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Sombra do cangaço

O Globo, Sociedade, p. 21
14 de Out de 2017

Sombra do cangaço

Ana Lucia Azevedo

RIO - A copa, sempre verde, da árvore se ergue dez metros acima do solo pedregoso da Caatinga. Em boa parte do ano, quilômetros a se perder de vista, é a única sombra a proteger homens e animais do Sol sem trégua. Apesar de tão presente no cotidiano de várias regiões do Nordeste, uma das árvores mais altas da Caatinga, o único bioma 100% brasileiro, era até pouco tempo uma completa desconhecida para a ciência. Mas sua descoberta acaba de ser oficialmente anunciada por pesquisadores que a batizaram com o nome científico de Hymenaea cangaceira, mas podemos chamar essa planta de jatobá-do-cangaço, ou apenas cangaceiro.
A alusão ao cangaço se deve ao fato de esse jatobá ser típico dos lugares por onde Lampião e o seu bando de cangaceiros passaram na década de 1920. Ele existe na Caatinga dos estados da Bahia, Paraíba, Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Sergipe e Piauí, explica o principal autor da descoberta, o botânico Rafael Barbosa Pinto, um especialista no gênero dos jatobás, atualmente na Universidade Federal de Goiás:
- Além de ser característico da região do Cangaço, esse jatobá compartilha com os antigos cangaceiros a capacidade de não ser visto. Os cangaceiros conseguiram por anos desaparecer das autoridades que os procuravam, mesmo no terreno aberto do sertão. Já esse jatobá iludia taxonomistas, que acreditavam ser de uma outra espécie conhecida. Ele é relativamente comum e acho bem provável que Lampião e seu bando descansassem sob sua copa nas horas mais quentes do dia. As árvores são raras na Caatinga, onde predomina a vegetação rasteira e arbustiva.
Como autêntico nordestino, o jatobá-cangaceiro é um forte. Suas sementes germinam mesmo após 30 anos guardadas. Deste jatobá tudo se aproveita. Madeira, casca, frutos e até sombra e beleza. A madeira é usada em móveis. Dos frutos, se faz farinha. A casca é medicinal. E há as flores que emprestam beleza à paisagem árida, reino de pedras, galhos retorcidos e espinhos. Nestes dias de outubro, já estão em botão. Florescem em novembro e assim permanecem até março. Mesmo que do céu não caia uma gota d'água, as flores lá vicejarão, assim como os frutos que brotam em março e podem ser guardados por muito tempo.
Descoberta tem valor econômico
De acordo com o artigo científico que batizou o jatobá-do-cangaço, há oito espécies da planta na Caatinga. Para provar que estava diante de uma nova, Rafael recorreu primeiro a análises morfológicas detalhadas de exemplares coletados em campo ou depositados em herbários. Ele também conduziu análises moleculares. Ambas as investigações comprovaram que se tratava de uma novidade digna de ser descrita em revista científica.
A descoberta se trata bem mais do que mera curiosidade. As espécies da Caatinga ainda são pouco conhecidas e têm enorme potencial para a biotecnologia. A cada nova espécie catalogada são abertas oportunidades para descobrir substâncias de importância, por exemplo, para a indústria farmacêutica, destaca o também botânico Vidal Mansano, do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro, coorientador do doutorado de Rafael na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e atual orientador de seu pós-doutorado. A descrição do novo jatobá é resultado da tese de doutorado de Rafael, que contou ainda com a orientação da professora Ana Maria Tozzi, da Unicamp.
Para sobreviver à aridez extrema da Caatinga, plantas como este jatobá desenvolveram estratégias variadas. Possuem substâncias químicas únicas, sobre as quais o conhecimento é escasso. O jatobá-do-cangaço, por exemplo, produz uma resina em sua casca. No sertão, ela é remédio.
- O sertanejo trata problemas pulmonares com o chá da casca. Esse conhecimento tradicional é valioso para indicar substâncias que podem ter sua composição química analisada. Isso muitas vezes já levou, por exemplo, ao desenvolvimento de medicamentos que potencializam os efeitos do composto da planta. É um conhecimento precioso - diz Rafael.
Frutos viram alimento
O pesquisador diz que os moradores locais têm carinho pela árvore. Ela é muito usada para a fabricação de farinha. Muitas vezes, a única comida disponível. Desta se fazem bolos, tortas e pães.
- A farinha do jatobá é riquíssima de açúcares, não tem glúten. É muito nutritiva, numa região castigada pela seca, onde os alimentos são escassos para a população mais pobre. Seu único senão é o cheiro forte. Mas ele desaparece, se a farinha for bem assada. Acredito que a difusão do conhecimento tem tudo para tornar o jatobá-do-cangaço uma Panc (denominação para plantas alimentícias não convencionais) - diz Rafael.
A Caatinga é o menos estudado dos biomas brasileiros. A aparência hostil esconde grande biodiversidade e a existência de espécies endêmicas, isto é, exclusivas. A pesquisa sobre os jatobás continua. Demanda viagens a campo e visitas a herbários no Brasil e no exterior. Duas novas espécies da Amazônia estão em processo de descrição. O botânico Vidal Mansano teme que os cortes no orçamento da ciência prejudiquem o projeto:
- O fato de uma árvore do tamanho do jatobá ter tamanha diversidade ainda desconhecida evidencia a necessidade do Brasil em conhecer seu próprio patrimônio natural. É uma riqueza literal imensa. Tudo isso pode parar. Serão anos de atraso, com prejuízo para o país.

O Globo, 14/10/2017, Sociedade, p. 21

https://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/jatoba-popular-na-c…

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