VOLTAR

Sertanista Meirelles diz ao embaixador peruano que índios isolados podem ser exterminados por ações de madeireiras

Página 20-Rio Branco-AC
Autor: Romerito Aquino
15 de Jul de 2004

"Disse ao embaixador que se os dois países não fizerem o mais rápido possível um trabalho conjunto de preservação da floresta na região de fronteira, ela será devastada e os índios isolados serão exterminados", José Carlos Meirelles

O sertanista José Carlos Meirelles, da Funai, foi flexado no pescoço há pouco mais de um mês por índios ditos isolados do alto rio Envira, município de Feijó, próximo à fronteira com o Peru. Resgatado de helicóptero de seu local de trabalho naqueles confins do Acre por um socorro organizado às pressas pelos governos federal e estadual, Meirelles logo sarou, mas ficou entalado com uma pergunta: por que os governos do Peru e do Brasil não resolvem logo enfrentar madeireiros e madeireiras clandestinos que estão desvastando a floresta situada ao longo de boa parte das suas fronteiras, em especial na região do Acre? E que são, segundo o sertanista, os principais responsáveis por afugentar do território peruano os índios isolados que estão chegando cada vez mais próximos do posto etnoambiental que dirige no rio Envira. E que, também, estão flexando até brancos como ele, que tem como missão justamente o de protegê-los contra os males da dita civilização.
Como a pergunta sem resposta até agora, ele adiou a sua volta para a floresta e resolveu ir um pouco mais longe. Pegou um avião e veio para o Planalto Central do país para ver se descobriria alguma resposta convincente para problemas que, segundo ele, há muito já são conhecidos por parte dos governos do Brasil e do Peru.
Com o apoio do gabinete do senador Tião Viana, Meirelles foi na terça-feira desta semana até a embaixada do Peru em Brasília para ver de perto o que as autoridades daquele país tinham a dizer sobre o assunto que já é notícia corriqueira para quem mora nos dois lados da fronteira. Ao se encontrar com o embaixador Hernán Couturier, Meirelles relatou não só o seu como vários outros incidentes que a ação destruidora e predatória de empresas madeireiras clandestinas, inclusive de dimensões internacionais, estão provocando na região de fronteira entre os dois países, numa linha reta que, no Acre, vai de Assis Brasil até Marechal Thaumaturgo, percorrendo praticamente toda a fronteira do estado com o Peru.
A exemplo do que fez no início deste ano em Brasília o líder Ashaninka Benke Pianco, do rio Amônia, município de Marechal Thaumaturgo, o sertanista aproveitou para reforçar junto ao embaixador a denúncia de que os incidentes tendem a ser tornar ainda mais críticos com a ação de narcotraficantes internacionais naquela região de fronteira, principalmente do lado peruano. Além de afugentarem e destruírem milhares de hectares de floresta onde habitam os índios, as madeireiras clandestinas estão destruindo algumas das grandes áreas em que os narcontraficantes plantam a folha da coca.

Muito solícito e diplomático, coube ao embaixador apenas ouvir do sertanista mais um capítulo do conturbado conflito fronteiriço, que se tornará cada vez mais grave na medida em que as autoridades dos dois países forem deixando a solução para depois ou forem se enrolando no oceano burocrático que costuma cercar as decisões de cunho diplomático. Falada e dialogada há mais de 15 anos entre autoridades federais e estaduais dos dois países, a integração do Acre com o Peru é um bom exemplo de lentidão burocrática que sequer aboliu até hoje a necessidade de passaporte nas regiões mais próximas das duas fronteiras. O que já não acontece, há muitos anos, por exemplo, em cidades situados mais longe das fronteiras físicas do Brasil com o Paraguai e a Argentina.
"Disse ao embaixador que se os dois países não fizerem o mais rápido possível um trabalho conjunto de preservação da floresta na região de fronteira, ela será devastada e os índios isolados serão exterminados", advertiu Meirelles, ao explicar que os índios isolados que perambulam na fronteira da região do Acre são constituídos de Masko, que são nômades e em maior número, e nos parentes mais próximos das etnias Jaminawá e Kaxinawá, já conhecidos no estado.

