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Sessenta anos do golpe e a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade

Le Monde Diplomatique - https://diplomatique.org.br
Autor: Flávio de Leão Bastos
20 de Mar de 2024

A situação é ainda mais vexatória para o Brasil quando o assunto "ditadura" tangencia a opressão aos seus povos indígenas

O ano de 2024 marca os sessenta anos do golpe de Estado efetuado por militares, com a colaboração de setores da sociedade civil brasileira, durante o período da guerra-fria.

Quando deu início à denominada Operação Popeye em 31 de março de 1964, o general Olímpio Mourão Filho inaugurou o tenebroso período da história brasileira no qual a sistematização da repressão por meio da tortura, desaparecimento e execução de presos políticos deu o tom e a marca do regime.

Contudo, se esse sensível tema gera debates em torno das razões pelas quais verdade, memória e justiça não parecem traduzir a prioridade dos sucessivos governos brasileiros, a situação é ainda mais vexatória para o Brasil quando o assunto "ditadura" tangencia a opressão aos seus povos indígenas.

Se o histórico brasileiro de rupturas institucionais por parte de militares se repetiu em 1964, impondo ao país o terrorismo de Estado com cerca de 434 mortos e desaparecidos - assim reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) -, em relação aos povos indígenas a repressão chegou a assassinar 8350 pessoas (praticamente o mesmo número de vítimas do genocídio de Srebrenica, cometido por tropas sérvias contra civis bósnio-muçulmanos em 1995, durante a guerra da Bósnia).

Isso, pois, a Comissão Nacional da Verdade pesquisou apenas dez povos indígenas, dentre mais de trezentos que vivem no Brasil, em vista de suas limitações temporais e materiais. No entanto, a CNV apresentou recomendações importantes, registrando-se com clareza que, em relação a tais povos, tratava-se apenas do início de um trabalho. Sem dúvida, um trabalho histórico rumo à verdade, memória e justiça para os povos originários do Brasil.

Contudo, poucos avanços são verificados atualmente para que as recomendações da CNV, em relação aos povos indígenas, sejam minimante cumpridas. Dentre elas, a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, essencial para que as mesmas dinâmicas históricas e estruturais de violência não voltem a se repetir, contra tais culturas.

Se a memória da presença indígena na Terra das Palmeiras (ou, Pindorama, na língua Tupi, nome dado pelas indígenas à nossa terra antes da ocupação portuguesa a partir de 1500) é marcante na língua, na culinária, nas artes, nos nomes de ruas, de cidades e em seus subsolos, não foi ainda consolidada no âmbito da Justiça de Transição, uma vez que a sociedade brasileira se viu privada de conhecer as tragédias impostas aos Tupinambás, Krenaks, Kayowás, Waimiri-Atroaris, Guaranis, dentre outras tantas etnias, durante a ditadura, à medida em que memória, verdade, justiça, reparação e não repetição, enquanto etapas do processo transicional, jamais foram realizadas quanto aos povos indígenas.

Não se pode dissociar os legados do passado, dos fatos presentes. As dinâmicas violentas que hoje massacram indígenas são consequência das desterritorializações geográficas e corporais que os vitimaram no passado.

A espoliação das terras indígenas tradicionais gera a pobreza e a miséria de tais povos; decorrem daí os suicídios dos jovens indígenas (que hoje supera em três vezes os suicídios entre os não indígenas); é, ainda, consequência dessa desterritorialização a ruptura para com o sistema de produção alimentícia, milenar e sustentável de tais culturas, o que conduz à inanição e morte pela fome, ao que se soma a guerra bacteriológica levada a cabo a partir do envenenamento de suas águas e seus corpos, pelo mercúrio; devemos, ainda, lembrar a sistemática violência sexual cometida contra as meninas e mulheres indígenas por garimpeiros, o que é visto com indiferença pela sociedade brasileira, uma vez que se as terras indígenas são consideradas violáveis em nome de um questionável progresso que está levando a humanidade a um processo de extinção em massa - também violáveis seriam os corpos da mulheres indígenas, pensamento racista e colonizador até hoje presente na sociedade brasileira.

