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Setor joalheiro admite risco de ouro ilegal e busca autorregulação

Valor Econômico, Especial, p. A18.
Autor: CHIARETTI, Daniela; SOUZA, Marcos de Moura de
16 de Fev de 2023

Setor joalheiro admite risco de ouro ilegal e busca autorregulação
Governo também prepara novas regras em meio à crise ligada a garimpos na terra Yanomami

Daniela Chiaretti
Marcos de Moura de Souza

16/02/2023

Parte da produção de joias no Brasil pode estar contaminada por ouro extraído em garimpos ilegais em terras indígenas na Amazônia. A avaliação é da própria entidade que reúne joalherias do país. A legislação em vigor permite a compra e venda de ouro em uma zona cinzenta do mercado em que não há comprovação de origem e praticamente nenhuma rastreabilidade. É onde quase toda a indústria joalheira se abastece. Ao mesmo tempo em que o dano reputacional preocupa as joalherias, o governo elabora regulamentação para combater a ilegalidade na dinâmica do comércio de ouro no país.

"Não vou ser hipócrita e leviano e dizer que não existe esse risco", reconhece o economista Ecio Morais, diretor-executivo do Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos, o IBGM. "Estou respondendo objetivamente: o risco tem". A entidade é uma federação com 40 anos de trajetória e que tem entre as 120 associadas os grandes nomes das joalherias do país, além de entidades estaduais.

Morais procura relativizar. "Eu diria que não é grande o risco em razão do volume utilizado [pela indústria de joias] e pelo fato de que uma boa parte desse ouro vem de Mato Grosso, que não está contaminado com esse problema. Agora, pode ser que exista [a penetração de ouro ilegal na indústria]". O setor demanda entre 10 toneladas a 12 toneladas de ouro, o que representa cerca de 10% da produção nacional de metal no país.

O garimpo em terras indígenas e em unidades de conservação, que é uma atividade ilegal, acontece há anos. Em janeiro, contudo, o site Sumaúma divulgou que, nos últimos quatro anos, 570 crianças yanomami, com menos de cinco anos, morreram de doenças evitáveis e relacionadas à invasão garimpeira na Terra Indígena Yanomami. Circularam fotos, no Brasil e no mundo, de indígenas em pele e osso, doentes e desnutridos. O drama trouxe holofotes à questão e exigiu ação emergencial de saúde e comando e controle do governo. Uma operação com forças de segurança retira invasores da região.

"O que está acontecendo na área Yanomami não vem de hoje, mas dramatizou exponencialmente durante o último governo com a leniência adotada. É horrível o que estamos vendo", continua Morais. "O setor joalheiro repudia tudo isso", segue.

Em 2013, o deputado federal Odair Cunha (PT-MG) apresentou emenda a um projeto que tramitava no Congresso e criou novas regras para aquisição de ouro de garimpo. O texto foi sancionado pela então presidente Dilma Rousseff.

A emenda de Cunha previa que as Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) podiam comprar ouro baseando-se na boa-fé de quem vendia. "Construiu-se uma regulação no Brasil para criar um crime perfeito", diz Larissa Rodrigues, pesquisadora e gerente de portfólio do Escolhas, instituto que há quatro anos analisa a dinâmica do comércio de ouro no país. Na prática, quem vende hoje o ouro à DVTM preenche um formulário manual, em papel e caneta, e diz de onde vem o metal. "A lei, ainda, diz que a operação está acobertada pela boa-fé dos envolvidos", segue ela. O ouro, que pode vir de garimpo em terra indígena, será "lavado" nessa operação.

Grande parte das joalherias compra ouro de cinco DTVMs com operações na Amazônia. "É fato, o setor hoje depende, em larga medida, de comprar ouro das DTVMs", diz Morais, do IBGM.

"Mas nada impede que elas comprem de cooperativas de garimpeiros que não estão contaminadas com esse ouro, como se diz, sujo de sangue indígena", segue. Um processo na Comissão de Valores Mobiliário (CVM) chegou a ser aberto para apurar a atuação de cinco DTVMs. A CVM informou, no entanto, que a competência desses casos é do Banco Central.

A emenda de Cunha passou a ser alvo de críticas como sendo uma brecha legal para que as DTVMs adquiram ouro baseando-se na confiança, e não em dados que, de fato, comprovem se o metal saiu de uma área autorizada. O parlamentar rebate, afirmando que, na prática, seria inviável exigir das DTVMs que elas checassem a procedência de todo o ouro que compram de garimpos legalizados.

"Às vezes, as áreas com Permissão de Lavra Garimpeira estão ao lado de regiões indígenas. Não é uma tarefa simples garantir que aquele ouro não vem de uma área ilegal", disse ele ao Valor.

"Claro que, se houver um conluio criminoso entre quem extrai o ouro e quem comercializa, o conceito de presunção de boa-fé do adquirente não subsiste", continua. Cunha diz que, antes de 2013, quem comprava ouro de garimpo não precisava informar aos órgãos de controle dados do garimpeiro e da área. E que o texto ao menos institui essas exigências. Ele solicitou a criação de um grupo de trabalho no Congresso para discutir melhorias na forma de controle do ouro de garimpos comercializado no país.