Congresso peruano já aprovou acordo
Nas suas explicações ao sertanista, o embaixador, como é de hábito diplomático, fez todo um arrazoado histórico para explicar a demora do governo de seu país - que parece não ter nenhum veio ecológico, como tem o governo acreano - de impedir que madeireiras clandestinas continuem arrasando a floresta amazônica de seu país, além de perseguir e matar índios que, certamente, para elas não passam de "bicho do mato".
Mas o embaixador peruano acabou passando informações importantes para o sertanista Meirelles. Ele informou que os dois governos só poderão atuar em conjunto nas áreas florestais de fronteira depois da assinatura do acordo discutido entre os dois países que prevê a cooperação nas áreas de conservação e uso sustentável da flora e da fauna silvestres de seus territórios amazônicos.
Os termos do futuro acordo já foram definidos em Lima durante a ida do presidente Lula à capital peruana, onde esteve acompanhado do governador Jorge Viana, que vem liderando, junto com a bancada federal do Acre, a luta pela regularização fundiária e o fim dos conflitos nesta região de fronteira amazônica.
Segundo o que o embaixador disse ao sertanista José Carlos Meirelles, somente após a assinatura do acordo pelos presidentes dos dois países é que poderá ser definida, por exemplo, a preservação de uma grande área de floresta amazônica naquela região de fronteira. "Durmo sonhando com o dia em que possamos ter um parque florestal binacional entre os dois países na nossa região de fronteira", disse Meirelles.
Ocorre, porém, que os termos do acordo foram definidos em 25 de agosto do ano passado e até agora, depois de quase um ano, ainda engatinha entre uma gaveta e outra do Congresso Nacional, que é quem autoriza o presidente da República a celebrar acordos internacionais. Como o Congresso brasileiro vem demorando para definir até questões cruciais do país, como o salário mínimo de seus trabalhadores, ninguém sabe ao certo quando será votada a permissão para o presidente Lula assinar o acordo com o presidente peruano Alejandro Toledo.
O embaixador Hernán Couturier informou que o Congresso de seu país já votou a autorização para o presidente Toledo assinar o acordo com Lula. Ou seja, segundo o embaixador, a bola da vez está agora com as autoridades brasileiras. Só depois do acordo assinado é que começarão a ser desenvolvidas as ações previstas em suas várias cláusulas.
"Não sei se a floresta e os índios podem esperar tanto tempo", advertiu Meirelles, ao lembrar que só na área de floresta da terra indígena Ashaninka foram derrubados nos últimos dois anos mais de sete mil hectares de floresta, com milhares de árvores valiosas, como mogno, cerejeira, castanheira e até seringueira sendo roubadas, deixando atrás dos arrastões feitos pelos grandes tratores que atuam na região um rastro de destruição e devastação de importantes segmentos do ecossistema amazônico. Logo onde a floresta Amazônia, inclusive, apresenta uma das maiores biodiversidades do planeta, conforme pude atestar em recente reportagem que publiquei neste Página 20 sobre a selva do Parque Nacional da Serra do Divisor e dos índios Ashaninka, do rio Amônia, e dos Kaxinawá, do rio Jordão.

Ibama e Inrena vão atuar integrados
Pelos termos do acordo, que já foram aprovados no Congresso peruano mas esperam a boa vontade dos deputados e senadores brasileiros, o Brasil e o Peru reiteram, no primeiro artigo do documento, seu compromisso de cooperar em matéria de conservação da flora e da fauna silvestres e respectivos ecossistemas de seus territórios amazônicos "com o propósito de impulsionar a proteção do meio ambiente e o aproveitamento sustentável de seus recursos naturais".
Além disso, os dois países se comprometem em planejar, implementar e monitorar programas de manejo, conservação e uso sustentável da flora e da fauna amazônicas em seus respectivos ecossistemas amazônicos. Os termos do acordo definem, ainda, que os dois países se comprometem em implementar medidas destinadas a um maior controle e fiscalização das ilegalidades ambientais que atentem contra a conservação da flora e fauna amazônicas.
Os dois governos definiram que o Ibama, pelo lado brasileiro, e o Instituto Nacional de Recursos Naturais (Inrena), pelo lado peruano, serão os responsáveis pela execução dos projetos e atividades previstos no acordo bilateral. Entre as atividades, se destaca a que prever a troca de informações para que ambos os países tomem providências contra as ilegalidades cometidas contra os ecossistemas florestais, inclusive a biopirataria, que atentam conta a conservação e uso sustentável da flora e da fauna, "assim como realizar esforços conjuntos para seu controle nas zonas de fronteira comum com vistas a impedir essas atividades".
Sobre os índios da região, os termos do acordo se resumem em dizer que, para ter sucesso na conservação da flora e da fauna, os dois governos "se comprometem a difundir os resultados das investigações e atividades de conservação, assim como promover a tomada de consciência para a conservação e uso sustentável da flora e fauna silvestres entre as populações fronteiriças e as comunidades indígenas". Pelo que o sertanista Meirelles deixou claro ao embaixador, se depender dos índios brasileiros, inclusive os isolados, a floresta se manterá de pé com ou sem acordo. O mesmo não se pode esperar, segundo Meirelles, das madeireiras clandestinas e traficantes de drogas que atuam cada vez mais livres para cima do rio Madre de Dios a partir da região de Puerto Maldonado, situado a 220 quilômetros da fronteira com a cidade acreana de Assis Brasil.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.