VOLTAR

Sem controle

CB, Política, p. 2-3
22 de Jan de 2007

Sem controle
Auditoria do TCU mostra omissão do governo na fiscalização de convênios com Ongs. Foram identificadas irregularidades em 54,5% dos R$ 150 milhões repassados

Lúcio Vaz
Da equipe do Correio

O descontrole e o desvio de recursos públicos apurados nos convênios que beneficiaram a Fundação Aproniano Sá (RN), revelados pelo Correio na semana passada, seguem um modelo praticado pela maior parte das entidades privadas ditas "sem fins lucrativos". Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) em 28 convênios em oito estados, executados num período de sete anos, num valor total de R$ 150 milhões, constatou que a omissão dos órgãos públicos na avaliação da qualificação técnica das entidades resultou na celebração de 15 convênios com entidades que não tinham condições operacionais para executar os projetos. Os recursos repassados para essas entidades somaram R$ 82 milhões, o que corresponde a 54,5% do total fiscalizado.

Os convênios tinham os mais variados objetivos, como saúde indígena, concessão de bolsas de estudo para formação de mestres e doutores, apoio ao menor em situação de risco social, construção de hospital, manutenção de unidade de saúde, conservação de recursos naturais e capacitação de jovens. A maior parte concentrou-se em três estados: Roraima (44,2%), Amazonas (14,5%) e Bahia (11,1%). Os recursos saíram dos cofres de cinco ministérios: Saúde, Educação, Trabalho, Ciência e Tecnologia e Esporte.

A avaliação técnica e jurídica dos planos de trabalho dos convênios são caracterizadas pela superficialidade e insuficiência. Muitas vezes, são meramente pro forma, quando não inexistentes. Segundo a auditoria, essas falhas colocam a administração pública em situações de risco, como "a celebração de convênios que não atendem à finalidade pública ou aos objetivos da ação governamental, pactuações por meio de instrumentos viciados, prejuízos ao erário pela malversação ou desvio de recursos públicos em conseqüência de custos inexeqüíveis ou superdimensionados, inexecuções, execuções parciais ou imperfeitas, seja por inexperiência, má-fé, falta de condições ou inépcia das entidades envolvidas".

Na execução financeira dos convênios, foram identificadas irregularidades como o pagamento de fornecedores em dinheiro, ausência de notas fiscais para comprovar despesas, aplicação de recursos em objeto distinto do pactuado, pagamentos antecipados e pagamentos indevidos de juros e multas, além de várias fraudes como a emissão de nota fiscal com data anterior a de autorização de sua impressão e pagamentos por mercadorias não entregues.

Tarefa difícil
O relatório de auditoria alerta que é necessário tornar efetivos os instrumentos de controle dessas entidades. Mas reconhece: "A tarefa não é fácil". Lembra que a CPI das ONGs concluiu, em 2002, que houve uma proliferação dessas entidades na década de 90, sem mecanismos de controle, principalmente quanto à utilização de recursos públicos. A comissão parlamentar apontou a Lei do Terceiro Setor (9.790/99), que regulamentou as organizações da sociedade civil de interesse púbico (Oscip), como um "pequeno passo" no esforço para regular as relações entre Estado e sociedade civil.

"Hoje, o que se vê é intolerável", diz o relatório final da CPI das ONGs. "Tudo leva a crer que a maioria esmagadora das ONGs evita qualificar-se como Oscip para poder continuar a beneficiar-se do inaceitável mecanismo pelo qual o poder público distribui recursos a essas organizações por meio de convênios, sem recorrer a edital público para selecionar os melhores projetos. Dá-se uma espécie de ação entre amigos. Há ONGs que sequer possuem sede ou endereço certo e conseguem viabilizar emendas orçamentárias, receber abundantes recursos financeiros do erário e aprovar prestações de contas sumárias no órgão repassador", constata o relatório.

