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Sim, melhoramos. mas falta muito

OESP, Aliás Debate, p.H1-H12
25 de Ago de 2006

Sim, melhoramos. mas falta muito
O consenso de que os níveis de pobreza vêm caindo e a desigualdade encolhe é o começo de uma longa estrada

Neste terceiro suplemento da série 'Aliás Debate', quatro especialistas se debruçaram sobre um dos mais complexos temas nacionais: pobreza versus desigualdade. Complexo porque conjuga diferentes visões e campos de análise. Não se poderá superar a precariedade em que ainda vivem milhões de famílias brasileiras sem harmonizar políticas públicas no campo da educação, saúde, habitação, meio-ambiente, além de buscar novos arranjos e relações no mercado de trabalho.

O que se publica neste caderno é, portanto, uma síntese das discussões feitas na última segunda-feira, no auditório de O Estado de S. Paulo. Entre os convidados a debater (confira as notas biográficas ao lado), há um consenso de que os níveis de pobreza vêm caindo no País, nos últimos anos. Também não se podem ignorar os vários estudos que apontam a diminuição da distância entre os mais ricos e os mais pobres. Fala-se, mesmo, em 'fantástica' queda na desigualdade entre os anos de 2001 e 2004. Nesse período, estima-se que cerca de 5 milhões de brasileiros escaparam da miséria. Foi consenso, por fim, o efeito benéfico que programas como Bolsa-Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC) estão exercendo sobre a população mais carente.

Tudo resolvido? Certamente, não. Nas visões dos debatedores, notam-se inúmeras divergências sobre como consolidar esse longo e intrincado caminho de superação da dívida social brasileira. Ainda somos o País em que 1% dos mais ricos têm renda equivalente à de 50% dos mais pobres. Esses dados, repetidos à exaustão em debates como este, também ensinam como os mecanismos de concentração de riqueza agem. O que fazer? Insistir em programas como o Bolsa-Família? Programas desse tipo são assistencialistas? Têm efeito temporário? Ou são uma etapa das políticas públicas no Brasil? Se hoje é fácil ser um bolsista num programa de transferência de renda, será também fácil sair dessa condição? A desqualificação e o barateamento da mão-de-obra brasileira é uma das explicações para a nossa pobreza? Qual é a dimensão do trabalho infantil? Em quanto a educação contribuirá para reverter a desigualdade?

São questões como estas que aparecem na páginas seguintes, debatidas com coragem pelos professores Claudio Salm, Cláudio Dedecca e Ricardo Paes de Barros. Presente ao debate, o jornalista Norman Gall, do Instituto Fernand Braudel, que deu um importante relato sobre pesquisa que essa entidade fez na periferia paulistana, a partir do nível de consumo das famílias. Ficou provado, mais uma vez, como o brasileiro é criativo na arte de driblar as vicissitudes da vida.

Os debatedores

Claudio Salm
É diretor de pesquisas do Centro Celso Furtado. Graduou-se na Faculdade de Economia da UFRJ. e fez pós-graduação na Universidade do Chile. É doutor na área pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Sua tese, Escola e Trabalho, foi publicada pela editora Brasiliense em 1982. É professor aposentado da UFRJ e, atualmente, exerce a função de Coordenador no Laboratório de Economia Política da Saúde - LEPS, da mesma universidade.

Cláudio Dedecca
É economista formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de pesquisas na área de ocupação e renda para a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Fez mestrado e doutorado na Unicamp e pós-doutorado na Universidade de Paris. Atualmente leciona na Unicamp. Ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET), Claudio Dedecca é hoje pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit).

Ricardo Paes de Barros
É coordenador de avaliação de políticas públicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor assistente da PUC-RJ. Engenheiro eletrônico, graduado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica, fez mestrado em Matemática. Tem doutorado em Economia pela Universidade de Chicago e pós-doutorado pela Universidade de Yale. Foi professor assistente no Economic Growth Center e Membro do Conselho de Estudos Latino-Americanos em Yale.

Norman Gall
É jornalista, diretor executivo e do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. Foi consultor da Exxon Corporation, do Banco Mundial e das Nações Unidas. Nasceu em Nova York e desde 1977 reside no Brasil. Conduziu pesquisas para American Universities Field Staff no Peru, Venezuela, República Dominicana, Colômbia, Bolívia, Chile e Brasil. Desenvolveu estudos sobre o crescimento do Brasil para o Carnegie Endowment for International Peace .

Temos pobres porque somos injustos ou...
Somos injustos porque temos muitos pobres? A questão é decisiva para entender a desigualdade, diz economista

Quando se fala em políticas para diminuir a pobreza e melhorar a distribuição de renda, temos, por um lado, as medidas defendidas pelo pensamento ortodoxo conservador, que acredita na eficácia da auto-regulação do mercado e, portanto, não admite ou desqualifica propostas que interferem no seu livre funcionamento. Por outro, porém, há as políticas sugeridas pelo pensamento desenvolvimentista, por aqueles que não crêem nesse poder auto-regulador, mas no fato de que o mercado tende a perpetuar ou até mesmo a agravar as desigualdades. Desde Ronald Reagan, Margaret Thatcher e, mais especificamente, desde o Consenso de Washington, fomos bombardeados pelo pensamento ortodoxo, pelo neoliberal, que desde então nos foi imposto como único e que, de fato, se tornou dominante nas últimas décadas.

Para o pensamento ortodoxo, há três pontos importantes: em primeiro lugar, os problemas se reduzem ao lado da oferta. Os ortodoxos propõem essencialmente educação, com flexibilização dos contratos de trabalho, leia-se baixar os custos da demissão. Em segundo lugar, os recursos públicos na área social devem ser dirigidos de forma prioritária e focalizada aos mais pobres, em detrimento das políticas de caráter universal, especialmente a Previdência Social. Com base nessas premissas, surge o terceiro ponto: uma miríade de programas de geração de emprego e renda, no nosso caso principalmente com o dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), todos com resultados pífios, exceção feita ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

A ortodoxia triunfante tentou e conseguiu nos impingir vários mitos, mentiras ou meias-verdades, que vêm sendo desbancadas pelos fatos desde a reforma cambial de 99. Ela afirma, por exemplo, que crescimento não garante geração de emprego nem resolve o problema da distribuição da renda, tanto que crescemos durante 30 anos e a distribuição de renda ficou igual. Enfatiza que qualquer ocupação é trabalho e que aumentar o salário mínimo é inócuo para combater a pobreza e melhorar a distribuição de renda, além de atentar contra o equilíbrio fiscal.

