VOLTAR

Servidor da Funai relata medo e tensão no sul do Amazonas

Amazônia Real - http://amazoniareal.com.br
Autor: Kátia Brasil
10 de Fev de 2014

ENTREVISTA: SANDOVAL AMPARO

Desde o dia 25 de dezembro o site Amazônia Real vem cobrindo o conflito no sul do Amazonas e os desdobramentos das investigações da Polícia Federal sobre a morte de um cacique, a morte de três homens e as prisões de cinco índios na terra indígena Tenharim Marmelos, que é cortada pela Transamazônica entre os municípios de Manicoré e Humaitá (a 591 quilômetro de Manaus).

A reportagem solicitou entrevistas com o ex-coordenador da Funai (Fundação Nacional do Índio) de Humaitá (AM), Ivã Bocchini, e outros funcionários da Coordenação Regional (CR) do Madeira, mas teve negado todos os pedidos. As entrevistas poderiam esclarecer dúvidas, por exemplo, sobre o futuro das relações do povo Tenharim com a população não indígena daquela região e indígena, já que as margens da rodovia e do rio Madeira vivem também os povos Jiahui, Parintintin, Pirahã, Mura, Munduruku, Apurinã e Juma, que enfrentam situação de vulnerabilidade na segurança.

O Amazônia Real tentou também entrevistar os próprios tenharim e pesquisadores que atuam com eles, mas não obteve retorno das solicitações.

Após muita insistência, um funcionário da CR Madeira da Funai, em Humaitá, concedeu entrevista ao Amazônia Real. O geógrafo Sandoval Amparo, 32, conta como no ápice do conflito, no dia 25 de dezembro, quando a sede da fundação foi incendiada pela população revoltada com os índios tenharim, partiu às pressas com a mulher e o filho bebê para Porto Velho (RO). Mais de 140 índios foram refugiados no quartel do Exército depois que sofreram ameaças de morte.

"Amigos nos informaram que iriam incendiar as casas dos servidores da Funai". Nesta entrevista ele afirma que "a tragédia não deve ser atribuída ao conjunto dos índios Tenharim" e traça um futuro difícil para etnia para fora das aldeias já que na região do sul do Amazonas, segundo ele, o clima é de "conflito e sentimento de vingança".

Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UnB), com estudo sobre Organização Espacial das Aldeias, Sandoval Amparo é responsável por inúmeras atividades de proteção e resgate da cultura dos povos do Madeira, entre eles, os Tenharim, desde 2011.

Estão entre as atividades, a fiscalização de terras indígenas, a elaboração de mapas e patrimônio cultural: direção de arte do CD "Morogita: Cantos e Estórias do Povo Tenharim-Kagwaiwa; elaboração de estudos e artigos sobre a questão indígena e organização Mbotawa" 2013, que é o principal ritual do povo Tenharim no qual há cerimônias de casamentos, cantos e danças tradicionais.

Leia entrevista com Sandoval Amparo:

Amazônia Real - Qual era a relação do povo Tenharim com a população não indígena do sul do Amazonas antes do fatídico 25 de dezembro, quando a população se revoltou contra a etnia?

Salvador Amparo - Marcada pelo preconceito, mas sem exacerbação de qualquer lado. Os maiores problemas eram o pedágio (cobrança de taxas aos motoristas realizada desde 2006) e a retirada ilegal de madeira em terras indígenas. Os não índios, no entanto, mantinham grande respeito pelos indígenas e pagavam o pedágio, mesmo insatisfeitos. Desconheço qualquer caso de assassinato de indígenas nos últimos anos na região, talvez isso remonte mais de 40 anos. Portanto, apesar do preconceito latente, aliás, comum em todas as regiões do país, a relação era pacífica.

São muitos ilícitos que ocorrem nas terras indígenas da região, principalmente ligados ao garimpo e a retirada ilegal de madeira. A situação das Terras Indígenas Gleba B e Sepoti (dos Tenharim) é certamente das mais críticas. A TI Gleba B só tem acesso por meio do povoado de Santo Antônio do Matupi (em Manicoré) e não possui nenhuma aldeia, o que é uma situação muito complicada. Outro ponto bastante relevante diz respeito ao que considero o dever de casa das terras indígenas, que a Funai deixou de fazer: abertura de picadas (passagem), colocação de placas, planos ordenadores para cada TI. Há alguns anos venho alertando meus colegas da Funai sobre isso, inclusive via relatórios. Jamais fui ouvido. No entanto, todos os que cometem ilícitos em terras indígenas alegam estes desconhecer os limites das mesmas, o que é parcialmente verdadeiro. Seria interessante que o Exército disponibilizasse seus homens para esta atividade, pois cada quilômetro de picada custa cerca de R$ 10 mil. A terras indígenas sob Coordenação Regional (CR) Madeira possuem mais de 3 mil quilômetros de perímetro... É um valor altíssimo, e a Funai só gasta valores tão altos em megaoperações de fiscalização de eficácia muito duvidosa, pois duram pouco tempo e consomem altos valores dos já limitados recursos da Funai e quando acabam fica sempre uma sensação de segurança pra que vive na região.

