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Senhor Presidente,

Áurea Lúcia
Autor: Áurea Lúcia
12 de Nov de 2003

Senhoras e senhores parlamentares,

Em junho passado, na semana do meio ambiente, comentamos nesta tribuna sobre o estado de escassez e degradação socioambiental que se expande sobre a face da terra, sobretudo nos últimos cinqüenta anos. Mencionamos que, olhando o mapa do mundo, podemos hoje vislumbrar algumas manchas de concentração de recursos naturais vitais, em meio a grandes áreas devastadas e desertificadas.

Das poucas regiões que abrigam abundância de recursos naturais vitais ainda hoje, uma se destaca pela grandeza de seu território e a alta concentração de diversidade biológica e mineral: é a Amazônia. E, como todos sabem, a maior parte desse imenso oásis está em território brasileiro.

Chamo atenção novamente para o fato de que esse imenso oásis não é desabitado. Ao contrário, desde muito antes de a escassez e a exclusão se abaterem sobre o mundo, já estavam na Amazônia os povos indígenas, que hoje resistem, com caboclos e ribeirinhos, à avassaladora frente desenvolvimentista, ávida pelos recursos que restam.

Os chamados povos indígenas, segundo estudos recentes, têm sido os mais eficazes protetores dos recursos amazônicos. Recursos biológicos e minerais são muito mais concentrados ali que mesmo em parques nacionais e outras unidades de proteção ambiental.
Isso faz das terras indígenas da Amazônia a última grande reserva da abundância que um dia cobriu todo este Continente.

Por outro lado, não por força de grandes cataclismos naturais, mas por força e deliberação de ações e atitudes humanas, criamos e temos mantido o sistema que nos escraviza e esgota nossas fontes vitais.

Enquanto as terras ocupadas pelos povos indígenas da Amazônia, há milênios, ainda não submetidas a nosso sistema moderno, guardam a abundância que nos resta.

Será que não é este ainda o momento de todos acordarmos para a grandeza destes resultados, destas medidas e suas perspectivas?

Senhor presidente,

Senhoras e senhores parlamentares,

Se acordarmos em tempo, podemos mudar o rumo desta história. E o Brasil tem hoje as condições potenciais para liderar essa mudança no mundo - seja pela grandeza de seu território, seja pela riqueza natural que abriga, seja pela experiência e saberes de seus povos originais.

Hoje, trago esta reflexão novamente ao Plenário do Senado, em função dos clamores que vêm da Amazônia - e de fatos gravíssimos que se dão na minha querida Rondônia, em particular.

Ao contrário do que vulgarmente se imagina, a Amazônia não só é habitada, como é socialmente organizada a partir de si mesma, por força de uma história originalíssima, que agrega e articula o movimento social dos povos da floresta com o campo, as cidades e o mundo - consciente de sua importância nos destinos do país e da humanidade, como também das ameaças que lhes cercam.

Sobretudo nos últimos dez anos, multiplicaram-se iniciativas comunitárias em busca de um modelo de desenvolvimento específico para a Amazônia, baseado em suas vocações naturais, no manejo sustentável dos seus recursos e na gestão participativa das políticas públicas. Neste período, um novo modelo vem sendo efetuado com êxito por alguns setores públicos, resultando em relações saudáveis das comunidades amazônidas com os recursos da floresta.

No início de outubro - mais precisamente entre os dias 6 e 10 - reuniram-se em Brasília representantes de 512 entidades de diferentes segmentos socioambientais da Amazônia, que integram o Conselho Deliberativo da Rede GTA (Grupo de Trabalho Amazônico).

Na semana passada, reuniram-se centenas de entidades indígenas e aliadas, em Manaus, no I Fórum Permanente dos Povos Indígenas da Amazônia, promovido pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira - COIAB. Quem esteve presente àquele evento testemunha unanimemente o notável grau de organização e a admirável maturidade com que se desenvolveram os debates entre as lideranças indígenas em todas as fases do encontro.

Ambos os eventos, resultantes da permanente mobilização das entidades associadas, objetivam alertar, informar e debater com o governo e a sociedade brasileira sobre a necessidade de medidas urgentes para debelar conflitos que ameaçam a maior floresta tropical do mundo e suas populações tradicionais.

Quero aqui saudar de modo especial a participação do Subsecretário-Geral da Presidência da República no segundo dia de trabalhos do Fórum em Manaus. Depois de ouvir 43 lideranças indígenas, o representante do governo federal naquele evento comprometeu-se a encaminhar proposta no sentido de reunir ministros e lideranças, ainda este mês de novembro, de modo a pautar uma audiência das principais representações do movimento indígena com o presidente da República.