Tais exemplos, dentre inúmeros outros que poderiam ser mencionados, embora possam lembrar livros de história sobre o período da colonização, constituem menções a casos atuais.

Significa afirmar que, se o Estado brasileiro ainda deve à sua sociedade a apuração detalhada sobre o período da ditadura militar, ainda mais deve aos povos originários do país que vêm sendo erradicados por todos os meios possíveis já concebidos por uma sociedade e por suas instituições, desenvolvidos sobre o genocídio racista de tais povos e que foram profundamente reprimidos e exterminados pela ditadura militar de 1964.

A lawfare praticada contra os povos originários no Congresso Nacional ou a destruição de seus biomas por garimpeiros ilegais; a inanição de crianças indígenas ou a crescente violência contra suas mulheres, são consequências de um passado que precisa ser definitivamente conhecido em seus detalhes e em suas bases racistas e colonizadoras. Afinal, temos um presente resultante de nossas opções passadas.

A criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, embora exija a coragem política necessária, é um dos destinos de um país que se pretende realmente democrático e civilizado.

O Brasil não tem como se furtar ao seu destino: um dia terá que instalar sua Comissão Nacional Indígena da Verdade e promover as políticas necessárias de não repetição, como exigem os povos indígenas e como insistia Marcelo Zelic.

Enquanto não efetivarmos os processos de Justiça de Transição indígena e referente à escravidão africana, não teremos capacidade de nos reconhecer perante o espelho, enquanto nação democrática. Até lá, seremos sempre um remendo de país.

Esperança paira no ar, apesar de um mundo que caminha rumo aos extremismos.

O Brasil possui hoje seu primeiro Ministério dos Povos Indígenas que, também, vem exercendo seu protagonismo, inclusive com lideranças exercendo funções importantes, por exemplo, na Funai.

As mulheres indígenas lideram a luta pelos direitos dos povos ancestrais, originários, da floresta; vêm brilhando nas carreiras e nas artes, além da política. Hoje, são 92 associações de mulheres indígenas, como a Wayrakuna - rede ancestral, filosófica, artística e cosmológica de indígenas mulheres e a Anmiga - Associação das Mulheres-Bioma em Defesa da Ancestralidade.

Mais do que isso e que é significativo para a efeméride que marca os sessenta anos do golpe de Estado de 1964, é a realização, pela Comissão de Anistia, de sessão para realização do julgamento administrativo para reparação coletiva do povo Krenak, uma das nações indígenas mais perseguidas e espoliadas da história do Brasil - desde a decretação das guerras justas contra tal povo, durante a colonização. Foi em suas terras que a ditadura colocou em prática o famigerado "reformatório", autêntico campo de concentração para onde vítimas indígenas do Brasil eram enviadas para sofrer toda sorte de abuso por forças policiais que representavam o regime de exceção.

E ainda hoje o povo Krenak luta para receber de volta sua terra sagrada de Sete Salões.

É o primeiro caso de decisão para reparação coletiva de todo um povo, vitimado pela ditadura, da história do Brasil.

Nos sessenta anos do golpe militar, a sociedade brasileira deve exigir a verdade sobre a repressão aos indígenas. Assim, poderá se (re)conhecer melhor.

A criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade não é uma questão de política, mas uma obrigação moral da sociedade brasileira.

Flávio de Leão Bastos é coordenador dos núcleos da Memória e dos Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, membro do GT Doi-Codi e foi membro da Comissão da Verdade de Osasco, autor do livro Genocídio indígena no Brasil: desenvolvimentismo entre 1964 e 1985 (Juruá, 2018), professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Justiça de Transição, conselheiro do Núcleo da Preservação da Memória Política de São Paulo e professor visitante na Universidade Tecnológica de Nuremberg (Alemanha), na Universidade de Ciência Aplicadas de Linz (Áustria) e na Universidade de Barcelona (Espanha).

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