Outra situação muito difícil é dos índios Pirahã, que estão há mais de um ano sem chefe e nem Coordenação. A situação deles talvez seja a mais dramática, pois já estava muito ruim antes do início desta guerra. A situação dos Juma não é menos complicada.

Amazônia Real - Como o senhor conseguiu partir de Humaitá, foco das tensões, no dia da revolta?

Salvador Amparo - Me desloquei de taxi, às pressas, até Porto Velho (RO), onde ficamos num hotel, e depois até Rio Branco (AC), onde ficamos na casa de um amigo por cerca de 15 dias eu, minha companheira e o Josué, meu filho de 6 meses, no dia 26, após inúmeros telefonemas de amigos informando que iriam incendiar as casas dos servidores da Funai a começar pela casa do ex-coordenador (Ivã Bocchini), que foi exonerado. Residimos na rua das Flores, a menos de 50 metros da casa do ex-coordenador. Decidimos partir quando percebemos que o mesmo que já estava ausente, mandou recolher seus cães, antes de dar qualquer alerta aos servidores, o que foi de uma desumanidade assustadora. Também recebi um telefonema de um servidor da Presidência da Funai em Brasília que é meu amigo há muitos anos, me orientando a sair da cidade e preservar minha família, pois as providências da Funai não estavam sendo tomadas no tempo que a situação exigia.

Amazônia Real - O que pode acontecer entre a relação dos tenharim com os outros povos indígenas do entorno da Transamazônica e do rio Madeira?

Sandoval Amparo - Tenho certeza que esta tragédia não deve ser atribuída ao conjunto dos índios Tenharim e os outros índios sabem disso. A imensa maioria dos Tenharim é pacífica e de boa índole. Embora não seja muito prudente conjecturar sobre a índole alheia, acredito nisso e tenho muitos amigos indígenas que merecem meu carinho e respeito. Há sim um grupo que excede o limite dos direitos indígenas, em busca de respostas que o Estado e a Funai dificilmente poderá lhes oferecer.

O caso mais exemplar foi o acordo que resultou na efetivação do Ivã Bocchini como coordenador. Em julho de 2012, os Tenharim iniciaram uma mobilização incompreensível, pedindo a saída do Valmir Parintintin da coordenação, o que se efetivou em setembro de 2012. Os índios queriam a nomeação do Domiceno Tenharim (que hoje está preso por suspeita de envolvimento em três mortes) para coordenador. Esse acordo foi feito, numa reunião realizada na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), da qual participaram um assessor da Presidência em Brasília, que já não está mais na Funai, além de professores e pesquisadores da universidade, como observadores. Todos presenciamos este acordo que visava unicamente enrolar aos índios, pois o Domiceno não era servidor e não poderia ser nomeado coordenador sem antes ser nomeado para um cargo de confiança. Este acordo jamais seria cumprido e a relação dos Tenharim com os Parintintin ficou abalada. Os Parintintin estavam insatisfeitos com a saída Valmir.

Mas espero, acredito e torço que esta relação, já marcada por rivalidade de muito tempo, se amenize, pois alguns dos Tenharim, atendendo sei lá a conveniência de quem, escolheram um caminho errado que provocou prejuízo a todos os indígenas.

Amazônia Real - Como será a relação dos tenharim com a população não indígena do sul do Amazonas a partir de agora?

Sandoval Amparo - É difícil especular, mas sei que nenhum profissional de saúde ou professor deseja trabalhar em área nesse momento, assim como muitos colegas da Funai. Todos estamos com medo. Estamos tentando entender as razões, os motivaram e não encontramos explicação. Estávamos na produção de um filme sobre a festa Mbotawa, que já conta com mais de 8 horas de registro. Com apoio da Secretaria Municipal de Cultura e da Secretaria de Estado de Cultura iriam lançar o CD com uma qualidade melhor, seguido de apresentações culturais na capital, em espaços adequados.

