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"Ser fiel ao pensamento ameríndio já é uma viagem que nenhum ficcionista pode acompanhar"

Le Monde Diplomatique Brasil - https://diplomatique.org.br
Autor: TORRAL, André
02 de Ago de 2023

"Ser fiel ao pensamento ameríndio já é uma viagem que nenhum ficcionista pode acompanhar"
Confira entrevista com o antropólogo, historiador e professor André Toral, que publica HQ sobre Gonçalves Dias no bicentenário do autor

ENTREVISTA - ANDRÉ TORAL

Seham Furlan
2 de agosto de 2023

A região do baixio de Atins, na costa maranhense, é tida como um cemitério de embarcações, por seus bancos de areia e rochas cobertas por pouca água. Na madrugada de 3 de novembro de 1864, um veleiro saído da França naufragou no local, partindo-se ao meio. Boatos locais dizem que, na época de seca, ainda é possível ver a carcaça do Ville de Boulogne. Todos os tripulantes sobreviveram, exceto um: o poeta romântico Antônio Gonçalves Dias.

Essa é a cena que abre a HQ O Filho do Norte, do antropólogo, historiador e professor André Toral, publicada pela Veneta em 2023. Autor de A alma que caiu do corpo (Veneta, 2020) e Holandeses (Veneta, 2017), desta vez, Toral visita a vida do poeta romântico Gonçalves Dias, autor da célebre Canção do Exílio, no ano de seu bicentenário. Dias é uma figura marcada pela contradição, retratada em todas as suas faces por Toral no novo livro.

Os quadrinhos passaram a fazer parte da vida do pesquisador pouco tempo depois das outras atividades às quais se dedica. Na metade da década de 1980, ele publicou sua primeira história na revista Animal, chamada Pesadelos paraguaios, sobre a Guerra do Paraguai. Ainda que prefira não se considerar quadrinista, sua HQ Holandeses foi indicada ao Jabuti em 2018.

O processo criativo de Toral começa quando imagens dão voltas e voltas na cabeça, até que histórias se criem ao redor. Com profundo interesse pela iconografia de guerra, assim como pelo encontro dos brancos e não brancos no passado e presente brasileiro, o pesquisador gosta de imaginar a narrativa dos "perdedores", relegados às margens da história, retratando personagens indígenas, escravizados ou entregadores.

Em entrevista exclusiva ao Le Monde Diplomatique Brasil, Toral conta sobre a influência da pesquisa antropológica nos quadrinhos, o apagamento da ascendência indígena de Gonçalves Dias e a participação do poeta em expedições etnográficas no Alto do Rio Negro.

DIPLOMATIQUE - "Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá/ As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá." Qual era o Brasil de Gonçalves Dias?

ANDRÉ TORAL - O Brasil em que viveu G. Dias no século XIX tinha sua economia baseada na agricultura de exportação. Esta, por sua vez, baseava-se no trabalho escravo, pilar da economia nacional. Ao café, carro-chefe das exportações do período, seguem-se o algodão, o açúcar, couros e peles e a borracha. No Maranhão, e em Caxias especificamente, o plantio do algodão com mão de obra escrava era a base da economia local.

A monarquia brasileira do período pode ser descrita com um pacto tenso entre o rei e seus barões, no nosso caso entre o imperador e as elites rurais das diferentes províncias do Brasil, como diz o historiador José Murilo de Carvalho.

Dias escreveu trabalhos sobre povos indígenas brasileiros da região do Alto do Rio Negro e coletou material etnográfico na década de 1850. Como foi entrar em contato esse material?

Chamam atenção as pesquisas de G. Dias no Rio Negro: sem acesso à língua e sem uma metodologia de pesquisa, que só seria desenvolvida quase meio século depois, a viagem deixa a dever do ponto de vista de coleta de informações etnográficas. Quase nenhum dado sobre história, língua, rituais e estrutura social ou mesmo da situação de vida atravessada por essas populações aparece em seus resultados. Curiosamente, ao se deparar com petróglifos em pedras próximas à cachoeira de "Tacoatiara", a eles se refere como "garatujas", atestando seu desconhecimento e desatenção para registros de enorme significado religioso e histórico para os povos da região.

Talvez o maior resultado de sua expedição ao Rio Negro tenha sido a coleta de uma grande coleção de cultura material dos grupos indígenas da região, com a qual nunca entrei em contato, doada ao Museu Nacional do Rio de Janeiro e destruída no grande incêndio de 2018.