Exemplos
Segundo o TCU a celebração do primeiro convênio com a ONG Urihi, que presta assistência à saúde dos índios Yanomani, em Roraima, no valor de R$ 8,7 milhões, apenas três meses após a fundação da organização, revela, no mínimo, "negligência com o trato da coisa pública e absoluto descaso com as normas que condicionam a celebração de convênios". Em carta enviada em 2005, a entidade admite, com todas as letras, que foi montada especificamente para firmar convênios com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Segundo a auditoria, a ONG não possuía "qualquer estrutura ou fonte de recursos própria para dar suporte mínimo às suas atividades. Ainda assim, foi contemplada, no período de 1999 a 2002, com a vultosa soma de R$ 33,8 milhões, para atendimento à saúde da população indígena no noroeste de Roraima".

A ONG Avante, que atua na área de educação, utilizou os recursos de três convênios celebrados em 2003 e 2004, no total de R$ 4,2 milhões, para terceirizar, sem licitação, diversas empresas de consultoria, e para pagar despesas de sua própria manutenção, como aluguel, vigilância da sede, contas telefônicas, manutenção de computadores, serviço de recepção. "Essa ONG não possuía condições técnicas nem estruturais para consecução dos planos de trabalho pactuados, tendo agido como mera intermediadora de recursos, além de utilizá-los em benefício próprio", concluíram os auditores.

A Associação Plantas do Nordeste (APNE), que celebrou três convênios com o Ministério da Ciência e Tecnologia, no montante de R$ 8,8 milhões, não executa, de fato, a atividade de pesquisa pactuada nos convênios. "Sua atuação é unicamente de gerenciadora de recursos financeiros, figurando, também, como mera intermediadora de tais recursos entre os órgãos concedentes e a instituição de pesquisa, a Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), uma autarquia do estado da Bahia", atesta o relatório de auditoria. A APNE não tem sede própria. Ocupa quatro salas cedidas gratuitamente pelo governo de Pernambuco, e conta com uma equipe de quatro funcionários, todos remunerados com recursos dos convênios.

Faltam fiscalização e transparência

Ausência de mecanismos de controle e de avaliação de resultados dos convênios assinados entre o governo e entidades privadas dificulta a adoção de medidas para identificar e evitar falhas na execução de projetos

Lúcio Vaz
Da equipe do Correio

Grande parte das irregularidades constatadas pela auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) é decorrente da falta de fiscalização da execução dos convênios e da falta de transparência na concessão dos títulos que autorizam o funcionamento das entidades sem fins lucrativos. Os auditores consideraram que a fiscalização é "insatisfatória ou não realizada". Foi observada a ausência de instrumentos de avaliação dos resultados dos convênios. "Os órgãos e as entidades da administração pública federal encontram-se despreparados e desestruturados em relação à fiscalização da aplicação dos recursos que repassam", constata o relatório da auditoria.

Também não foi constatada a existência de procedimentos de avaliação dos resultados em termos de benefícios, impactos econômicos ou sociais e no tocante à satisfação do público-alvo. "As avaliações técnicas da execução e atingimento dos objetivos dos convênios são superficiais, realizadas sobre relatórios apresentados pelas convenentes, sem evidência de averiguações mais aprofundadas quanto à consistência das informações recebidas. Baseiam-se tão somente nas informações corriqueiras das prestações de contas, sem suporte em relatórios de fiscalização ou acompanhamento local da execução do projeto", apontam os auditores. Eles concluem que a fiscalização frouxa reduz ainda mais a "já pouca expectativa de controle" por parte das entidades convenentes, além de impedir a adoção de medidas tempestivas para corrigir as falhas que podem resultar em inexecuções, malversação e desperdício de recursos públicos.

Falta publicidade
A concessão de títulos jurídicos pelo poder público às entidades sem fins lucrativos está associada a uma série de benefícios estatais, entre os quais a imunidade de impostos e isenções tributárias (renúncia de receita pelo Estado). Diante desse fato, entendem os auditores do TCU que a concessão, manutenção e cassação desses títulos devem ser objeto da mais ampla publicidade, "de modo a viabilizar a transparência necessária ao controle social". Assim, a auditoria procurou identificar como os órgãos responsáveis estavam divulgando esses fatos.

Constatou que o Ministério da Justiça, responsável pelos títulos de utilidade pública federal e de Oscip, e o Ministério do Meio Ambiente, responsável pelo cadastro nacional de entidades ambientalistas, já disponibilizam informações a respeito em seus sítios na internet. Já o Conselho Nacional de Assistência Social do Ministério do Desenvolvimento Social não disponibiliza informações na internet. E é justamente o conselho que mantém o registro e a certificação das entidades beneficientes de assistência social, que são contempladas com benefícios mais expressivos de renúncia de receita. Existem mais de 9 mil entidades registradas.