Encaminharei à Mesa os documentos finais do encontro da rede GTA e do I Fórum Permanente dos Povos Indígenas da Amazônia, para que sejam publicados e registrados nos Anais desta Casa junto com este pronunciamento.

No entanto, entre os muitos aspectos da realidade amazônica, o conjunto das organizações sociais da Amazônia acompanha com grande apreensão um conflito que recrudesce hoje em Rondônia e que registra toda sorte de resultados cruéis. Trata-se da situação do povo indígena Cinta Larga, em cujo território se encontra a maior jazida de diamantes do mundo - cercado pela cobiça capitalista, sob a absoluta ausência do Estado e a omissão dos setores públicos.

Há 40 anos, devido ao episódio que ficou conhecido como o Massacre do Paralelo 11, o Estado brasileiro foi, pela primeira vez, denunciado internacionalmente por genocídio. Em 1963, a ganância de mineradoras de diamantes reduziu os 5.000 Cinta Larga a cerca de 1.300 sobreviventes, em brutal ação de extermínio. Até hoje, os mandantes não foram punidos, enquanto testemunhas e denunciantes foram assassinados ou enlouqueceram.

Em janeiro deste ano, a área Cinta Larga encontrava-se invadida por mais de 5 mil garimpeiros em atividade, com efeitos dramáticos sobre as condições de vida e a cultura daquele povo milenar. A partir da posse do presidente Lula, no entanto, a garimpagem predatória e o saque aos recursos naturais na área Cinta Larga vinha sendo contida pela
ação competente de uma equipe da FUNAI, coordenada pelo indigenista Valter Blos, que retirou - pacificamente - os garimpeiros da Terra Indígena, com a participação direta dos próprios índios nas operações de fiscalização e controle de seu território, apoiados pela Polícia Florestal de Rondônia e da Polícia Federal. Também foi aprimorado o Plano Emergencial Pró-Cinta Larga - que, aprovado desde 2002 pelo Ministério da Justiça, ainda não foi implementado.

No entanto, desde setembro passado, a não-liberação de recursos aprovados para a efetivação do Plano Pró-Cinta Larga e para as ações emergenciais reanimou as investidas de exploração ilegal de recursos no território indígena. Com isso, ganham fôlego renovado a prostituição, a corrupção, o tráfico de armas e drogas, com crescentes registros de mortes - tanto de índios, quanto de garimpeiros e indigenistas.

Hoje, os garimpeiros e grandes empresas de mineração pressionam o governo pela liberação do garimpo e ameaçam re-invadir a área.

Por sua vez, o governador Ivo Cassol tem sido duramente criticado e parcialmente responsabilizado pelo agravamento da situação, devido às posições publicamente assumidas em favor da liberação da mineração na área Cinta Larga e outras atitudes - que, na avaliação das organizações sociais da Amazônia, favorecem e estimulam a violação aos direitos indígenas.

Senhor Presidente,

Senhoras e senhores parlamentares,

O mais preocupante em meio a tudo isso é que está em curso uma campanha covarde e criminosa, que utiliza todos os veículos de comunicação de meu Estado, divulgando informações mentirosas e caluniosas contra os índios Cinta Larga e os funcionários da FUNAI, que perseveram em defender a vida e os direitos constitucionais daquela comunidade indígena.

Segundo informes que nos chegam de Rondônia, os Cinta Larga estão sendo barbaramente acusados de participar de crimes que desconhecem - o que exige já, o fundamental suporte jurídico e o monitoramento de relatores de direitos humanos nacionais e internacionais para evitar outras violações de direitos indígenas, na região.

A campanha disparada contra os índios, confunde a opinião dos cidadãos de bem que vivem nos municípios em torno da Terra Indígena Cinta Larga. E vai mais além: alimenta e amplia o preconceito, a discriminação e a violência sobre as populações indígenas em geral, de todas as etnias, induzindo a população rondoniense a acreditar que os índios são um obstáculo ao desenvolvimento local. Pintados pela mídia local como assassinos cruéis, antropófagos primitivos e outros absurdos, essa campanha serve apenas para justificar um iminente genocídio, estimulado e patrocinado pelo rico mercado da mineração e da exploração madeireira - como há 40 anos se fez contra os Cinta Larga de Rondônia, como há 500 anos se faz neste País.

Em função da gravidade da situação, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados esteve em visita àquela região no mês passado e apresentou suas conclusões em audiência pública na semana passada. O relatório constitui-se em documento histórico, com o precioso registro de fatos tão cruéis quanto recorrentes, que vitimam o povo Cinta Larga.