Entretanto, diante do fracasso ou ineficácia desse receituário (pois a concentração aumentou nesse intervalo e a pobreza persiste em níveis elevados), ressurge o interesse nas propostas dos desenvolvimentistas, entre os quais me incluo. Os desenvolvimentistas dão ênfase à superação do subdesenvolvimento, ou seja, à diminuição das heterogeneidades estruturais e à eliminação das atividades de baixa produtividade a que são obrigados a se dedicar os mais pobres, que, por esse motivo, permanecem pobres. Para eles, pobreza e concentração de renda se devem basicamente a essas heterogeneidades. Destacam mais a demanda, ou seja, o padrão de desenvolvimento, o ritmo de crescimento, o nível e a composição dos investimentos, além de medidas de proteção social, como o salário mínimo e o acesso à Previdência Social.

Em síntese - e nessa síntese incluo os velhos liberais da virada do século XIX para o XX -, tudo o que puder ser feito para diminuir a mão-de-obra barata é positivo para diminuir a pobreza e a desigualdade. É no dinamismo e na estrutura da economia que se deve buscar as verdadeiras causas de ambas, causas que sempre se reproduzem nos países subdesenvolvidos, como o nosso, e devem ser superadas.

Fica, por fim, uma pergunta: temos muitos pobres porque somos um país injusto ou somos um país injusto porque temos muitos pobres? Não é um mero jogo de palavras. Os primeiros, os que acham que temos muitos pobres porque somos um país injusto, dão prioridade à focalização, ao assistencialismo. Já os que acham o contrário, que somos um país injusto porque temos muitos pobres, valorizam o crescimento, o desenvolvimento econômico. Esse, a meu ver, é o divisor de águas quando se debatem pobreza e desigualdade.

A visão de Claudio Salm

Não há só um remédio para vencer a pobreza
Ela vem diminuindo. Mas é preciso bem mais do que Bolsa-Família: renda, trabalho, acesso a bens e serviços públicos...

O peso dos salários na renda brasileira é da ordem de 30%, enquanto em países de médio desenvolvimento ou desenvolvidos essa situação é de 50% ou mais. Temos aí uma clara noção de como se distribui a riqueza do País: pouca para muitos e muita para poucos. Os lucros dos bancos ilustram a situação que vivemos. No primeiro trimestre deste ano, três bancos, inclusive um público, tiveram em seu total lucro que corresponde a mais do que os recursos destinados hoje ao Bolsa-Família, um programa que atende milhões de pessoas. Em nenhum país com o nosso grau de desenvolvimento vamos encontrar um sinal de desigualdade que tenha essa dimensão.

Um dos instrumentos que permitem a superação da pobreza provém da renda auferida no mercado de trabalho ou da renda extramercado de trabalho, como é o caso do Bolsa-Família ou do Benefício de Prestação Continuada (BPC, programa que dá um salário mínimo a idosos em lares pobres), ou até de transferência de patrimônio. Outro desses instrumentos refere-se aos bens públicos - ao acesso à educação, saúde, habitação, cultura e informação. Um terceiro elemento, muito realçado pelos conservadores, é o que se chama genericamente de capital social, isto é, a capacidade das famílias empreenderem alguma atividade que lhes permita superar a pobreza.

Quando analisamos a redução recente da pobreza no Brasil (não é nada tão significativo, mas é inegável que ocorreu), ela se dá em função da transferência de renda extramercado, do Bolsa-Família e do BPC, de um salário mínimo, e do acesso a bens públicos como SUS, Pronaf e alguns outros que têm chegado à população de baixa renda. Há, no entanto, uma evidente carência de atuação de outros instrumentos que poderiam contribuir para a superação da pobreza. Um deles é o mercado de trabalho. O baixo crescimento com que o País convive nas últimas décadas tem comprometido a geração de emprego e a evolução da renda. No período recente, temos visto uma recuperação no mercado de trabalho - marcada, porém, por empregos de baixíssimo rendimento e qualificação.

É verdade que temos um conjunto de fundos constitucionais para política social. Mas são fundos, hoje, que atuam em baixo grau de articulação entre eles, de tal modo que a política social chega de forma pontual e descontínua ao conjunto da população. Isso poderia ser melhorado enormemente, o que permitiria um acesso aos bens públicos de modo muito mais significativo.

O fato é que essa redução da pobreza pode ser facilmente revertida, caso os recursos para políticas de transferência e políticas sociais não cresçam segundo a demanda. Esse é um aspecto importante porque, quando temos a redução calcada na transferência de renda - e os outros instrumentos não têm contribuído -, todo aumento de população e de pobreza vai depender da transferência de recursos da política pública. Se o Estado não tiver recursos, dificilmente o combate à pobreza poderá ser mantido.

A gestão do Bolsa-Família por parte do governo federal causa crescente temor. As pessoas entram para o programa mas não saem. E não saem porque o mercado não foi dinamizado. Não há alternativa de trabalho que permita auferir a renda que compense o fim daquela transferência pública. A pressão pelo aumento de recursos tem sido enorme em razão do aumento da demanda. A tal ponto que já ocorreu uma desvalorização do próprio benefício em termos reais. É sinal de que o programa tem problemas e que o próprio governo os reconhece, na medida em que contém o aumento de seu valor para poder privilegiar o tamanho das coberturas - em especial, obviamente, num ano eleitoral.

A superação da debilidade da política de combate à pobreza depende da dinamização de demais instrumentos, especialmente daquele voltado para o mercado de trabalho. Não existe na história do capitalismo um país que tenha feito mudança na distribuição de renda sem crescimento sustentado.

A visão de Cláudio Dedecca

O longo desmonte da desigualdade brasileira
De 2001 e 2004, ela caiu de maneira "fantástica". E o Bolsa-Família ajudou a tirar 5 milhões da miséria

V ou centrar minha atenção na queda fantástica da desigualdade no Brasil. De 2001 para 2004 ela caiu e caiu muito. Em 2001, estava na média dos últimos 30 anos. Três anos depois atingiu o menor nível do período. A maneira mais clara de ver a importância dessa diminuição é olhar o impacto sobre a pobreza. Apesar de a renda per capita do Brasil ter permanecido estagnada, a renda dos mais pobres cresceu: para se ter uma idéia, entre os 10% brasileiros mais pobres, ela aumentou 7% ao ano. Isso é parecido com o crescimento da renda per capita da China.

