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Sol é energia na floresta

O Globo, Razão Social, p. 12-14
21 de Set de 2010

Sol é energia na floresta
Projeto Luz para Todos chega a seringais no Acre pela energia solar

Camila Nobrega
camila.nobrega@oglobo.com.br
Enviada especial à Xapuri, no Acre

No meio dos seringais acreanos, o jeito mais comum de iluminar a casa é a velha lamparina. À noite, ela transforma as casas de tábuas de madeira, cruas ou coloridas, em pequenos pontos de luz quase apagados por aquela fumaça que dá um ar romântico às centenas de histórias dos sertões brasileiros.
Mas ali, enfurnada em pequenas moradias, a fumaça é preta e tóxica, fruto do querosene que abastece os lampiões. Ainda são exceções as famílias que possuem um gerador. E os olhos de seringueiros, suas mulheres e filhos, brilham ainda mais quando se fala em placa solar. Todos sabem o que é, e querem ter. Mas são poucos os beneficiados de um braço do projeto Luz para Todos, da Eletrobras, que leva energia solar a regiões remotas do estado.
Para se expandir, o programa tem muitos desafios pela frente. É preciso definir como entregar as contas de luz em locais de difícil acesso, adequar a legislação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), e pensar em uma solução ambientalmente amigável para as milhares de baterias que têm vida útil de cerca de dois anos.
Por enquanto, trata-se de um projeto piloto, iniciado em 2004. O município escolhido no Acre foi Xapuri, terra que ficou famosa dentro e fora do país por conta da história do seringueiro e sindicalista Chico Mendes, assassinado em dezembro de 1988.
Por lá, cem casas e três escolas de seringais da Reserva Extrativista Chico Mendes foram beneficiadas pelo programa, que se encerra em 31 de dezembro deste ano. O objetivo, porém, é estendê-lo até 2014, para atender cerca de 14 mil famílias. Embrenhadas na mata, as pequenas construções de madeira nos seringais ficam a quilômetros de distância dos pontos onde há cabos e postes de energia. Para ligá-las à rede, seria necessário desmatar grandes áreas, com custos imensos econômicos e ambientais. Por isso, a energia solar é a opção mais viável.
Onde chegam, as placas solares viram personagem principal. Na casa do seringueiro aposentado Francisco Barbosa, à beira do Rio Acre, no Seringal Iracema, mudou a rotina dele, da mulher, de três filhos e dois netos que moram lá. As montanhas de pilhas para manter o rádio ligado nas partidas do campeonato brasileiro foram aposentadas, e a televisão ganhou espaço entre troféus de seis clubes do país que ficam expostos na sala. No outro extremo do cômodo, destaca-se um freezer branco, em meio às tábuas vermelhas e verdes do chão da casa. otado de garrafas PET com água gelada e com espaço cativo para panelas com as sobras do dia, ele é o dengo da dona da casa, Elair.

- Você não imagina o que é sentir o gosto da água gelada depois de um dia de trabalho na mata.
Tem outro sabor - disse ela, sob um calor de 40C.

- E a comida, quando sobra, a gente pode comer no dia seguinte, ou de noite, fresquinha. Quando vou à cidade, compro também carne congelada. Sei que estrangeiro gosta de galinha caipira, mas eu como todo dia. Hoje prefiro o gosto do frango congelado - disse.
O freezer foi doado pela Eletrobras a apenas três residências, para testar o melhor uso em diferentes sistemas elétricos. Como a energia disponível no projeto é de apenas 13kwh, o equivalente ao uso de 20 pilhas grandes por dia, uma geladeira convencional não funcionaria, embora Elair tivesse pensado em comprar à prestação.
Como sobra comida para o jantar e as três lâmpadas da casa mantidas pela placa solar garantem iluminação durante a noite, quem também saiu ganhando foi a neta, Euricléa Barbosa, de 9 anos. A menina leva quatro horas por dia para ir e voltar da escola, mas explicou que hoje tem tempo de estudar ao chegar em casa:
- A lamparina doía o olho. Agora, eu chego em casa, não preciso sempre cozinhar com minha vó e posso estudar até mais tarde. Sabia que minhas notas já estão melhores? - contou Euricléa.

