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'Se é ali que decide, é ali que a gente tem que estar': a luta indígena por representação política

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Autor: Vitor Gilard
12 de Mai de 2019

"Um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como povo que é inimigo dos interesses do Brasil, inimigo dos interesses da nação e que coloca em risco qualquer desenvolvimento. O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil. Os senhores são testemunhas disso".

Enquanto discursava na Assembleia Nacional Constituinte, Ailton Krenak pintava o próprio rosto com uma tinta preta de jenipapo. Um gesto que, em em seu povo, significa luto. Mas ali, naquele momento, era luta. O líder indígena clamava por direitos que vieram a ser incluídos na Constituição de 1988. A conquista, inédita até então, foi fruto do trabalho de Krenak e de outras lideranças da época.

Hoje, mais de 30 anos depois, aldeias de todo o país deram origem a novos líderes. São indígenas que mobilizam as aldeias em busca da garantia de seus direitos. Um reflexo desse movimento foi visto na eleição de 2018, quando 133 candidatos indígenas concorreram ao pleito. O número ainda é pequeno, mas representa um aumento de 56% em relação ao registrado em 2014.

Sônia Guajajara é um dos nomes mais marcantes. No ano passado, ela se tornou a primeira candidata indígena à vice-Presidência na história do país, integrando a chapa de Guilherme Boulos, do PSOL. A candidatura marcou o novo momento da mobilização política dos povos indígenas.

Por muito tempo, eles acreditaram que a participação direta na política não era tão importante. Mas, de acordo com Sônia, esse entendimento mudou ao perceberem que a organização interna não estava sendo suficiente na luta por direitos:

"Então foi nesse contexto que a gente entendeu que era importante lançar as candidaturas, e a gente fez isso. Chamamos nossos povos e orientamos que era importante, sim, a gente se manter firme na resistência, nossa base organizada, mas também ocupar esses espaços dentro da política institucional, porque é ali que decide sobre nossas vidas. Então, se é ali que decide, é ali que a gente que estar".

A articulação política deu frutos e pela primeira vez, o Brasil elegeu uma mulher indígena como deputada federal: Joênia Wapichana foi eleita pela Rede no estado de Roraima. Essa foi só mais uma conquista na trajetória pioneira que marca sua vida.

Joênia foi a primeira indígena a se formar em Direito no país; a primeira a completar um mestrado em uma universidade dos Estados Unidos; e a primeira a defender um caso no STF. Também comandou a luta pela demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, que provocou intensas batalhas jurídicas e conflitos violentos.

A eleição dela devolve aos indígenas uma representação em Brasília - o que não acontecia desde 1983, quando o cacique xavante Mário Juruna ocupou uma cadeira na Câmara ao ser eleito deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro. Para Joênia, o racismo e a desinformação são as principais barreiras que impedem o Brasil de ter mais indígenas entre os parlamentares:

"O processo de colonização não nos deixa ocupar esses espaços, uma vez que existe muito racismo ainda, existe falta de informação em relação aos povos indígenas, falta de conhecimento dos seus direitos. E os povos indígenas sempre estão na luta para garantir o mínimo, que é a demarcação de suas terras. Não encontramos ainda oportunidade, espaços para que pudesse ter maior número de parlamentares indígenas no Brasil".

A atuação de Joênia colaborou para que parlamentares da Comissão Mista que analisou a reforma ministerial do governo votassem pelo retorno da Funai ao Ministério da Justiça - uma das principais reivindicações dos índios no governo Bolsonaro. A proposta ainda passa pela Câmara e pelo Senado.

Mas não é só em Brasília que as lideranças indígenas se destacam. No coração da floresta, nasceu o Movimento de Mulheres do Xingu, liderado por Watatakalu Yawalapiti. E já que na tradição indígena a Casa dos Homens é o lugar onde eles se reúnem para tomar decisões, o grupo decidiu criar a Casa das Mulheres, que tem a mesma proposta: ser um espaço que abrigue o debate feminino dentro da aldeia.

Watatakalu afirma que a iniciativa é um meio de evitar que o discurso delas seja apropriado por outras lideranças.

"O Movimento das Mulheres surgiu porque tinha muita gente falando por nós e fazendo coisas por nós, mulheres do Xingu. E isso começou a ficar muito sério quando começaram a dizer que nós estávamos a favor de coisas que vêm contra os nossos direitos. E o objetivo é proteger mesmo nossos direitos, fortalecer as mulheres, fortalecer essa política indigenista como um todo, e também fortalecer as lideranças tradicionais e as lideranças que estão vindo".

Mas assim como em qualquer sociedade, o movimento indígena também é marcado por uma pluralidade de visões, o que ficou muito claro no ano passado, durante a eleição. A polarização vista nas ruas também chegou às aldeias. Enquanto lideranças consolidadas se posicionaram contra Jair Bolsonaro, jovens líderes que surgiram no âmbito eleitoral militaram a favor dele.

É o caso de Ysani Kalapalo, que também vive no Parque Indígena do Xingu. Ela ficou nacionalmente conhecida no ano passado, durante a campanha, quando gravou um vídeo de apoio ao lado de Bolsonaro, na casa dele, no Rio de Janeiro.

Seu canal no Youtube conta com mais de 62 mil inscritos. Nos vídeos, Ysani fala sobre a cultura de seu povo e também sobre política nacional, com elogios ao novo governo e frequentes críticas aos indígenas de esquerda.

"Nem todos os indígenas são de esquerda. A maioria é, por falta de conhecimento mesmo, eu diria. Existem grupos de direita indígena. A maioria que inferniza o ouvido do índio, a maioria que ganha lucrando em cima do índio que tem pouco conhecimento é a esquerda, com ONGs, com movimentos... é essa galera de esquerda que acaba ganhando com isso".

Na época do vídeo com Bolsonaro, lideranças dos povos que vivem no Xingu reagiram ao apoio levado por Ysani ao então candidato e disseram que ela não representa o movimento indígena.

Já Silvia Waiãpi não só defende como faz parte do governo de Jair Bolsonaro. Integrante do Exército, ela comanda a Secretaria Especial de Saúde Indígena e ressalta que, até assumir o posto, o cargo só tinha sido ocupado por homens não-indígenas. Apesar disso, Silvia afirma que não foi nomeada por ser indígena, e sim por possuir capacidade técnica.

"Essa é a primeira vez que uma mulher ocupa o cargo de Secretário Especial de Saúde Indígena. É a primeira vez que uma mulher indígena também ocupa esse cargo. Isso é muito importante porque significa que nós, indígenas, temos capacidade para estar ocupando um cargo de grande escalão dentro do governo, mas o principal da minha nomeação não foi pelo fato de eu ser indígena, mas sim pela minha capacidade técnica".

A divergência política, no entanto, não se sobrepõe ao fato de que as mulheres tomaram a frente da mobilização indígena no Brasil. Seja em Brasília ou no Xingu; pela internet ou nas rodas de conversa; defendendo uma visão política ou outra, o protagonismo feminino chegou às aldeias e se tornou uma das principais marcas do movimento indígena.

Como lembra Sônia Guajajara, é o desdobramento de um movimento mundial: a luta política também é das mulheres.

"No mundo inteiro as mulheres estão avançando. No mundo inteiro as mulheres estão assumindo o protagonismo das principais lutas. E nós, mulheres indígenas, não estamos paralisadas, inertes a tudo isso. Nós também estamos acompanhando essa necessidade de as mulheres estarem assumindo os papeis de liderança, os papeis de também ser protagonista e, principalmente, assumir também a luta política".

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