A redução na desigualdade também tirou da extrema pobreza 5 milhões de pessoas. Tanto faz se o aumento da renda ocorre porque o País está crescendo ou porque a desigualdade está diminuindo. Mas quanto de crescimento econômico precisaríamos oferecer para que o pobre abrisse mão da redução na desigualdade que ocorreu? A resposta é 20% de aumento na renda per capita em três anos, ou seja, 7 e poucos por cento de crescimento econômico por ano. Gostaria de ressaltar que, quando falo de desigualdade, refiro-me à desigualdade de renda entre as famílias, incluindo aí todas as fontes de renda que as famílias recebem.

Mas o que provocou essa fantástica queda na desigualdade? A grande notícia é que a principal razão não é apenas o Bolsa- Família. As causas são incrivelmente variadas e cobrem uma ampla gama de fatores. Três deles são bastante importantes. O primeiro é o incrível desempenho do Bolsa-Família, um programa que gasta 0,2%, 0,3% do PIB e contribuiu com 10% a 15% da queda na desigualdade. Como se conseguiu isso? Fazendo o que devia ser feito, aumentando a cobertura e a focalização. Assim, o programa duplicou, triplicou de tamanho e continuou chegando ao pobre.

Outro fator, responsável por 15% da redução da taxa, está nos progressos educacionais. Aumentou o nível de escolaridade da força de trabalho. Uma tendência dos últimos dez anos foi acelerada recentemente: o diferencial de salário entre trabalhadores qualificados e não qualificados também diminuiu. Isso quer dizer que o trabalhador qualificado não é mais importante, que estamos aproveitando mal a nossa força de trabalho qualificada? Não. Esse trabalhador será utilizado com mais intensidade em mais postos de trabalho, será mais útil e contribuirá mais para a sociedade. A educação tem que se tornar barata e acessível. Se isso não acontecer, a desigualdade não cai porque a diferença de salário entre trabalhadores qualificados e não qualificados é estupidamente elevada.

Em terceiro lugar, ocorreu uma fantástica integração do mercado de trabalho, com redução dos diferenciais salariais entre a capital e o interior dos Estados, que explica 15% da redução na desigualdade. Grande parte talvez tenha a ver com a interiorização da atividade econômica, com a abertura comercial e com o progresso da agricultura. Parte pode estar relacionada ao fato de que os gastos públicos foram para os pequenos municípios. Isso gerou emprego e melhores salários no interior.

O problema está resolvido? A resposta é "absolutamente não". Um por cento dos brasileiros continua se apropriando praticamente da mesma renda que os 50% mais pobres e os 10% mais ricos têm 40% da renda. O que fizemos é apenas um primeiro passo de uma longa jornada. Ainda precisamos dobrar a renda dos mais pobres em relação à média brasileira para que o Brasil fique parecido com os países com o mesmo nível de desenvolvimento. E, se mantivermos a velocidade dos últimos anos, vamos demorar mais ou menos 20 anos. Se fomos capazes de ter todo esse impacto só reduzindo a desigualdade, o caminho pela frente é gigantesco. Se houver crescimento econômico será fantástico, mas a falta dele jamais poderá ser argumento para interrompermos esse processo. Com ou sem crescimento, ele vai ter um impacto enorme sobre a pobreza.

O que precisamos fazer para garantir a continuidade dessa queda? Os passos são simples e as regras, claras. Precisamos dar aos pobres melhores oportunidades educacionais e garantir que consigam utilizar plenamente essas capacidades no mercado de trabalho. Ao lado de garantir as oportunidades, devemos dar condições e, portanto, renda para que essas pessoas tenham condições de aproveitar essas oportunidades.

A política tributária deve taxar mais o rico e menos o pobre. E é preciso uma política social progressiva, que seja não só dirigida para o pobre, mas desenhada para ele. Depois, precisamos complementar com uma política de redistribuição de renda e redes de proteção social com porta de saída. Para isso, os beneficiados devem ter todo incentivo possível para que possam se inserir no mercado de trabalho. Ou seja, devemos ter uma rede de proteção social que transfere renda, mas ao mesmo tempo garante crédito, qualificação, intermediação de mão-de-obra, arranjos produtivos locais e diversos programas que facilitem a reinserção e a melhor inserção dessas pessoas no mercado de trabalho.

A visão de Ricardo Paes de Barros

Os dois vetores que fazem a diferença
O diretor do Instituto Fernand Braudel aponta dois caminhos para mudar o Brasil: educação e infra-estrutura

A questão essencial neste debate é: como operar uma sociedade complexa num país de dimensão continental? O Brasil precisa de duas coisas: educação e infra-estrutura. Hoje há um grande consenso em torno dos desafios educacionais. Se diferenças existem nesse campo, estão nos detalhes. Falta infra-estrutura. O Instituto Fernand Braudel, do qual faço parte, fez um estudo sobre os padrões de vida na periferia de São Paulo (veja quadro ao lado). Os autores desse trabalho estão nesta sala hoje, Patrícia Guedes e Nilson Oliveira. Patrícia e Nilson provaram que houve uma dramática melhoria de vida nessa região, evidente nos padrões de consumo das famílias. O estudo também demonstrou a incrível capacidade das pessoas se virarem para resolver problemas do dia-a-dia, estejam elas no mercado de trabalho formal ou no informal. O que lhes falta é capacitação. Isso não é um dito neoliberal, não, é o que vemos nos olhos dessa gente. As instituições públicas não são capazes de ajudar a população a resolver seus problemas cotidianos. Outro aspecto: trabalho na América Latina há 45 anos e noto que países com menores recursos naturais são os que conseguem fazer melhores ajustes econômicos. Os países mais dotados de recursos naturais, como Argentina, Venezuela e Brasil, são mais lentos. Esse é um dado relevante para as estratégias de combate à pobreza no Brasil. Este País precisa investir em sua gente. Segundo dados do Banco Mundial, no Nordeste gasta-se por aluno US$ 150, US$ 200 ao ano. No Rio e em São Paulo, entre US$ 500 e US$ 600. Em países desenvolvidos, essa média chega a US$ 10 mil. A diferença diz tudo.

