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Soja avança no Cerrado do Matopiba e desafia o futuro

O Globo, Economia, p.36-37
23 de Set de 2018

Soja avança no Cerrado do Matopiba e desafia o futuro
Região responde por 11% da produção. Agência cria incentivo para produção sustentável

ANA LUCIA AZEVEDO*

MATEIROS (TOCANTINS) - Do alto da Chapada das Mangabeiras, no Tocantins, por onde se estende sua plantação de soja, o produtor paulista Sergio Bueno vislumbra uma imensidão de veredas e savanas. À sua frente, o maior remanescente do Cerrado, o mais ameaçado dos biomas, onde está a maior fronteira agrícola do mundo. Uma oportunidade econômica para o Brasil e um desafio de sustentabilidade planetário.
A fazenda fica no coração do Matopiba, uma região do Cerrado com área superior à da França que ganhou o nome das iniciais dos estados que abrange: Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Por ser a última grande fronteira agricultável da Terra e abrigar a maior parte dos remanescentes do Cerrado (65%), o Matopiba foi escolhido pelo Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF) - a mais importante agência financiadora ambiental, criada pelo Banco Mundial - e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para um programa que usa incentivos econômicos para estimular a expansão da soja sustentável.
A soja é a principal commodity agrícola de exportação do Brasil. Deve atingir este ano a maior safra da história, com 119,3 milhões de toneladas, 4,6% superior à passada. O Matopiba já responde por cerca de 11% da soja. A área plantada cresceu 253% entre 2000 e 2014, último dado disponível. O desmatamento ali avança num ritmo quatro vezes maior que na área mais vulnerável da Amazônia Legal.
Ao preservar além do que manda o Código Florestal e usar técnicas de cultivo que protegem o solo, a fazenda Agrícola Rio Galhão, de Bueno, está entre as primeiras selecionadas do programa-piloto "Parceria para o Bom Desenvolvimento". O consultor da Sociedade Rural Brasileira (SRB) Gabriel Ferreira explica que a ideia é criar um cadastro positivo de produtores com boas práticas, que será oferecido a bancos públicos e privados e a tradings (comercializadoras de grãos) no Brasil e no exterior, para que os participantes tenham acesso mais fácil a crédito e condições melhores de financiamento, além de prioridade na venda da produção. Serão 50 produtores, numa área de até um milhão de hectares.
Como o crédito para agricultura de baixo carbono ainda é escasso e complexo, Ferreira acredita que o programa será atraente. Hoje, por exemplo, tradings que operam no Oeste da Bahia só compram soja de propriedades com o cadastro ambiental regularizado. O projeto oferece consultoria sobre regularização fundiária, mapeamento e técnicas sustentáveis.
A pressão chinesa
Serão US$ 6,6 milhões aplicados em três anos em dez municípios do oeste da Bahia (onde a soja está consolidada) e do centro do Tocantins (em franca em expansão). A execução fica a cargo da Conservação Internacional-Brasil (CI) em parceria com a SRB e a Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS).
- No Matopiba, sem o agronegócio, a conservação não vai a lugar algum, porque a maior parte das terras é privada. Sem o Cerrado, que regula água e clima, o agro não vai longe. Estão lá desafios e soluções para o futuro de commodities internacionais de impacto ambiental e no Brasil. As commodities de alimentação são prioridade e o foco do GEF está numa agricultura sustentável - diz o diretor de programas do GEF, o brasileiro Gustavo Fonseca.
Entre as boas práticas está o plantio direto na palhada - plantações usadas para proteger o solo de erosão, compactação e perda de umidade depois que a soja é colhida. Outra é o uso de curvas de nível, que respeitam o sentido de escoamento da água ao imitar a arquitetura do Cerrado.
Ainda entram no pacote a integração lavoura-pecuária-floresta, o manejo integrado de pragas com combinação de culturas - que reduz o uso de agrotóxicos -, o planejamento da colheita com base em dados climáticos e a irrigação com sensores de umidade. As boas práticas custam mais num primeiro momento, mas garantem a sustentabilidade do negócio.
-Podemos contribuir para mudar a imagem do agronegócio, associada ao desmatamento. O cadastro funcionará como um cartão de visitas com boas práticas no Matopiba- diz Ferreira, da SRB.
Bueno, que na Rio Galhão conserva mais de 50% dos 29 mil hectares, estima que seu custo de produção seja 10% maior que o convencional, mas está de olho no futuro:
- Esperamos por mudanças no mercado, certificação da soja sustentável. Há uma pressão grande por produção, por causa da China.
O gigante asiático, que já compra cerca de metade da soja brasileira, sinalizou este mês que deve aumentar esse volume em resposta às barreiras comerciais dos EUA. Mas Rodrigo Medeiros, vice-presidente de parcerias estratégicas da CI, acredita que a China poderá exigir mais da soja convencional.
A soja está presente em quase todos os alimentos industrializados, nas rações de animais e em produtos farmacêuticos e cosméticos. É uma onipresença invisível, que o consumidor quase sempre não percebe. E também a maior causa de destruição do Cerrado, onde estão um terço de todas as espécies do Brasil e as nascentes de oito das 12 maiores bacias hidrográficas. Nas Mangabeiras, por exemplo, estão as nascentes de afluentes de três delas: São Francisco, Tocantins e Parnaíba. As terras da Rio Galhão estão cercadas por unidades de conservação do Mosaico do Jalapão, a maior área contínua de Cerrado. Bueno espera que esse cinturão verde as protejam de efeitos de mudanças climáticas:
- Sabemos que é importante preservar as nascentes, o aquífero. Todos dependemos disso.
Um dos focos do projeto é expor a responsabilidade de toda a cadeia produtiva, tradings e bancos. Se der certo no piloto, o projeto poderá ser expandido, observa Medeiros. Para Rubens Brito, subsecretário de meio ambiente do Tocantins, é crucial adaptar os interesses econômicos à sustentabilidade:
- O Cerrado do Tocantins é o olho do furacão do agronegócio e da questão ambiental no Brasil.
* A repórter viajou a convite da CI-Brasil

