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S.O.S., velho Chico

CB, Opiniao, p.15
14 de Fev de 2005

S.O.S., velho Chico
Marcelo Pimentel

O governo está anunciando o início do processo de transposição do rio São Francisco para os vales do Nordeste, ou seja, o semi-árido. Realizará audiências públicas nos estados interessados, que vivam o drama da seca e tenham vinculação com o velho Chico.

A degradação do Rio da Unidade Nacional, que banha vários estados antes de mergulhar no Atlântico, é problema tão grave que a utilidade da transposição é de validade absolutamente discutível, como opõem Minas e Bahia, as principais unidades federativas envolvidas. Para a geração mais jovem é preciso lembrar que o Chico era navegado intensamente por gaiolas, algumas vindas até do Mississípi, quando o estado americano modernizou seu transporte. Suas águas eram fonte magnífica de pesca para abastecimento suficiente de Minas Gerais, quando ainda inexistia Brasília. Aos poucos, a Serra da Canastra foi perdendo suas florestas, as nascentes foram secando, o rio foi tomado por bancos de areia, dificultando a navegação, que entrou em completa decadência, ao tempo em que as matas ciliares foram sendo transformadas em carvão.

A Companhia do Vale do São Francisco foi uma batalha que o deputado Manoel Novais, da Bahia, enfrentou para defender o rio. Morreu depois de ter conseguido fazer a hidrelétrica de Paulo Afonso, talvez a mais importante obra do governo Dutra, que apoiou a campanha de soerguimento do velho Chico.

Juscelino depois criou Três Marias e, posteriormente, veio Sobradinho. Quem olha as margens de Três Marias (qualquer viajante entre Belo Horizonte e Brasília) vê, no verão, como elas ficam nuas, porque o rio sofre com a seca, eis que os afluentes já perderam também muita água por padecerem dos mesmos problemas.

Pretende-se agora a transposição, idéia defendida por D.Pedro II, que não conhecia o potencial hídrico da bacia amazônica. O sonho não se tornou realidade porque não havia dinheiro e o país precisava de libras esterlinas para outros fins. A República não alimentou a proposta, que Lula agora retoma.

Esquecem-se seus defensores que Minas e Bahia têm grande parte dos seus territórios no polígono das secas, que a transposição pretende beneficiar. Minas possui até projetos em desenvolvimento aproveitando a água do rio. Ora, por que se vai desviá-lo adiante prejudicando Minas e Bahia se, notoriamente, o São Francisco não tem mais água em quantidade para o que sonham?

Usar mais 26 metros cúbicos por segundo como vazão é insuportável para sua capacidade. O que vai acontecer é a falta de água, quando começarem a bombeá-la de Sobradinho, que há pouco exibia posição precária decorrente da seca. A situação da barragem estava a ponto de prejudicar os projetos já existentes e consolidados. Ademais, esquecem-se que o orçamento prevê viveiros para duzentas mil mudas necessárias aos replantes nas margens. Isso só pode ser tido como brincadeira, porque duzentas mil mudas só dão para fazer um parque infantil. Como pensar em repovoar os quilômetros e quilômetros de margens com tão poucas mudas?

Vai-se gastar tanto dinheiro para nada, porque as populações ribeirinhas são carentes de tudo: água encanada, saneamento, irrigação, tudo, tudo, e ninguém está considerando que o semi-árido começa em Minas. Dizem os defensores que, desviado o rio, a perda de volume na foz será de menos de 1%. Ora, se pretendem desviar mais 26 metros por segundo, o pessoal da foz vai ficar sem nada, ainda mais porque existem anos de seca e de chuva. Não se ouve falar mais em enchente no São Francisco, porque o rio está pedindo socorro.

Coloca-se o problema como estratégia de desenvolvimento, sem se considerar o problema da água. Não se trata apenas de um projeto de engenharia. Estão em causa as conseqüências sociais, se houver erros, que serão gravíssimas. Há180 mil hectares nas margens do rio sem aproveitamento por falta de recursos e interessados. Consumidos os 90 metros atuais, mais os 26 futuros, onde vão achar tanta água para sustentar os projetos de criação de camarão, irrigação, etc.? Ninguém pensou sequer em mudar o sistema de irrigação por aspersão, que provoca perda sensível em face da evaporação. O camarão vai nadar, mas as populações vão ficar sem água. Projeto camarão é para quem tem água abundante.

Pretendem desapropriar 2,5km nas margens para a reforma agrária. Já pensaram quanto de água vai consumir essa população assentada? Se Sobradinho não tiver água na seca do rio, acabou-se o plano ou acabou-se o sonho. Aí haverá mais gente no semi-árido clamando por um caminhão-pipa para matar a sede.

O problema da vida dos rios é mundial. O aproveitamento irregular mata-os. O Colorado, rio caudaloso outrora, hoje nem consegue chegar ao mar. O projeto do São Francisco é de desenvolvimento , eis que para outros usos da população há 37 milhões de litros nos açudes.

De Sobradinho só poderão tirar água se a barragem estiver sangrando. Caso contrário, haverá comprometimento do sistema de geração elétrica e morte dos projetos agrícolas .

Não se combaterá a desertificação, antes será ampliada em Minas e Bahia. Se não se desviarem agora mananciais da bacia amazônica, que se construam poços, cacimbas, pequenas barragens, etc. Minas e Bahia estão muito caladas, enquanto o velho Chico começou a lançar o seu S.O.S.

CB, 14/02/05, Opinião, p.15

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