Um retrato da periferia de São Paulo

Pesquisa do Instituto Fernand Braudel mostra que moradores da periferia da Grande São Paulo estão encontrando alternativas para superar a situação de pobreza e desesperança. O estudo foi realizado com 1.092 famílias de baixa renda nos bairros de Cidade Tiradentes, Capão Redondo, Montanhão e Serraria. Algumas conclusões do trabalho:

Moradia - Apesar de 26% das residências desses bairros se encontrarem em favelas, cerca de 96% delas já são de alvenaria.

Aprovação - Os moradores da periferia estão mais exigentes. Embora 65% dos entrevistados achem que a infra-estrutura de seu bairro melhorou e 59% pensem o mesmo sobre os transportes, cerca de 47% dos ouvidos acham que a educação piorou muito.

Emprego - O tempo médio que os moradores levaram para encontrar um novo emprego é de 22 meses. Somente 36,4% dos chefes de família são empregados com carteira assinada, enquanto 30,6% trabalham como autônomos informais.

Classes - Somente 0,5% dos entrevistados pertencem à classe E. Na classe D, encontram-se 31,2% dos moradores. A grande maioria está na classe C: 53,8%. E há uma elite, de 14,1%, pertencente à classe B.

Renda - A renda mensal média das famílias pesquisadas ficou em R$ 1.148. Em 75% dos casos, a renda não ultrapassava R$ 1.450, e um terço delas vive com renda de até R$ 600.

Assistência - Somente 6% das famílias pesquisadas recebem algum benefício de programas governamentais de renda como o Bolsa-Família (4,4%) e o Renda Cidadã (1,6%).

Consumo - Todas as casas têm geladeira. Embora 64,5% das famílias não tenham videocassete, 29,7% possuem DVD. E 47% das casas têm telefone celular pré-pago. Automóveis estão em 29% dos lares.

Otimismo - Os otimistas, que acham que a situação econômica da família vai melhorar muito ou pouco, são 71% dos entrevistados. Os que acham que a situação vai piorar muito ou pouco somam 7%.

Política para o pobre tem que ser política pobre?
Discussão mostra visões econômicas distintas entre os debatedores, passando pelas equações da geração de empregos

O que não faltou no debate sobre pobreza e desigualdade foi polêmica. De um lado, o economista Ricardo Paes de Barros, do Ipea, conhecido por sua defesa das política sociais focalizadas nos mais pobres, do Bolsa-Família, de mudanças na legislação trabalhista e da idéia de que a educação é o principal fator de desigualdade no Brasil. Do outro, os economista Claudio Salm, da UFRJ, favorável a programas sociais universalistas (não-focalizados), contrário à flexibilização trabalhista, e que atribui o crescimento do desemprego e da informalidade e a manutenção da desigualdade ao longo das últimas décadas ao longo período de estagnação econômica - causado, na sua visão, pelo receituário neoliberal e favorável ao Consenso de Washington que teria sido aplicado no Brasil. Claudio Dedecca, da Universidade de Campinas, também polemizou com Paes de Barros em diversos momentos, embora a posição dos dois tenha convergido sobre a necessidade de que o Bolsa-Família seja apoiado por outras iniciativas de política de social e pelo reativamento do mercado de trabalho, para que os beneficiários tenham uma porta de saída. A seguir, os melhores momentos do debate:

Afinal, houve ou não uma queda na desigualdade brasileira nos últimos anos?
SALM - De 2001 até hoje, a desigualdade diminuiu, é verdade. O Paes de Barros falou numa queda fantástica da desigualdade de renda nos últimos anos, mas não citou números. Pois essa queda trouxe o coeficiente de Gini (que mede a desigualdade, variando de 0 a 1, e piora à medida que aumenta) de 0,59 para 0,57. Essa é a queda fantástica”. Continuamos entre os países de maior concentração de renda no mundo. Evidente que, partindo-se de um nível tão alto, qualquer coisa é capaz de produzir essa queda fantástica” de três ou quatro pontinhos. Ninguém pode falar em tendência, não há nada de fantástico. Em segundo lugar, não podemos esquecer que isso ocorreu de 2001 a 2004, justamente os anos nos quais tivemos dois importantes suspiros de crescimento. Infelizmente foram vôos de galinha, não crescimento sustentado. Mas foi exatamente esse crescimento que gerou empregos na base, o que a meu ver explica em boa medida essa modesta, e não fantástica, queda na desigualdade de renda. Há também a retomada do salário mínimo, desde 99, uma explicação importantíssima na melhoria de distribuição de renda.

DEDECCA - Não há nenhuma divergência sobre isso. Para o Paes de Barros, a redução (de desigualdade) merece um qualitativo bastante forte, fantástica”. E houve uma melhora na renda do pobre, que ele considera espetacular”. Eu diria que foi uma redução limitada. Primeiro, a renda foi para aqueles que não a tinham, em grande medida e, em segundo lugar, é uma renda da ordem de R$ 80,00, R$ 90,00, R$ 100, 00 por mês. É uma renda que não permite comprar este computador dele, que está aqui do lado (risos). Houve a queda, mas ela não modificou as condições sociais do povo brasileiro, não mudou o perfil e as estruturas da distribuição de renda. E isso ele mesmo reconheceu quando aponta a apropriação dos 50% da renda por apenas 1% dos mais ricos. Não vamos ficar discutindo se a melhora foi ou não fantástica, isso é irrelevante. Há uma melhora que pode ser revertida, e para evitar isto é preciso ativar mais instrumentos. Sou totalmente favorável ao Bolsa-Família e ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Mas acho que esses instrumentos são limitados para mudar estruturalmente a situação de pobreza do País. É preciso ter outros instrumentos: o mercado de trabalho, a mudança do perfil salarial e a maior difusão de outros bens públicos.

PAES DE BARROS - Eu queria saber quem tem alguma sensibilidade para a escala de Gini. O que significa 4% de redução?

SALM - Isto é nada.

PAES DE BARROS - Significa muito. Porque, se eu traduzir essa redução da desigualdade no diferencial de crescimento entre a renda do pobre e a renda do rico, chego à conclusão de que a renda do pobre cresceu 20 pontos porcentuais a mais do que a renda do rico nesse período. Todo mundo consegue entender o que significa receber um aumento de 20% e alguém do lado não receber nada. A renda dos 20% mais pobres estava crescendo 5% ao ano, enquanto a renda dos 20% mais ricos estava caindo 2% ao ano. Portanto, a diferença de taxa de crescimento de um para o outro é de 7% per capita. Se isto acontece por três anos seguidos, não posso considerar uma coisa pequena. É algo que nunca foi alcançado na História do Brasil por três anos seguidos. De todos os países de que se tem informação, não se encontram 10 com esse desempenho. Você encontra 100 que tiveram taxa maior de crescimento, mas não acha dez que tiveram essa taxa de redução na desigualdade.