Os auditores também consideraram morosa a obtenção de informações a respeito da situação das entidades registradas e certificadas. Em 4 de julho do ano passado, solicitaram por e-mail informações sobre o registro ou certificação das entidades objeto da auditoria. Foi, então, solicitada a requisição das informações por meio de ofício. O ofício foi enviado em 13 de julho, com prazo para atendimento até 20 de julho. Na mesma data, a presidência do conselho solicitou prorrogação de prazo para fornecimento das informações. Até a aprovação da auditoria em plenário, em 8 de novembro, as informações não haviam sido prestadas.

ONGs negam irregularidades

Dirigentes das três organizações citadas na auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) negaram a prática de qualquer irregularidade na aplicação dos recursos públicos a elas repassados. O diretor técnico da Associação Plantas do Nordeste (APNE), Frans Pareyn, afirmou que a sua organização participou da execução de um dos três convênios: "Nos outros dois, o papel da entidade era mesmo a gestão dos recursos financeiros. Assim estava no edital do ministério. O objetivo nunca foi o dele mesma fazer as pesquisas. O objetivo era criar redes de pesquisas com a participação de várias entidades".

Pareyn disse que a entidade foi criada em 1999, sempre com o papel de articular as entidades de pesquisa, de acordo com proposta aprovada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Informou que a sede da APNE sempre funcionou na Empresa Pernambucana de Pesquisa Agropecuária, por meio de um convênio de parceria técnica. "Não há instrumento legal que impeça isso", sustentou o dirigente. Ele acrescentou que apenas um dos convênios reservou uma remuneração para a entidade (5%), para as despesas administrativas. "Nos outros projetos, não ficou um centavo para a APNE", concluiu.

A coordenadora do Núcleo de Educação da Avante, Maria Teresa Marcílio, afirmou que as conclusões da auditoria do TCU seriam, na verdade, "coisas antigas, já respondidas". Acusada de terceirizar empresas de consultorias, a coordenadora afirmou estar "absolutamente tranqüila". Disse que o primeiro convênio assinado pela sua entidade previa justamente um projeto de rede. A organização teria hospedado os consórcios formados. "Tudo foi de acordo com as recomendações do ministério. Nossa entidade tem credibilidade, recebeu vários prêmios pela sua atuação e tem, inclusive, parcerias com o Unicef. Se o seu jornal quer atirar pedra em quem trabalha e em quem não trabalha, indistintamente, muito bem".

Segundo da diretora da ONG Avante, Maria Célia Falcão, o Consórcio Social da Juventude (CSJ), parte do Programa de Estímulo ao Primeiro Emprego, faz a qualificação da gestão das entidades executoras do convênio. No relatório do TCU, a Avante é citada como tendo utilizado recursos para terceirizar contratações. O modelo do CSJ prevê justamente o trabalho em rede, com outras organizações, aproveitando-se o potencial de cada ONG parceira. Quanto ao pagamento de despesas da própria manutenção, devido à magnitude e peculiaridades do projeto, foi previsto no orçamento, parte integrante do convênio assinado.

A Avante foi citada pela falta de procedimento licitatório. De acordo com Maria Célia Falcão, a Avante realizou procedimento análogo, conforme previa o referido convênio CGU 031/2003, para a contratação de consultores especializados. Este convênio teve como objeto, inclusive, a formação de servidores da própria instituição CGU para atuarem no trabalho preventivo de orientação e capacitação de agentes públicos municipais para melhor aplicação de recursos públicos federais.

Yanomamis
Um dos diretores da Urihi, Cláudio Esteves de Oliveira, contestou as conclusões do TCU. Afirmou que, durante toda a década de 90, a execução direta das ações de saúde pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) no Distrito Sanitário Yanomami "foi extremamente mal sucedida, demonstrando-se incapaz de resolver a situação de calamidade epidemiológica dos yanomami". Ao mesmo tempo, uma pequena parcela da população Yanomami vinha recebendo a assistência diretamente da Comissão Pró-Yanomami (CCPY), por meio do repasse de recursos da Funasa. "Nesse modelo, todos os objetivos estavam sendo alcançados com melhora expressiva nos indicadores de saúde", comentou Oliveira.

