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Solidão dos nambiquaras

O Globo, Prosa & Verso, p. 5
07 de Nov de 2009

Solidão dos nambiquaras
Índios que inspiraram "Tristes trópicos" ainda vivem à margem do Brasil

Guilherme Freitas

Em meio às incontáveis homenagens feitas a Lévi-Strauss nos últimos dias, muito foi dito sobre o papel central dos índios brasileiros na sua formação.
Entre 1935 e 1939, o contato que teve com os povos caduveo, bororo, nambiquara e tupi-cavaíba despertou sua vocação etnográfica e ajudou a moldar suas teorias sobre as narrativas mitológicas e a organização dos grupos sociais.
A publicação de "Triste trópicos", em 1955, chamou a atenção do mundo para aquelas tribos até então pouco conhecidas.
Os nambiquara, em especial, são citados como aqueles cuja convivência foi mais produtiva para o trabalho de campo do antropólogo.
O reduzido contato dos nambiquara com outras sociedades (até os anos 1930, só se aproximavam deles uns poucos funcionários de estações telegráficas e missionários cristãos) transformou-os em símbolos de "índios isolados" aos olhos ávidos por exotismo dos leitores ocidentais.
Sete décadas depois daquele encontro com LéviStrauss, porém, eles continuam, de muitas formas, isolados.
Enquanto o Brasil celebra o antropólogo e se orgulha de sua ligação estreita com os índios daqui, os problemas enfrentados pelos nambiquara hoje relembram o tamanho da distância que ainda separa os grupos indígenas do resto do país.
Protestos contra usinas hidrelétricas e saúde pública
Autora de "Senhores da memória: Uma história dos nambiquara do cerrado" (2002) e de outros livros dedicados ao tema, a antropóloga Anna Maria Ribeiro F. M.
Costa dedica-se aos nambiquara há mais de duas décadas e viveu com eles de 1982 a 1988. Entre os principais desafios enfrentados hoje pelos nambiquara, Anna lista obras públicas que interferem em seus territórios e em seu modo de vida - como a hidrelétrica de Juruena (MT) e linha de energia entre Jauru (MT) e Samuel (RO) - e a precariedade do tratamento de saúde oferecido aos índios.
Os nambiquara são apenas um dos grupos indígenas afetados pela construção da hidrelétrica do Rio Juruena, em cuja bacia estão situadas cerca de 90 aldeias de cinco etnias diferentes. Numa batalha judicial que se arrasta há anos, os índios alegam dependerem dos recursos e serviços ambientais oferecidos pelos rios. Em diversas ocasiões, os nambiquara fecharam a rodovia BR-364, que demarca um dos limites de suas terras. Em agosto deste ano, atendendo aos protestos indígenas, o Ministério Público Federal de Mato Grosso obteve uma decisão liminar da Justiça Federal para suspender a licença prévia concedia pela Secretaria estadual de Meio Ambiente para a construção da usina.
Segundo Anna, a construção da hidrelétrica e da linha de transmissão de energia JauruSamuel repetem um padrão de intromissão violenta na cultura indígena.

- Em 1907, foi construída a linha telegráfica idealizada por Rondon, que atravessava o Mato Grosso passando por terras nambiquara. Mais tarde, foi a vez da BR-364, que os nambiquara chamam de "A Reta". Agora temos a linha de energia, que eles chamam de "Linhão", que não passa pelo território deles, mas interfere em seu modo de viver.
Assim como a hidrelétrica.
É preciso desenvolver projetos que reduzam a violência dessa intromissão, ao contrário do que aconteceu nas obras anteriores - adverte Anna.
Mesmo longe, Lévi-Strauss seguia rotina nambiquara
O tratamento de saúde oferecido pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) aos povos indígenas da região também recebe críticas. Até 1992, esse atendimento ficava a cargo da Fundação Nacional do Índio (Funai).

- A falha da Funasa é não levar em conta as muitas diferenças que existem entre cada um dos grupos indígenas. Os nambiquara reclamam da falta de postos de saúde, mas também de simples falta de informação a respeito dos tratamentos oferecidos.
Em 1987, Anna começou a se corresponder com LéviStrauss, que acompanhou seu trabalho de perto e revelouse ainda interessado pelos nambiquara. Nas cartas, o antropólogo dizia-se surpreso com a forma como a sociedade nambiquara conservava suas características essenciais mesmo após sete décadas: - A sociedade nambiquara recebeu uma influência enorme da nossa, mas Lévi-Strauss percebia neles a mesma alma que identificou em 1938. Diante das atrocidades do contato, que pode ser muito violento, isso o surpreendia.
A violência desse contato, que se desdobra nas intervenções no território e na cultura dos nambiquara, surge com mais evidência nos estereótipos e preconceitos a respeito dos índios que ainda existem na sociedade brasileira, aponta Anna: - Nossa visão dos índios varia entre dois extremos. De um lado, ainda é o "bom selvagem" de Rousseau, a criatura ingênua de sentimentos elevados. De outro, é visto de forma pejorativa, relacionado ao atraso, à preguiça. Estamos entre a idealização e o preconceito.

O Globo, 07/11/2009, Prosa & Verso, p. 5

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