DEDECCA - O que me assusta nesta discussão é aplaudir uma queda da desigualdade que decorre, em parte, da redução dos salários de cima, tanto que a renda per capita não aumentou. Eu diria que isso é um espanto, uma homogeneidade pela pobreza, pelo empobrecimento do País. A questão que nos interessa é reduzirmos a desigualdade do povo brasileiro, com os debaixo tendo aumentos muito mais substanciais que os de cima, num movimento de elevação da renda média. Eu, sinceramente, não gostaria de ter uma homogeneidade à Cuba.

PAES DE BARROS - É possível uma situação na qual o pobre perde um pouco, o rico perde muito e a desigualdade cai. Durante o período Collor, isso aconteceu. É possível uma redução na desigualdade onde todo mundo perde, a pobreza aumenta e a desigualdade cai. Mas isso definitivamente não foi o que aconteceu. Os pobres ganharam e os ricos perderam. A pergunta relevante é sobre o que preferiríamos, já que a renda per capita caiu 1%: que a renda per capita de todo mundo tivesse caído 1% ou que tivesse ocorrido o que ocorreu, isto é, a renda dos pobres crescer 20% e a dos ricos cair 5%? Se a renda não sobe, prefiro que os pobres continuem crescendo e os ricos percam ou quero distribuir essas perdas? O que aconteceu nesse período foi ótimo para a distribuição de renda.

Qual a importância da focalização das políticas sociais?
SALM - Tem uma frase do economista Albert Hirschman que eu adoro e diz o seguinte: políticas voltadas exclusivamente para os pobres acabam sendo políticas pobres”. Ele era genial. E nós, sem saber, praticamos isso na educação. Não foi nosso intento, mas a escola pública deixou de ser universal, a classe média saiu fora, foi para a escola particular. E no que é que deu? Deu nessa porcaria, com raríssimas exceções. O pobre recebeu essa porcaria de educação pública. Por quê? Porque não tem coragem de reclamar. Converso muito com pobres que têm uma escola pública horrorosa, quase não têm aula. Por que não reclamam? Não, depois a professora marca meu filho e estou ferrado”. Eles não têm voz. É a classe média que mantém a qualidade.

PAES DE BARROS - Que política para pobre é uma política pobre me soa como um fatalismo. Não entendo por que não podemos fazer uma política para pobre que seja também de excepcional qualidade. Se você for ao Chile, vai ver que lá existe uma política de excelente qualidade.

DEDECCA - Não sou contra os instrumentos focalizados, só acho que eles não podem ser os únicos. Temos de ter um conjunto de intervenções do ponto de vista da política pública, da recuperação do mercado de trabalho e do crescimento.

SALM - Eu destacaria as políticas sociais de caráter universal e não as de focalização nos pobres, os gastos em educação de boa qualidade, de preferência em tempo integral, em saúde e saneamento, bem como o investimento em infra-estrutura, importantíssimo, com transporte subsidiado, como se faz nos países decentes, desenvolvidos.

PAES DE BARROS - Temos que esclarecer o que entendemos por focalização. Devemos separar a questão do acesso e a da gratuidade. Por exemplo, dar acesso prioritário ao pobre à universidade: o que estou dizendo é que a gratuidade vai ser prioridade do pobre, ou seja, posso ter um sistema com regras universais de acesso. Vamos pegar, por exemplo, a universidade pública, o ProUni, um excelente programa: entra na PUC, do Rio de Janeiro, quem passar no vestibular. Mas quem recebe o benefício do ProUni? Dentre aqueles que entraram na PUC - ricos e pobres e é muito importante que convivam juntos -, não paga quem não pode pagar. Faz pouco sentido o governo subsidiar todo mundo na PUC. Faz muito mais sentido subsidiar os que não podem pagar. Todo mundo tem direito de andar de ônibus, de metrô. Mas, talvez valha a pena subsidiar o metrô do mais pobre, cobrando mais caro do mais rico. Afinal de contas, não é isso que a gente faz nos impostos? Por que pensamos diferente na hora da despesa? Focalizar é fazer do lado da despesa, exatamente, a mesma coisa que fazemos com os impostos.

Mas por que focalizar?
PAES DE BARROS - A vantagem é que, se acreditamos em orçamento limitado, se acreditamos que temos, no Brasil, R$ 200 bilhões para gastar em política social, posso garantir que eles serão gastos com os pobres. Não é uma política segregacionista que vai separar a escola do pobre e a do rico. Nós queremos que nossa escola seja muito boa, mas quem ganhará a bolsa de estudo será o pobre. É claro que posso dar o mesmo atendimento a todos. Mas para isso, vou precisar de R$ 600 bilhões. Com R$ 200 bilhões consigo atender o pobre e, só o pobre, com certa qualidade. E mesmo que tivesse R$ 600 bilhões, em vez de gastar menos de R$ 1 mil por ano com cada aluno, como hoje, poderia gastar R$ 3 mil. Para fazer isso, preciso focalizar no pobre.

Qual o melhor instrumento: o Bolsa-Família ou o salário mínimo?
SALM - A retomada do salário mínimo, que já vem desde 1999 , é uma explicação importantíssima na melhoria de distribuição de renda. Eu já sei o que o Paes de Barros tem contra: o salário mínimo não afeta os 10% mais pobres. Eles nem trabalham, não têm acesso ao emprego. Talvez não seja tão importante para os 10% mais pobres, mas para o segundo, terceiro e quarto decis (aqueles que, entre os 40% mais pobres, estão acima dos 10% mais pobres) tem um impacto na melhoria da distribuição de renda.