Em meados de 1999, a Funasa convidou CCPY a expandir o seu programa de saúde para cerca de 50% da população do distrito. A Urihi foi fundada em setembro daquele mesmo ano e, pelo convênio com a Funasa, iniciou as suas atividades no campo em janeiro de 2000. "Ao longo dos seus 4,5 anos de atividades, a Urihi alcançou extraordinários resultados. A incidência de malária foi reduzida em mais de 99%. A mortalidade infantil foi reduzida em 65% e a tuberculose começou a ser diagnosticada precocemente", citou o dirigente.

Segundo ele, o convênio com a Funasa não foi renovado porque as coordenações regionais da Funasa voltaram a dirigir as operações nos distritos yanomamis, "limitando a ação das ONGs, basicamente, à contratação de recursos humanos, caracterizando uma irregular triangulação de pagamento de pessoal". Disse que todas as prestações de contas dos recursos recebidos foram aprovadas pela Funasa. E acrescentou que a legislação vigente à época da execução de convênios "era por demais omissa e subjetiva, permitindo hoje uma interpretação pelo TCU muito diferente, e conveniente aos interesses políticos atuais". Segundo ele, procedimentos administrativos que eram oficialmente recomendados são agora considerados como irregularidades, por não seguirem estritamente as formalidades da Lei das Licitações, "ainda que as ONGs não estivessem sujeitas à lei e não tenha havido, por parte da Urihi, desvio ou desperdício de dinheiro público". (LV)

"Precária e rudimentar"

A auditoria do TCU constatou que os procedimentos de licitação e de contratação adotados por algumas das 28 entidades investigadas são realizadas de forma "precária e rudimentar", não atendendo às exigências legais. Há casos de procedimentos realizados por mera formalidade e outros com indícios de fraude nos processos de aquisição e contratação. Em outros, nada consta dos processos de prestação de contas que comprove terem sido realizados quaisquer procedimentos de licitação ou análogos. Outros indícios de fraudes são o fornecimento de produtos por empresas que não são do ramo do objeto cotado, empresas abertas pouco antes da vigência do convênio e empresa fantasma, com endereço inexistente.

No caso dos convênios da Funasa celebrados com o Conselho Indígena de Roraima e com a ONG Urihi, a aquisição dos bens e serviços ocorreu mediante a realização de mero procedimento de cotação de preços, sem qualquer divulgação na imprensa oficial ou da praça e sem verificação da habilitação dos fornecedores. Nos convênios celebrados com a Coordenação da União das Nações e Povos Indígenas de Rondônia, norte de Mato Grosso e sul do Amazonas, "foram realizados procedimentos de cotação simulados com nove empresas, pequenas ou fantasmas, indicando possível direcionamento e cotações muito próximas, com preços sempre pouco acima da cotação vencedora, forjando competição", diz o relatório do tribunal.

Cotação
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira realizou cotação de preços para aquisição de equipamentos odontológicos, mas, de acordo com a planilha de preços coletados, os quatro itens cotados não foram adquiridos pelos menores preços obtidos. Em vez de adquirir cada um dos itens do fornecedor que ofereceu o menor preço, a convenente optou por adquirir todos os itens de um mesmo fornecedor, resultando num custo total a maior de R$ 3,4 mil.

A Urihi figura em outros casos de aquisição por valores superiores aos das próprias cotações que realizou. Na aquisição de quatro sistemas de energia solar, uma empresa apresentou preço de R$ 146 mil, mas foi preterida por outra que realizou a venda por R$ 164 mil. Em outro convênio, a entidade teria feito acréscimos ilegais nos objetos contratados, por meio de termos aditivos, ultrapassando em muito o limite permitido pela legislação. Um serviço de transporte aéreo inicialmente contratado em 300 horas de vôo foi acrescido, sem as devidas justificativas, para 1.200 e posteriormente para 1.600 horas. (LV)

CB, 22/01/2007, Política, p. 2-3

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.