A família havia comprado, por conta própria, em 2003, uma placa solar. Durante mais de um ano, eles pagaram cerca de R$ 800 pelo equipamento, que, sem manutenção, parou de funcionar em pouco tempo. Com aposentadoria de R$ 510 para sustentar toda a família, faltou dinheiro para consertar.
Além de cuidados para manter em funcionamento as células fotovoltaicas que capturam a energia do sol, é preciso trocar as baterias. Hoje, a família tem o kit entregue pela Eletrobras aos moradores, composto de três placas solares, três lâmpadas, e duas baterias que têm vida útil de aproximadamente dois anos.
A manutenção é um dos entraves do projeto, já que é preciso estabelecer uma logística específica para a região, para fazer a troca de milhares de baterias em locais isolados. O custo é bastante elevado, se for considerada a conta de luz de aproximadamente R$ 3 de cada casa. Segundo a concessionária Eletroacre, para fazer a manutenção é preciso cerca de R$ 264 por ano, sem contar o custo de instalação de cerca de R$ 7 mil, em cada domicílio. São considerados na conta possíveis defeitos, visitas e também o recolhimento das baterias, que, segundo a Eletrobras, são levadas para a concessionária na capital, Rio Branco, e armazenadas para serem devolvidas ao fabricante. O que é feito dessas baterias depois disso, no entanto, a companhia não sabe dizer.
Também devido aos locais onde as casas se encontram, no meio da floresta, não há saída ainda para entregar as contas de luz. Como o custo é mais alto do que a própria conta, nos últimos meses os beneficiados não têm recebido a cobrança. Por fim, é preciso adequar a legislação da Aneel para o Luz para Todos na Amazônia. Como a região possui peculiaridades, a conclusão dos engenheiros durante o projeto piloto é que seria necessário implantar um sistema maior do que o que foi disponibilizado (13 KWh) e com sistemas de corrente contínua ou híbridos. Mas, por enquanto, não há essa brecha na regulamentação, como explicou o engenheiro da Eletroacre Dennys Senna, durante visita a alguns locais beneficiados:
- Há um impasse, e vamos resolver isso com a Aneel para dar continuidade ao projeto. As contas de luz que eles não receberam, provavelmente serão anistiadas e precisamos abrir espaço na legislação para aplicarmos o projeto com menor custo na região e mais facilidade para os moradores. Os benefícios para eles são muitos.
Só a redução dos gastos com pilhas e querosene já fez uma grande diferença para a família de Maria José Souza. Em uma casinha apertada de dois cômodos e teto frágil, feito de folhas da árvore paxiúba, ela vive com o marido e um neto e ainda dá apoio a outros filhos e netos que vivem no mesmo seringal, o Albrácea.
Em meio às poucas panelas e roupas da casa, uma lamparina enferrujada fica guardada para emergências, mas é apontando as lâmpadas no teto que dona Maria José sorri. Na casa, não há televisão. O rádio, o marido teve que vender. O freezer ela sequer deixa fazer parte dos sonhos. Mas claridade à noite já é um ganho e tanto, ela garante:
- Não tem dinheiro para comprar televisão, nem nada. Mas só de poder fazer as coisas em paz de noite, só apertando o botão da luz, é muito bom. As crianças também ficam aqui fazendo o que a escola manda até mais tarde - disse, apontando uma rede, única cama disponível, que ela está pagando à prestação há mais de um ano.

Para assistir à televisão, o jeito que Maria José arranjou foi ir na casa dos vizinhos mais próximos que receberam a energia solar e possuem o equipamento, Valdemir e Maria das Graças Lima. Por lá, a influência da TV já se estendeu à decoração das paredes de madeira, graças à filha mais velha do casal, Ana Paula Feitosa. Ao lado do manual de uso das placas solares, uma foto da atriz Suzana Vieira, uma das ídolas da menina, divide espaço com uma foto da novela infanto-juvenil "Rebeldes". E, nas outras paredes, centenas de atores e modelos famosos completam a decoração. Na casa, hora de novela e jornal viraram sagradas para a família e os muitos vizinhos, que ainda não têm a energia solar, ou ainda não conseguiram comprar uma televisão.
Segundo representantes da Aneel que acompanhou a visita às casas, o pedido de flexibilização da legislação irá a audiência pública. Mas, enquanto o projeto permanece no limbo, esperando por um contorno mais sustentável, milhares de famílias enfrentam a falta de energia nos seringais. Acostumado com lamparinas e velas em casa, o jovem Cosme de Souza Lima, de 18 anos, passa hoje o máximo de tempo possível na escola Dois Irmãos, onde cursa a 5ª série, para aproveitar a energia da instituição. Construída com muitas janelas, de forma a receber o máximo de sol e vento possível, a escola recebeu as placas solares há três anos e passou a usar televisão e rádio nas aulas.

- Eu já estava cansado do quadro-negro. Com a televisão podemos ver filmes, clipes de música, tudo que não posso fazer em casa. Acordo às 4h, vou para o seringal com meu pai e, às 7h, tenho que sair de casa para chegar na escola às 10h. Mas vale a pena. Em casa, a gente não tem dinheiro para comprar um gerador e, para estudar, tenho que aguentar a dor de cabeça que às vezes dá quando leio com o lampião.
As casas onde há energia se tornam pontos de encontro. Manoel Roldão, outro beneficiado pelo projeto da Eletrobras, já até transformou o freezer que ganhou em negócio. Dentro dele, a água gelada, como nas outras casas, tem lugar marcado, mas divide espaço com garrafas de refrigerante, cervejas e peixes para serem fritos. Sorrindo, Roldão explicou:
- Uma cervejinha gelada no meio do seringal faz sucesso! Passei a vender junto com refrigerante e uma comidinha e ganho até R$ 500 por mês.
Enquanto isso, do lado de fora da casa, três homens iniciavam uma partida numa mesa de sinuca, enquanto uma música de fundo entoava um sertanejo, ritmo de sucesso na região. Roldão não apenas pensou nas bebidas, como também no clima de um bar. O único medo agora é que falte energia:
- Para mim foi 100%, só fico preocupado que minhas baterias novas não estão muito boas. E quero pagar a conta que não chega mais. Não gosto de ficar devendo.
O enteado de Manoel, Josiel de Souza, de 27 anos, por enquanto é quem resolve os problemas na região. Ele foi capacitado para fazer a manutenção das placas solares e é uma ponte entre os moradores e responsáveis pelo projeto: Eletrobras, Eletroacre e o governo do estado.
Quando há qualquer problema, as pessoas andam quilômetros para bater na casa dele e perguntar. A ideia é que haja outras pessoas capacitadas em diferentes seringais para atender os usuários. Se o projeto for ampliado, cerca de três mil empregos serão gerados, e pelo menos metade das pessoas serão da floresta.
Mas, para que o projeto se sustente, é preciso que a Eletrobras crie saídas para os problemas, e, tanto o Ministério de Minas e Energia (MME) e a Aneel criem formas viáveis de ampliar a instalação de sistemas fotovoltaicos, por enquanto opção viável de eletrificação na Amazônia.
A equipe viajou a convite da Eletrobras

O Globo, 21/09/2010, Razão Social, p. 12-14

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