PAES DE BARROS - É claro que um aumento no salário mínimo, se não tiver impactos negativos sobre o emprego, vai reduzir a desigualdade e a pobreza. A minha preocupação é saber quanto isso custa. Se eu aumentar o salário mínimo em 10%, vai custar R$ 5,8 bilhões, em que R$ 3,3 bilhões é de Previdência e R$ 2,5 bilhões é de aumento salarial. Qual o impacto sobre o Gini? O Salm estava dizendo que reduzir o Índice de Gini em 4% é ridículo, mas um aumento de 10% do salário mínimo tem um impacto no Gini de 0,7%. Se olharmos para a redução da extrema pobreza, o Bolsa-Família é sete vezes mais eficiente do que o salário-mínimo; sobre a redução da pobreza, é quatro vezes mais eficiente. Sobre a desigualdade, é duas vezes mais eficiente. Se estivéssemos na Guatemala, eu recomendaria que se usasse o aumento do salário mínimo, porque é um país onde não se consegue cobrar imposto e não se tem uma rede de proteção social. Mas num país como o Brasil, que tem o cadastro único (banco de dados do qual são escolhidos os beneficiários do Bolsa Família), sabe quem são os pobres, tem os recursos, cobra os impostos, por que usar um instrumento (o salário mínimo) que mal consigo saber a quem beneficia, que impactos realmente tem sobre o mercado de trabalho?

DEDECCA - A política de salário mínimo não é uma política pública de combate à pobreza. É uma política que abrange a economia como um todo. Portanto, tem um efeito extenso. Retira-se do cálculo do impacto da política de salário mínimo justamente o efeito que ele gera sobre os benefícios previdenciários. Eu e o Paes de Barros sabemos disso, que ela teve um efeito fantástico sobre a redução da pobreza. O salário mínimo e o Bolsa-Família, os dois têm contribuições relevantes.

O que os srs. defendem para o futuro do Bolsa-Família?
DEDECCA - Sou totalmente favorável ao Bolsa-Família, acho que tem de ser mantido. Da mesma forma, sou favorável ao BPC. A questão, porém, é que esses instrumentos são limitados para mudar estruturalmente as condições sociais e a situação de pobreza do País. O Bolsa-Família requer programas complementares. A saída depende da superação estrutural da condição de pobreza. Outro elemento é o mercado de trabalho. Não tenho nenhuma possibilidade de melhorar a pobreza se não melhorar o mercado de trabalho. É necessário uma cesta de políticas: melhora do mercado de trabalho, dos bens públicos e a manutenção do Bolsa-Família. A única questão do Bolsa-Família é que ele permite o que poderíamos chamar de pobreza assistida. Se não se criar os outros elementos que permitam que essa família consiga ter geração de renda autônoma, vamos ficar assistindo, hoje e para sempre. Todos os programas de transferência de renda, desde o primeiro, inventado pelo Roosevelt (Franklin Roosevelt, ex-presidente americano), mostram que a saída é complicada. Eu acompanhei a experiência de Campinas, a cidade que primeiro implantou esse tipo de política no Brasil. Rapidamente se percebeu que as pessoas beneficiadas não saíam do programa com facilidade, e, mais do que isso, o acesso à escola era difícil. Isso em Campinas, cuja infra-estrutura social não é pequena.

PAES DE BARROS - O Bolsa-Família não foi desenhado de maneira assistencialista. Quando alguém ganha uma bolsa de estudo, isto não é considerado assistencialismo, mas uma política que dá condições às pessoas de aproveitarem as oportunidades. O Bolsa-Família surge na medida em que percebemos que avançamos muito em criar oportunidades. Havíamos construído escolas, postos de saúde e percebemos que os pobres não freqüentavam as nossas escolas e os nossos postos de saúde. O Bolsa-Família é uma bolsa para se aproveitar essas oportunidades. Para onde vamos nesse caminho? Eu concordo com o Dedecca, precisamos ampliar as oportunidades. Mas isto é feito pelos ministérios da Saúde, Educação, Desenvolvimento Agrário, Trabalho. O que o Bolsa-Família faz é garantir que as pessoas tenham condições de aproveitar as oportunidades.

Precisa de mudanças?
PAES DE BARROS - Precisa. Quando uma família não cumpre uma condição, você não pode simplesmente tomar a bolsa dela. Se um bolsista não passa nos exames, é chamado para conversar. Você precisa acompanhar a família para que, lá na frente, se ela não cumprir as exigências, você entenda que há duas razões para tal. Ou a família não buscou aproveitar as oportunidades na intensidade devida e, portanto, merece perder a bolsa. Mas também pode ocorrer algo extraordinário, como a criança faltar à escola simplesmente porque a mãe está doente. Como saber se o motivo é justificável? Hoje, o programa entra em contato com a família do bolsista no dia em que vai selecioná-lo, entrega um cartão magnético, que dá direito a uma renda, o que é bonito e legal. Mas o próprio cartão magnético é a causa de perdermos contato com a família. Tudo fica automático e, depois, precisarei checar se a família, estatisticamente, cumpriu ou não com as condicionalidades. A necessidade imediata é um elo de contato entre a família e o programa. Ele foi excepcional em identificar as famílias pobres e em expandir a cobertura rapidamente. Agora, precisa ser excepcional em criar um elo de comunicação.

E como seria este elo?
PAES DE BARROS - Temos 200 mil agentes comunitários de saúde no Brasil. Precisamos, basicamente, de um agente comunitário ampliado, que cuide não só da saúde, mas da educação, da violência doméstica, do desenvolvimento das crianças. Ele conhecer toda a política social disponível naquela comunidade para dar a família o acesso à alfabetização, aos programas de qualificação, explicar o que significa um programa de microcrédito. Se tivermos esse agente, poderemos dar condições para que toda a família consiga sair da pobreza.

O que fazer para que o mercado de trabalho seja a via principal da redução da pobreza?
SALM - O crescimento é a melhor política de emprego. Nós vivíamos uma situação absolutamente distorcida no Brasil até 1999, a ilusão de que R$ 1,2 era igual a US$ 1, um regime cambial semi-fixo e com taxas de juros elevadas. Nada pior para derrubar o mercado de trabalho. Nessa situação, não era possível criar empregos. Depois de 99, desvalorizamos a moeda e tivemos o regime flexível na economia. Isso trouxe um impacto imediato. Crescemos em 2001, em 2003 foi aquela tragédia, em 2004 voltamos a crescer e depois caímos de novo. Foi o vôo da galinha. Mas o que descobrimos? Que não precisamos crescer tanto para criar empregos. A reação do mercado de trabalho a um pequeno aumento da demanda é muito forte. Se crescermos 4% ao ano - meu Deus do céu, isso não é extraordinário - começaremos a diminuir o desemprego. Tem mais: os empregos criados nesses quatro anos foram, na sua maioria, com carteira assinada. Diminuiu a informalidade. Isso é o fantástico que aconteceu nesses quatro anos, não o Bolsa-Família.