Como outros nomes da literatura brasileira, Gonçalves Dias estabeleceu-se no funcionalismo público para sobreviver. Quais foram as consequências disso para ele?
Boa parte, senão a totalidade dos autores do indianismo romântico brasileiro, eram funcionários públicos e faziam parte do aparelho burocrático do Estado. Depois de admitidos, os "pobres inteligentes" não podiam "matar a galinha dos ovos de ouro", ou seja, criticar a base da economia nacional: a agricultura de exportação baseada na exploração do trabalho escravizado. Isso faz com que toda essa geração de intelectuais, chamada de "geração vacilante" pelo professor Antônio Candido, se calasse sobre o principal tema social de seu tempo: a escravização dos negros e indígenas.
O Filho do Norte: Gonçalves Dias, o poeta do Brasil (Foto: Divulgação)

Em O Filho do Norte, conhecemos o relevo de São Gabriel da Cachoeira, no Alto do Rio Negro, o interior de embarcações antigas, uniformes militares, grafismos indígenas... Como é o processo de pesquisa para compor os detalhes quadro a quadro?

Os viajantes como Thomas Ender, Von Martius e Jean- Baptiste Debret deixaram um material visual importante para o Brasil do século XIX. Para a vida cotidiana do Rio e do Maranhão, me baseei neles; sobre a história, cosmologia e grafismos (os petroglifos) e informações etnográficas me baseei nos dados produzidos pelo Instituto Socioambiental (ISA). O processo de elaboração parece o de uma tese acadêmica: uma hipótese, consulta aos dados, conclusão. Só que as conclusões vêm na forma de um romance onde o autor - eu - se coloca de forma interpretativa diante das fontes que descrevem a vida de G. Dias para melhor apresentar os fatos que julgo definidores.

Você se coloca nas histórias por meio da voz narrativa?
Paul Ramos, um crítico de quadrinhos, uma vez me disse que nas minhas histórias o narrador é um personagem. Concordo com ele. Assim acabamos com essa história furada de narrador onisciente e onipresente, quase um deus que tudo sabe e pode. A minha voz é mais uma, que dialoga com os personagens e tem perplexidades com os acontecimentos. Eu, meus personagens e vocês que leem essa entrevista fazemos a história, mas não sabemos bem como...

A escrita de ficção tem algo em comum com a escrita etnográfica?
Sim e não. Muitas vezes, o relato etnográfico se confunde com a fantasia do observador, como no caso dos primeiros cronistas, como Hans Staden no século XVI, mas isso não é o ideal. O ideal seria a apresentação da visão de mundo do observado sem as categorias de pensamento do observador. Como essa isenção total não é possível, miramos no ideal. Como o historiador, o escritor de ficção edita seus textos para melhor apresentar o que considera o mundo tal qual ele existiu. O que separa o historiador ou o etnógrafo do ficcionista é o compromisso dos primeiros com aquilo que realmente aconteceu no caso do historiador e no caso do etnógrafo um relato honesto sobre o que viu. O escritor ficcionista não tem esse compromisso com a verdade.

Muitas de suas histórias, de alguma maneira, retratam o encontro entre brancos e não brancos. Esse interesse sempre te acompanhou?

Sim, em minhas histórias sobre indígenas, como não tenho lugar de fala - não sou indígena -, procuro sempre relatar o processo de contato entre sociedades. Desse ponto de vista, posso falar, porque conheço a história.

Enquanto antropólogo, quais os desafios de representar povos indígenas e seus sistemas de pensamento na ficção?

Ser fiel à realidade do pensamento ameríndio já é uma viagem tão forte que nenhum ficcionista pode acompanhar. É uma alteridade radical, uma visão de mundo muito diferente da minha como paulistano, classe média. Tento, com meus recursos limitados, me aproximar desse universo. Muitos dos grupos indígenas nos quais me baseei para criar minhas histórias se reconhecem e veem que tratei com respeito os fatos indígenas ao lerem minhas histórias. Sim, existem muitos e muitos indígenas que leem quadrinhos. Isso me deixa muito feliz; mais como antropólogo que como quadrinista. E eu não sou único nessa área, claro. Outros antropólogos/escritores, como Aparecida Vilaça e Pedro Cesarino, também exploram contemporaneamente essa região entre a antropologia e a ficção. Aliás, desde o romantismo de G. Dias no século XIX, passando pelo modernismo e o movimento antropofágico do início do século XX, a cultura de elite costumeiramente se alimenta do "popular" na busca do novo. Veja Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, Maíra (1976), de Darcy Ribeiro, ou Quarup (1967), de Antonio Calado, para citar de memória obras baseadas em pesquisas etnográficas. Então, como vemos, a ficção ameríndia na literatura e nos quadrinhos se baseia e se alimenta da etnografia desde muito tempo atrás. Agora, se a etnografia como método de pesquisa pode ou deve se alimentar da imaginação do criador ficcionista é uma questão em aberto, pelo menos para mim.

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