registrados em espécies.
Outros problemas que causam impactos nas Cagarras são o tráfego de embarcações - a utilização do Porto do Rio, na Baía de Guanabara, gera até mesmo a formação de filas de grandes barcos e até de plataformas de petróleo -, a entrada de espécies invasoras (como os corais Tubastraea tagusensis e T. coccínea) e o turismo desordenado.
- Os barcos de passeio usavam buzinas, para que as aves voassem. Os turistas adoram, mas é um estresse para os animais. - reclama Fabiana. - O mesmo acontece com golfinhos. Eles são populares, mas os barcos estavam se aproximando demais, provocando desequilíbrio reprodutivo e mudança nas condições de alimentação e cuidado com os filhotes.
Após consolidadas as pesquisas nas Cagarras, o próximo passo será em ilhas próximas, como a Rasa, administrada pela Marinha.

Tupis-Guaranis estiveram nas Ilhas
Equipe do Museu Nacional estudará sítio arqueológico no local

CAMILA NOBREGA
camila.nobrega@oglobo.com.br

Acampado na Ilha Redonda para relatar a diversidade de plantas que encobrem as pedras nas Cagarras, em dezembro de 2011, um grupo de botânicos do projeto Ilhas do Rio se deparou com uma outra descoberta. Eles foram surpreendidos com um machado e uma mão de pilão, haste do instrumento antigo muito utilizado na agricultura para amassar alimentos. A presença dos objetos não teria nada de extraordinária, não fosse o fato de terem sido confeccionados há pelo menos centenas de anos e de que não havia indícios de ocupação do arquipélago antes do início do século XX.
Além da rica biodiversidade, a ilha acabava de apresentar aos pesquisadores um sítio arqueológico dos índios tupis-guaranis.
A equipe entrou em contato com arqueólogos do Museu Nacional, que só estão aguardando a autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para estruturar uma linha de pesquisa no local.
Eufórica com a descoberta, a arqueóloga do Departamento de Antropologia do museu que coordenará o estudo, Rita Scheel-Ybert, já esteve nas Cagarras:
- Não podemos dizer que são indícios de habitação, mas sabemos que pessoas estiveram lá muito antes do que imaginávamos. As peças são típicas dos tupis-guaranis, que ocuparam o litoral do Rio por muito tempo, até a chegada dos portugueses. Não é surpresa que eles tenham enfrentado o oceano até lá, porque eram ótimos remadores. Mas é impressionante que tenham levado tantas peças e tão pesadas.
A arqueóloga ficou intrigada ao fazer sua primeira visita à Ilha Redonda, no início deste ano. Ela percebeu que o desembarque no local é complicado, e necessita de uma parte de escalada nas pedras. Além dos dois objetos, ela encontrou várias cerâmicas, algumas de grande porte, espalhadas numa área extensa da ilha. Logo que a autorização do Iphan sair, elas serão levadas ao museu, para serem estudadas e devidamente preservadas:
- A primeira linha de raciocínio aponta que os índios podem ter ido para as Cagarras em busca de alimento.
Mas, para isso, eles não precisariam carregar artefatos tão pesados. Algumas peças possivelmente indicam urnas funerárias. E outras são cerâmicas menores, mais simples.
Não há dúvida de que as peças trazem indício cultural, talvez ligado a algum ritual. É surpreendente que eles tenham remado do continente para as ilhas com tantas coisas. Mesmo bem preparados fisicamente, a tarefa deve ter sido difícil.
Segundo o biólogo marinho Fernando Moraes, do projeto Ilhas do Rio, que está fazendo parceria com o Museu Nacional, os índios podem inclusive ter levado espécies para a Ilha Redonda:
- Para estudos de fauna e flora, a ocupação humana pré-colonial é muito informativa.
Encontramos na Ilha Redonda moluscos e um tipo de batata-doce que não foram encontrados nas outras ilhas. Uma linha de raciocínio que estamos desenvolvendo em conjunto entre arqueologia, zoologia e botânica é a possibilidade delas terem sido levadas para consumo humano.

O Globo, 14/08/2012, Amanhã, p. 10-15

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.