"Esse setor todo é da obscuridade. É um teatro de sombras", diz um especialista na área, citando garimpeiros, DTVMs e boa parte das joalherias. "Mas a tragédia Yanomami está implodindo essa cadeia clandestina."

O governo Lula está elaborando uma regulamentação, possivelmente uma medida provisória, para eliminar essas brechas. Na segunda-feira, a diretoria do Instituto Escolhas, do WWF-Brasil, do Instituto Socioambiental (ISA) e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) esteve em Brasília, no Ministério da Justiça, apresentando uma proposta de MP. A ideia é alterar a lei no 12.844, de 2013, e instituir novos parâmetros para a compra, venda e transporte de ouro no país.

"As medidas principais são o fim do conceito da boa-fé e que o Banco Central não permita mais participações cruzadas - quando a pessoa é dona de DVTM e tem permissão para explorar garimpo", diz Sérgio Leitão, diretor do Instituto Escolhas. Outra sugestão é a implementação da nota fiscal eletrônica no comércio de ouro nas DTVMs e a guia de transporte e custódia de ouro, expedida pelo vendedor a cada transação, para que se saiba o caminho do ouro no país.

"As joalherias no Brasil, depois que o ouro tem sido visto como um causador de tantas tragédias e percebido como um novo casaco de pele, aquele que a gente não deve mais usar, terão que fazer uma escolha", diz Leitão. "Se querem comprar ouro mais barato e que vem com o sangue indígena ou querem ter uma postura ética, de mostrar ao consumidor que a joia que está sendo comprada não é contaminada pelo sofrimento de povos na Amazônia", continua.

"A questão da fragilidade da operação é fato: é possível identificar de que área saiu, por exemplo, uma esmeralda brasileira. No caso do ouro, , não é possível saber se saiu do Pará, de Mato Grosso ou de Goiás", diz Morais.

Há poucos dias, representantes do IBGM tiveram uma reunião com alguns diretores de DVTMs para exigir certificação do ouro, compras feitas via sistema bancário com pagamento na conta do titular da PLG, além da contratação de uma empresa para desenvolver um sistema de blockchain que permita a rastreabilidade do ouro. "O ouro terá que ser rastreável desde a primeira aquisição até chegar à indústria joalheira", continua.

O setor fatura no Brasil o equivalente a US$ 5 bilhões por ano.

Marcos Lisboa, presidente do Insper, diz que uma medida emergencial para resolver o problema do comércio ilegal de ouro é revogar os artigos da emenda do deputado Cunha. "Ali é o começo do desastre. Como pode as DVTMs comprarem ouro com princípio de boa-fé e com base em documentação rasteira do vendedor?", questiona. "A lei abre flancos imensos. Uma vez revogado tudo isso, os órgãos de controle podem agir com firmeza. Hoje estão, em parte, de mãos amarradas por tais artigos".

"As joalherias têm que entender que o mundo mudou. A referência, aqui, é o cluster do ouro - da produção, à comercialização. Elas precisam se adequar e se atualizar, como todos os outros elos da cadeia, e procurar a certificação do ouro. Trabalhar com o que chamamos de 'ouro legal'", diz Raul Jungmann, diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) e ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, da Defesa e da Segurança Pública entre 1999 e 2018. "Todos têm que se esforçar para desconectar o ouro do garimpo ilegal, que destrói a natureza, as populações originárias e a floresta amazônica."

Jungmann continua: "Essa permissividade acabou. Essa cadeia toda terá que emergir para uma efetiva transparência e controle social. É uma questão de tempo", acredita. "O consumo consciente está crescendo e vai formar um contingente de consumidores eticamente preocupados com a origem do ouro. Isso é irreversível. Não tem volta."

"Legalmente, não compete a bancos centrais, no Brasil ou em outros países, atuarem na fiscalização de atividades relacionadas ao garimpo e à extração de ouro", diz, em nota, a assessoria de imprensa do Banco Central.

"No entanto, o BC interage com outros atores que atuam na cadeia de comercialização do ouro em fóruns sobre o assunto, a exemplo das ações no âmbito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e a Lavagem de Dinheiro (Enccla), bem como sempre contribuiu e se colocou à disposição para integrar grupos de trabalho com o intuito de melhorar a ação do Estado sobre a matéria", continua a nota enviada ao Valor.

"O BC apoia iniciativas que possam aprimorar o marco legal para a fiscalização do comércio do ouro tais como a revogação da presunção de legalidade na aquisição do ouro por instituição financeira e a exigência de nota fiscal eletrônica. O BC também apoia a criação de mecanismos privados que aumentem a rastreabilidade da cadeia produtiva do ouro", segue a assessoria de comunicação do Banco Central.

O Valor tentou ouvir algumas das principais joalherias do país. HStern afirmou que o IBGM fala pelo setor. A reportagem não teve retorno da Manoel Bernardes. E a Antonio Bernardo disse que não havia nenhum porta-voz disponível. Vivara e Sauer falaram sobre suas iniciativas (leia texto Mineração e reciclagem são alternativas).

Valor Econômico, 16/02/2023, Especial, p. A18.

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/02/16/setor-joalheiro-admit…

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