Desafio no Matopiba é produzir mais na mesma terra
Cultivo da soja brasileira é menos produtivo que o de outros países

POR ANA LUCIA AZEVEDO*

A riqueza do Matopiba está na vastidão de terra plana, ideal para o maquinário da soja. E, no caso do Tocantins, na disponibilidade relativa de água. O solo é pobre e com tendência à desertificação, o que torna a agricultura local 100% dependente de tecnologia. Para José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho, pesquisador do Ipea que estuda a economia do Matopiba, isso ajuda a alcançar sustentabilidade econômica e ambiental. Já existe muita inovação, destaca Deivison Santos, especialista em recursos hídricos da Embrapa em Palmas (Tocantins). Ele cita, por exemplo, estudos sobre como aumentar a produção de soja sem irrigação de forma sustentável. O que falta é difusão.
A soja brasileira é menos produtiva que a de outros produtores mundiais. Este ano, segundo a Conab, a produtividade média da soja no Brasil foi recorde, 3,39 toneladas por hectare. Porém, no Oeste da Bahia é de 2,1 t/ha. Na Argentina, é de cerca de 5 t/ha e nos EUA, de 6,5 t/ha. Para Bernardo Strassburg, diretor do Instituto Internacional para a Sustentabilidade, o desafio é mudar a cultura do agronegócio brasileiro de aumentar produção por expansão de território:

- É preciso haver estímulo e controle porque no Brasil, quase sempre, o agronegócio explora uma área, a esgota e vai embora.

O climatologista Carlos Nobre lembra que o desmatamento é um dos maiores agentes de alteração do clima, com aumento da temperaAura e redução das chuvas. Segundo ele, o Matopiba está 1,5 grau Celsius mais quente do que há 50 anos. E de 1997 a 2010, as chuvas tiveram uma redução de 5%, o que prejudica a soja. A reserva legal dá uma contribuição prática, pois reduz a temperatura local em até meio grau Celsius, o que é muito e favorece a manutenção da umidade no solo. Mas o discurso lógico, baseado em ciência, não funciona, ele diz:

- No Brasil, a agropecuária cresceu sobre o domínio da terra. É um modelo arcaico, lógica do século XVI. O negócio é a terra e não o que se produz nela. A soja brasileira ganha volume em área, mas não em produtividade. Por isso, respeitar reserva legal e áreas de proteção permanentes (nascentes e margens de rios) não tem sido a regra.

A representante do Pnud no projeto, Rose Diegues, observa que um dos grandes desafios é mudar esse modelo:

- O Cerrado é o berço das águas, importante para todo o Brasil. Queremos oferecer uma proposta diferente, de aumentar a produtividade sem exaurir os recursos e ir adiante. A meta é fixar o produtor.

No Matopiba, há espaço de sobra para produzir o dobro sem desmatar mais, afirma Arthur Bragança, pesquisador da Climate Policy Initiative Brazil, que publicou estudo recente sobre as consequências da expansão agrícola na região:

- Está mais do que na hora de o Brasil olhar para o Matopiba. Ali se gera riqueza. Agora é preciso ter desenvolvimento.

Um dos orgulhos do catarinense Eduardo Archer, que planta soja e cria gado, é a lagoa repleta de aves selvagens da fazenda que leva o nome da família em Silvanópolis (TO). A Fazenda Archer, de 4.600 hectares, está entre as primeiras selecionadas pelo projeto, pois quase a metade da área (45%) está conservada, bem mais do que os 20% de reserva legal e acréscimos de áreas de proteção permanente (APPs).

Os Archer começaram a comprar as terras há 30 anos e estão entre os primeiros produtores de soja a chegar, em sua maioria originários do Sul. Archer olha o mapa produzido pela equipe do projeto e a primeira coisa que procura são as nascentes. Tem faltado água para o gado. A produção de soja caiu. A fazenda agora recupera áreas de pastagem. Ele diz saber que o Cerrado é vital para o negócio, ajuda a superar irregularidades do clima.

- Conto com o apoio do projeto para descobrir qual o melhor caminho.

Para Santos, o Matopiba é mais que uma terra de oportunidade. É de aprendizado:

- A fronteira é o lugar de aprender com erros do passado. Temos tecnologia. É questão de vontade política.

*A repórter viajou a convite da CI-Brasil

O Globo, 23/09/2018, Economia, p.36-37

https://oglobo.globo.com/economia/soja-avanca-no-cerrado-do-matopiba-de…

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