Os Tenharim frequentavam a Ufam e a Universidade do Estado do Amazonas (UEA), bem como escolas públicas da região (após os conflitos, alguns índios estão sendo escoltados por força militar para estudar. Outros estão sem aulas). Noutra oportunidade realizamos uma apresentação na rádio Humaitá FM (104.9), no dia do índio, quando fizemos o pré-lançamento do CD "Morogitá". Tudo isso está rompido, ao menos por um tempo. Temo por represálias, pois a banalização da violência atingiu Humaitá há algum tempo e nos últimos meses temos presenciado inúmeros eventos na cidade nos quais chamava atenção a violência gratuita, como assassinatos banais, brigas com perfurações, etc. E a intolerância não é exclusividade dos indígenas que agiram deste modo, mas há também na região muita gente que fomenta o conflito e o sentimento de vingança. Agora estas pessoas tem um motivo... Isso é que mais me assusta.

Amazônia Real - Qual foi o trabalho que o senhor desenvolveu com os índios tenharim?

Sandoval Amparo - Entre novembro de 2012 e julho de 2013 trabalhei dia e noite na organização do Mbotawa do Cacique Zeca (aldeia Marmelos IV). A ideia original era fazer uma festa aberta aos visitantes, com produção de material como CD, filme, etc. Não conseguimos o apoio que queríamos de muitas instituições, porém a Secretaria Municipal de Cultura, na figura do Sr. Ronaldo Siqueira, o Vereador Alexandre Perote (proprietário do estúdio onde foi feita a gravação), um empresário local proprietário da empresa GEMP (que apoiou com alimentação), bem como o 54 BIS do Exército apoiaram bastante. Aliás, o Cel. Marcio Prado é o único herói nessa história toda, pois sempre foi aliado dos indígenas e salvou 150 deles de serem linchados, garantindo a ordem e aquartelando a todos. Em minha modesta opinião, ele salvou a honra do Estado brasileiro junto aos indígenas. O Cel. Prado tem total consciência da atuação do Estado na abertura da Transamazônica durante o regime de exceção e jamais se esquivou de apoiar aos indígenas. Isso deve ser lembrado por alguém. Esse trabalho que iniciamos finalizou em julho de 2013, mas não conseguimos fazer tudo que queríamos. Temos 8 horas de registro audiovisual de alta qualidade e estávamos trabalhando na edição deste material para a produção de um filme poético, assim como o CD, que é duplo, um de cantos outro de estórias. A narração das estórias foi feita pelos Cacique Zeca, Dorian, Agostinho e Peruano, todos da velha guarda da aldeia, num take só, que depois foi dividido em várias faixas (com um toque de flautas inicial e o grito Huha no final) como que um livro para ser ouvido e que deveria ser encaminhado para as escolas da aldeia e da cidade, perpetuando a tradição nesse momento onde uma ruptura com a cultura ancestral ocorre fortemente. O outro CD é de cantos. Sou muito grato aos tenharim pela oportunidade de trabalho e lamento profundamente que este ano até então maravilhoso tenha terminado desta forma.

Amazônia Real - O que vai acontecer com esses programas?

Sandoval Amparo - Eu estou sem condições psicológicas para voltar para Humaitá e creio que isto não seja o melhor a ser feito. Já formalizei transferência para o Museu do Índio no Rio de Janeiro, onde reside parte da minha família e espero que a direção da Funai em Brasília esteja sensível à minha situação e de minha família. Durante 10 anos estive à disposição da Funai, já morei em Brasília, já fui pro Guaporé, já morei no sul do Pará onde ninguém que ir e estava muito feliz em Humaitá. Essa é hora de voltar a estar perto da minha família, pois meu filho tem esse direito e isso não é possível em Humaitá, que é a terra da família da minha esposa. Lá correremos risco. Tampouco quero ficar à mercê de alguém em Brasília que decide as coisas à distância, sem sensibilidade alguma para os problemas reais dos servidores. Se necessário vou à Justiça para conseguir uma lotação nestas condições. Caso saia derrotado, vou dar aulas de Geografia ou procurar outro emprego.

Embora estes projetos que estava à frente sejam muito relevantes, não há clima nem é o momento de dar continuidade aos mesmos. O efeito positivo que desejávamos no início - promoção cultural e o fim do preconceito pelos povos indígenas na região por meio da divulgação de aspectos positivos de sua cultura - não é mais possível de ser obtido em função de tudo foi feito por alguns deles, com prejuízos para todos, no que me incluo.

Todo o material produzido está à disposição dos Tenharim e poderá ser utilizados pelos mesmos neste recomeço. Só que tudo será mais difícil a partir de agora, inclusive expandir os horizontes da aldeia e conseguir apoio fora do meio indigenista para tocar estes projetos, que era um dos objetivos. Tudo isso é muito triste. Sei que meu trabalho não foi perdido, mas será muito difícil dar continuidade.

http://amazoniareal.com.br/servidor-da-funai-relata-medo-e-tensao-no-su…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.