DEDECCA - Os últimos três anos mostram, claramente, que a recuperação econômica, pelo menos neste País, continua sendo o principal elemento para a geração de empregos. Debatemos durante 12 anos, de 1990 a 2002, sem a mudança na legislação trabalhista. Aliás, houve mudanças, para jornalistas, professores, etc. Há dois anos, prestei uma consultoria para algo como 15% do PIB brasileiro, a uns industriais paulistas. Numa reunião, expliquei a estrutura de contribuições sociais que recaem sobre o salário. Algo da ordem de 37%, aquilo que se refere à Previdência Social, férias,etc. Expliquei o seguinte: nessa estrutura, boa parte do que é contribuição social financia a educação, o Sistema S, a reforma agrária, etc. Perguntei: vocês querem retirar isso dos salários? Tudo bem, mas precisarão achar outra fonte para financiar. Estou completamente de acordo que se desonere os salários, não para retirar direitos, mas para modificar a forma de financiamentos desses direitos, através de tributação justa e não de tributação injusta, como é feito atualmente. Agora, o debate que está no mercado não é esse. O que se quer é retirar direito e não colocar nada no lugar. Isto não é resolver uma distorção no financiamento dos direitos, mas eliminar direitos para eliminar custos. Quanto a isso, estou em completo desacordo.

Mas como gerar empregos?
DEDECCA - O que se viu nesses últimos três anos é que é possível gerar emprego, apesar dos ditos custos. A maioria dos empregos criada é formal. E se nós queremos mexer no modo como se regula o contrato de trabalho no Brasil, é melhor mexer com a economia crescendo do que com a economia estagnada. Numa trajetória de crescimento é mais fácil para as partes discutirem, debaterem uma solução alternativa a isso que está aí, até hoje. Numa situação de crise, sinceramente, nós seríamos o primeiro País do mundo que mexeria na regulação trabalhista. Só existem duas experiências no mundo de reforma trabalhista. Primeiro o Chile, sob ditadura nos anos 70, e a segunda a Espanha, durante o Pacto de Moncloa. Todas as mudanças ocorreram, paulatinamente, de modo pontual e consumiram um tempo enorme.

PAES DE BARROS - Não acredito que o custo do trabalho seja tão relevante. Dado que queremos esse volume total de impostos, tirar o imposto dali e botar lá, vai destruir trabalho da mesma maneira, vai travar a economia. O problema todo, no fundo, é a carga tributária. Pode-se pendurá-la no salário, no capital, onde quiser, que vai dar uma travada na economia. O grande problema é a péssima legislação trabalhista. O que eu quero é uma força intrinsecamente produtiva.

O que precisa ser mudado?
PAES DE BARROS - Uma força de trabalho que tenha muita educação, muita qualificação e baixa rotatividade. Uma das coisas importantes é estimular para que o trabalhador permaneça na empresa. Ora, se crio uma regra que diz se você forçar sua demissão, você ganha um prêmio”, estou dando um estímulo para o trabalhador rodar de trabalho. Quem já contratou sabe que, por vezes, os trabalhadores pedem demissão ou querem ser demitidos para se apropriarem do FGTS. Hoje, por exemplo, toda a negociação é feita após o rompimento da relação de trabalho. O Brasil tem uma das taxas mais altas de rotatividade no mundo. O problema do mercado brasileiro é que ele é excessivamente flexível porque tem uma legislação burra, que induz à rotatividade.

SALM - Se o desemprego está alto, duvido que algum trabalhador queira sair para sacar seu FGTS. Se está baixo, é claro que o indivíduo sairá da empresa, aqui, para ganhar 10% mais ali. Isso é muito bom, é assim que os salários sobem. Portanto, não vejo o problema por aí. O custo do trabalho no Brasil é um pouco mais alto do que o americano e um pouco mais baixo do que o europeu. Nunca tivemos problema com esse custo enquanto o País se desenvolveu. Até 1979, 80, mais de 2/3 dos trabalhadores paulistanos tinham carteira assinada e nunca se reclamou do custo do trabalhador. Isso surgiu depois, quando, o País entrou numa semiestagnação, que já dura 25 anos. Se o empregador tem um horizonte, o custo da mão-de-obra não é problema. Talvez, para o pequeno, para o indivíduo que está começando seu consultório de dentista, a secretária seja cara. Mas, num todo, para as grandes empresas, não.

Como melhorar o mercado de trabalho?
SALM - Se não temos crescimento, se não conseguimos gerar emprego, podemos atuar de outra forma. Podemos retirar gente do mercado de trabalho. O nosso problema é que temos um excesso de mão-de-obra barata. Isto leva à pobreza e à má distribuição de renda. Temos que tirar segmentos inteiros do mercado, proibindo o jovem, o menor, a criança, de trabalhar. Com isso, já avançamos naquilo que pretendo. Só com mão-de-obra escassa é que os salários sobem. Foi assim que os países se desenvolveram. Mulheres... as mulheres entraram no mercado de trabalho, no Brasil, a taxas explosivas, se não me engano, nos últimos 20 ou 30 anos, a taxa de 6%,7% ao ano. Ora, as feministas dirão que isso foi uma conquista, e eu concordo. Acontece que a mulher pobre não tem com quem deixar os filhos, não tem creche na favela, não sabe o que fazer com as crianças pequenas, que ficam abandonadas e à mercê do crime. Ela sai de casa às 4 horas da manhã para trabalhar em um serviço doméstico e voltar às 10 horas da noite. Tudo para ganhar no final do mês um ou dois salários mínimos. Nós estamos loucos. Temos que dar esse dinheiro para essa mulher ficar em casa tomando conta das crianças. Já sei, já sei, as feministas vão dizer: por que não fica o homem? Respeito o argumento, aprendi a respeitar que a mulher também quer dar as suas voltinhas na cidade. Tudo bem. Mas temos que pagar um salário para essa pessoa cuidar dos seus filhos, ao invés de obrigá-la a ser uma empregada doméstica, ganhar dois salários mínimos e abandonar as crianças.

