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Seringais viram pastos

CB, Brasil, p. 16
14 de Dez de 2008

Seringais viram pastos

Leonel Rocha e Edson Luiz
Da equipe do Correio

Em 22 de dezembro de 1988, um tiro disparado no meio da floresta amazônica ecoou no mundo. Chovia no começo da noite em Xapuri, no interior do Acre, quando o líder seringueiro Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, foi assassinado pelo fazendeiro Darci Alves Pereira, a mando do pai Darly Alves da Silva. A eliminação tinha como objetivo tirar do caminho dos pecuaristas o principal empecilho às derrubadas de árvores seculares da floresta para que a área fosse transformada em pasto para o gado. O crime mudou a visão do país e do mundo em relação ao meio ambiente, chamou a atenção para os conflitos fundiários e revelou a violência contra trabalhadores rurais.
No entanto, a bala que matou Chico não parou a ação das motosserras, que hoje transformam em um grande pasto o seringal onde ele nasceu e pelo qual foi assassinado. No local, seringueiros que antes acordavam de madrugada para coletar o látex, hoje fazem o mesmo para tanger o gado.
Depois da morte do líder seringueiro, o governo despertou para a questão ambiental. Mas não conseguiu diminuir o ritmo da devastação e da transformação das florestas de seringueiras em pasto. Nos últimos 20 anos, as queimadas e derrubadas destruíram 370 mil kM2 de florestas primárias (leia na página 17). Uma das áreas atingidas foi o seringal Cachoeira, onde nasceu Chico Mendes e que depois de sua morte foi transformado em uma reserva extrativista que leva o nome dele. Dos 970 mil hectares na zona rural dos municípios de Xapuri, Brasiléia, Rio Branco, Sena Madureira e Capixaba, 5% já foram derrubados. A castanheira e a seringueira, que antes garantiam o sustento dos povos da floresta, aos poucos deram lugar a 10 mil cabeças de gado, o dobro do permitido pela lei ambiental. É tudo o que Chico Mendes não queria.
"Se eu disser que todos os ideais de Chico Mendes foram realizados, não estarei dizendo a verdade. Há muito a ser feito, como na reserva que foi criada. 0 governo não deu condições para seus moradores, que estão transformando suas colocações em pastos", afirma a viúva do líder seringueiro, Ilzamar Gadelha Mendes. Ela também preside a fundação que leva o nome do marido. Segundo ela, por falta de alternativas, os seringueiros estão trocando as atividades extrativistas pela criação de gado. " pessoal cria boi para viver. Tem que ter mais investimentos na área", acrescenta a viúva.
Devastação
As preocupações de Ilzamar têm razão de ser. Segundo levantamentos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), os desmatamentos na Reserva Extrativista Chico Mendes acontecem em mais de 20% da área ocupada pelos seringueiros. A devastação é ainda em um percentual pequeno, mas colocou as autoridades em alerta. 'A área regular é ainda de 75%", afirma Sebastião Santos da Silva, que coordena uma operação junto com a Polícia Federal para fiscalizar a região.
Os dados só foram levantados pelo Ibama por causado controle de vacinação dos rebanhos. Isso significa que o controle é falho e o número de cabeças de gado pode ser bem maior. Cada morador tem direito a criar até 30 animais nos 15 hectares de cada colocação (gleba) destinados a pastagens. Mas o que as autoridades têm observado é que esse número está quase duplicado. 0 mesmo vem acontecendo com as derrubadas. "Os desmatamentos também estão bem acima do limite, chegando até a 20% a mais nas áreas ocupadas", diz Silva.
Foi na região onde hoje é a reserva extrativista que Chico Mendes teve seus primeiros confrontos com DarlyAlves, 0 fazendeiro, que tinha fugido para o Acre depois de cometer outros crimes em Umuarama, no Paraná, queria ampliar a área de pastagem para a criação de gado. Para isso, expulsou seringueiros de suas glebas e começou a devastação. Então presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, Chico Mendes impedia que as castanheiras e seringueiras fossem derrubadas, realizando o que chamou de "empates". Junto com outros homens, mulheres e crianças, o líder enfrentou as motosserras até que as derrubadas fossem paralisadas.
Isso colocou Chico Mendes diante do perigo iminente, que se tornou ainda mais claro quando o líder seringueiro trouxe do Paraná uma carta precatória mostrando que o fazendeiro era procurado pela polícia. Chico recebeu proteção policial, mas isso não foi o suficiente para evitar sua morte. Orientado pelo pai, Darci Alves Pereira ficou de tocaia durante vários dias nos fundos da casa de madeira do sindicalista, até que, na noite de 22 de dezembro de 1988, conseguiu enxergá-lo no banheiro do quintal e acertá-lo com um tiro de espingarda. Chico caiu morto diante de Elenira, sua filha de 4 anos à época.