Na próxima semana, o Relator Nacional dos Direitos Humanos Para o Meio Ambiente, Sr. Jean Pierre Leroy chegará a Rondônia, acompanhado de uma comitiva, constituída pela Procuradora Ela Vieko, do Ministério Público Federal; pelo Procurador de Rondônia, Francisco Marinho; um relator internacional da ONU; representantes de organizações indígenas da Amazônia e de Rondônia; o Diretor de Assistência da FUNAI, Sr. Antônio Apurinã, a indigenista Inês Hargreaves, e representantes da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas, presidida pelo Deputado Federal Eduardo Valverde (PT/RO).

Em apoio a estas iniciativas, deflagrou-se também uma campanha de apoio ao povo indígena Cinta Larga, que já conta com a adesão de milhares de cidadãos e de organizações da Amazônia e das demais regiões do Brasil, exigindo providências, em caráter de urgência, ao Estado brasileiro:

1 - Liberação e aplicação, pelo Ministério da Justiça, da totalidade dos recursos aprovados para custeio e investimentos previstos no Plano Emergencial Cinta Larga.

2 - Implementação das ações de proteção e apoio à população Cinta Larga, com segurança alimentar, incremento à produção de alimentos, diagnóstico e perícia técnica dos danos sociais, ambientais e econômicos provocados pela exploração ilegal dos recursos de seu território.

3 - Políticas públicas articuladas com prioridade para assistência à saúde e educação; assistência técnica; inventário e manejo de recursos naturais em favor da capacitação dos índios e suas organizações em atividades legais e sustentáveis.

4 - Articulação entre os serviços de inteligência dos órgãos de segurança pública em todos os níveis, o Ministério Público, IBAMA e FUNAI, no sentido de proteger a vida dos Cinta Larga e proceder à apuração dos crimes cometidos contra eles e seu patrimônio.

5 - Requerimento de informação e esclarecimentos, do Ministério da Justiça aos governos estaduais de Rondônia e Mato Grosso, em relação à exploração ilegal de recursos naturais e invasões a Terra Indígena, com a participação de agentes públicos estaduais.

6 - Cancelamento administrativo, pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), dos 479 requerimentos de licença para pesquisa, lavra e exploração mineral incidentes, total ou parcialmente, nos limites das quatro terras indígenas Cinta Larga.

7 - Determinação à Polícia Federal no sentido de apurar, localizar, identificar, avaliar e apresentar inventário pericial dos mais de 4.000 diamantes apreendidos desde 1999, pelas Polícias Federal, Civil e Militar.

8 - Termo de ajuste, leilão e doação - pelo DNPM - dos valores referentes ao total de recursos minerais apreendidos em investigações policiais, possibilitando a plena certificação de origem e a investigação de eventuais irregularidades.

9 - Termo de ajuste, leilão e doação - pelo IBAMA - dos valores referentes aos mais de 50.000 metros cúbicos de madeira originária da Terra Indígena Cinta Larga, devidamente certificada, em favor do Fundo Cinta Larga e do Programa de Etnodesenvolvimento Cinta Larga.

Senhor Presidente,

Senhoras e senhores,

A gravidade da situação dos Cinta Larga é também alvo de denúncia à Anistia Internacional, ao Fórum Permanente de Assuntos Indígenas da Organização das Nações Unidas e à Comissão Internacional de Direitos Indígenas da Organização dos Estados Americanos, como medida de resguardo dos direitos dos povos indígenas previstos na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

A garantia da segurança e da integridade dos índios Cinta-Larga e suas terras, ameaçadas de serem re-invadidas por garimpeiros, também motivou uma campanha que circula na Internet, desde o último dia 22 de outubro.

De minha parte, quero dizer que estarei integrando a comissão que acompanhará o Relator Nacional dos Direitos Humanos para o Meio Ambiente, entre os próximos dias 16 e 18. E que também tenho oficiado ao Ministro da Justiça e demais órgãos públicos responsáveis pela ação do Estado no tocante a esta questão, encaminhando documentos das comunidades e seus aliados, bem como requerendo informações atualizadas sobre as providências adotadas.

Portanto, quero concluir, conclamando meus nobres Pares nesta Casa do Congresso Nacional a que se engajem positivamente na Campanha em Apoio ao Povo Cinta Larga, de Rondônia; e que colaborem, junto a suas bases em seus estados, não apenas para evitar mais este genocídio na triste história do Brasil na relação com os povos originais deste território, mas também para colaborar com a crescente conscientização de nossa sociedade e de nossos governantes sobre a natureza socioambiental, política e cultural da Amazônia, sua gente, seus recursos e seu papel estratégico para o País e no destino de todos nós.

Era o que eu tinha a dizer.

Muito obrigada.

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