DEDECCA - Um aspecto importante é ter os meios públicos que permitam a essa população sair da pobreza de modo definitivo. Não há nenhuma possibilidade de melhorar a pobreza se o mercado de trabalho não melhorar. Não consigo entender como um País pode combater a pobreza se o crescimento do PIB é menor do que o crescimento da população economicamente ativa. É a primeira aula de introdução à Economia: se o PIB cresce menos do que a população economicamente ativa, e a população continua a se empregar, a se arrumar em termos de ocupação, é porque a renda a produtividade caíram. Não adianta dar educação, investir em melhora da qualificação do trabalho, modificar a legislação trabalhista porque a produtividade média está decrescente. A situação brasileira, nos últimos 20 anos, é essa. Ou temos capacidade de recompor o mercado de trabalho em termos de geração de empregos e de aumento da produtividade para melhorar a renda ou, provavelmente, a dimensão da pobreza a ser atacada só poderá ser a da pobreza assistida.

Reduzir a informalidade é fundamental para melhorar a situação social no Brasil?
SALM - Combater a informalidade é a principal política de combate à pobreza. O que chamamos de trabalhador formal é aquele que trabalha sob uma legislação de proteção social, trabalhista. Foi a grande conquista do século 20, particularmente depois da 2ª Guerra Mundial. A grande forma pela qual o Ocidente capitalista conseguiu se contrapor à expansão do comunismo na cabeça dos trabalhadores, foi criando uma legislação de proteção social e ao trabalho. Foi a maior conquista da social democracia do século 20. E de repente aparecem uns jovens economistas que fazem dela tábula rasa. E o Brasil, que tinha quase todo mundo sob a legislação trabalhista, depois de 25 anos de estagnação tem a maioria desprotegida no setor informal constituindo o grosso da miséria e da pobreza deste país. Reverter isso é a prioridade.

PAES DE BARROS - Certamente, os empregos informais são piores. Se pudesse se convertê-los em formais, seriam reduzidas a pobreza e a desigualdade. Mas não acho que a conquista dos trabalhadores do século 20, ou do século 21, seja a formalização, nem a legislação trabalhista. A verdadeira conquista é a educação. Porque um trabalhador por conta própria, ou informal com alta escolaridade, está muito melhor de vida do que um analfabeto no setor formal. Ou seja, o que realmente traça a diferença entre trabalhadores pobres e não-pobres é a educação. A diferença educacional é gigantescamente maior.

DEDECCA - Não há nenhuma razão para considerarmos conflitante educação e informalidade. E todas as pesquisas mostram que o maior desejo das pessoas é o de ter carteira de trabalho assinada. Há evidências claras e inequívocas, de que a sociedade quer a formalização e em especial o trabalhador pobre. Eu diria que alguém que fala que carteira assinada não tem importância para trabalhador pobre, desculpe-me, nunca foi pedir crédito nas Casas Bahia. Sei que você não foi, eu também não fui. Mas nos seus argumentos você traz uma racionalidade para o homem que não existe.

PAES DE BARROS - Eu não disse que não é bom ter carteira de trabalho. O que coloquei é que se você perguntar a um trabalhador informal: você preferiria que assinasse a sua carteira ou que amanhã você se tornasse uma médica que trabalha no Hospital da Unicamp? Uma carteira de trabalho assinada parece alcançável. Mas, na verdade, se ele pudesse alcançar um diploma universitário, todas as estatísticas mostram que estaria indubitavelmente melhor.

Uma pesquisa feita no Rio de Janeiro, na favela do Acari, mostrou que, embora tenham duas vezes e meia a educação dos pais, os filhos dos moradores continuam sendo carregadores de caixotes. O não ensino garante o aumento da renda?

SALM - Não tenho uma lembrança exata, mas é mais ou menos isso: para alcançar a renda média do trabalhador paulistano de 1985, você tinha que ter as quatro primeiras séries do antigo primário.Dez anos depois, precisava ter oito anos de educação. Se a economia não se move, pode ter a educação que quiser que vai haver uma degradação do valor dos diplomas. A empresa, claro, prefere um ascensorista com ensino completo.

PAES DE BARROS - A questão toda é que a demanda por educação vai ser cada vez maior. Há dez anos o trabalhador médio, em São Paulo, tinha quatro anos de estudo, agora tem oito e depois vai ter 12. Mas seja há 20 anos, 10 ou hoje, o diferencial de salário entre um trabalhador analfabeto e um com oito anos de estudo é gigantesco. É verdade que eles vêm se reduzindo, mas são enormes. No Brasil, prefiro ser uma mulher negra universitária do que um homem branco analfabeto.

DEDECCA - A queda desse diferencial se deve a um movimento profundamente perverso, de desvalorização geral da estrutura de rendimento vis-à-vis um movimento geral de elevação do nível educacional. Há uma depreciação crescente das remunerações no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, uma melhora do nível de educação. Seria de se imaginar ainda que, se a educação é importante para o aumento da produtividade, e ela se traduz em salário, que esse movimento tivesse se traduzido em aumento de renda e produtividade. O que temos visto não é isso, o que comprova que a melhora da educação não modifica a distribuição de renda. Está no seu argumento.

PAES DE BARROS - Não está. Mas o que teria acontecido com o Brasil, se não tivesse havido esse aumento na educação? O PIB, hoje, seria talvez 10%, 15% menor. A educação fez com que a queda da renda dos trabalhadores fosse muito menor do que acabou sendo. Claro, precisaríamos de mais estudos para estarmos seguros disso.

Como será a política social num eventual segundo governo Lula?
DEDECCA - Uma questão é a descontinuidade de execução dos recursos. O orçamento, este ano, foi aprovado em maio e liberado a partir de junho. Isso significa que, muitas vezes, governos municipais, ONGs são obrigados a desativar equipes porque o recurso não foi liberado. Outro elemento é a completa falta de integração entre as políticas, por exemplo, da Saúde com a da Previdência. Cada partido ou cada ministro quer fazer a própria política.

PAES DE BARROS - Não teremos mais dinheiro para gastar nem deveríamos pedir mais. O que temos na área social já é suficiente. A solução está em mudar a legislação para que ela fique inteligente. Precisamos contratar e gerenciar bem. Temos de fazer com que os professores estejam na classe, garantir médicos no interior.

DEDECCA - Os recursos da política social não são suficientes. Contudo não devemos aumentá-los na atual fragmentação. Um exemplo: existem, hoje, na Esplanada dos Ministérios 37 programas para inserção da juventude no mercado de trabalho. Sim, 37. E a articulação disso? Zero.

OESP, 25/08/2006, Aliás Debate, p. H1-H12

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