Tratado como um santo

Chico Mendes era uma pessoa acessível e querida pelos companheiros de sindicato - principalmente no Seringal Cachoeira, onde nasceu em 1944. Sua imagem hoje é cultuada em todo o Acre, onde passou a ser um dos heróis do estado. Nos últimos anos, outro fato tem marcado a figura do líder seringueiro. Muitos milagres estão sendo atribuídos a ele. Em seu túmulo, em Xapuri, a 185km de Rio Branco, diariamente são deixados bilhetes, flores, plantas da floresta e até fotografias.
Cética, a viúva de Chico Mendes, Ilzarnar, é cautelosa quando tratado assunto. "Os companheiros sempre o procuravam nos momentos de necessidade. 0 Chico tinha um dom divino, que era o da liderança', afirma, ressaltando que, depois da morte do líder seringueiro, muitos trabalhadores ficaram sem rumo. "Existe na zona rural, no meio da mata e na cidade um povo humilde que ficou meio desamparado com a morte do Chico e procurava um novo líder", conta a viúva.
Na floresta, porém, Ilzamar tem ouvido falar sobre possíveis realizações de seu marido. "Dizem que se apegam a ele e que ele faz milagres", afirma a viúva, que prefere não estender o assunto. Mas na maior parte das casas nas colocações embrenhadas pelo Seringal Cachoeira, fotos do líder seringueiro estão penduras na parede. Ao lado, orações ou flores. (EL e LR)

Personagens de uma triste história

Darly Alves da Silva - O fazendeiro paranaense, que continua vivendo em Xapuri,foi condenado a 19 anos de prisão, em 1990, como mandante da morte de Chico Mendes. Fugiu de uma penitenciária em 1993 e só foi capturado cinco anos depois. Atualmente está em prisão domiciliar e vive um drama familiar. Seu filho José Góes Neto da Silva, 18 anos, matou Francisca Vanderlei Martins, a mulher com quem o fazendeiro morava. Darly, que hoje é evangélico, é acusado também pela morte de Ivair Higino, amigo de Chico Mendes.

Darci Alves Pereira - Filho de Darly, Darci também é fazendeiro e vive no Acre. Ficou preso em Brasília, depois de recapturado, e foi condenado a 19 anos por ser o executor de Chico Mendes. Considerado filho rejeitado de Darly, que tinha outras duas mulheres além de sua mãe, ele sempre negou ter cometido o crime, apesar das provas encontradas contra ele nas proximidades da casa do líder seringueiro. Segundo testemunhas, o pai desafiou Darci a assassinar Chico Mendes, o que acabou acontecendo.

Nilson Alves da Silva -0 delegado que atuou no caso, hoje diretor de uma penitenciária no Acre, não tinha formação em direito quando presidiu o inquérito. Apesar disso, era considerado um dos melhores policiais da época. Formado em letras, Nilson foi o responsável pelas prisões de Darly e Darci. O pai ficou durante vários dias escondido na mata até se entregar. 0 delegado atuou na apuração de outros dois crimes nos quais Darly estaria envolvido, como o do seringueiro lvair Higino. .

Adair Longuini - Paranaense, Longuini foi designado para atuar em Xapuri, uma das primeiras cidades onde trabalhou como juiz. Hoje desembargador e presidente do Tribunal de Justiça do Acre, ganhou fama internacional ao condenar Darly e Darci em 15 de dezembro de 1995, mesmo dia do aniversário de Chico Mendes. Longuini é considerado até hoje um dos juizes que sempre agiu de forma firme. Um exemplo foi que, apesar das várias ameaças, nunca pensou em desistir do processo que apurou a morte do líder seringueiro.

Márcio Thornaz Bastos - Na, época presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),Thomaz Bastos atuou na acusação de Darly e seu filho, ao lado do promotor do caso. Sempre teve ligação com a questão fundiária. Cerca de 16 anos depois da morte de Chico Mendes, tornou-se ministro da Justiça, escolhido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Atualmente fora do governo, mantém um escritório em São Paulo e faz júris gratuitos por uma organização não-governamental que mantém com outros colegas.

Marina Silva - A ex-seringueira Marina Silva se tornou amiga de Chico Mendes quando ambos atuavam na Central Única dos Trabalhadores (CUT) no Acre. Marina também era ligada à Igreja Católica, mas hoje é evangélica. Depois da morte do líder seringueiro,foi vereadora em Rio Branco, deputada estadual e senadora, cargo que ocupa hoje, depois de ter sido ministra do Meio Ambiente nos cinco primeiros anos do governo Lula. Até hoje, mantém uma linha de defesa ambiental no Congresso e é reconhecida internacionalmente.

CB, 14/12/2008, Brasil, p. 16

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