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Sangue em nome da paz

CB, Brasil, p. 8
01 de Jun de 2010

Sangue em nome da paz
Primeira menstruação de jovem índia, momento considerado um ritual de passagem, impede remoção de tribos da Esplanada. A manhã foi marcada por pressão da polícia e confusão com manifestantes

Rodrigo Couto

A menarca - primeiro fluxo menstrual - de uma índia de 12 anos foi o argumento utilizado pela advogada Karla Pinhel, que defende os cerca de 300 indígenas acampados na Esplanada dos Ministérios desde janeiro, para impedir a remoção dos manifestantes de 12 etnias e solicitar a retirada dos cerca de 80 homens das polícias Federal e Militar e do Batalhão de Operações Especiais (Bope). Sensível à tradição, que prevê o isolamento da menina por sete dias em sua cabana, a juíza federal substituta da 6ª Vara do Distrito Federal Maria Cecília Rocha revogou um mandado judicial, emitido por ela mesma, e concedeu uma liminar para que o grupo permaneça na região central de Brasília sem o monitoramento da polícia.

Os índios, que montaram o acampamento em 2 de janeiro, exigem a revogação do Decreto Presidencial 7.056/09, que reestrutura a Fundação Nacional do Índio (Funai). O decreto, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, extingue 40 administrações regionais, 337 polos indígenas e substitui antigos servidores da fundação. No total, segundo o grupo, pelo menos 15 administrações serão fechadas ou reestruturadas em diversos estados do país. Entre elas, a da Paraíba e a de Pernambuco. Os indígenas também pedem a demissão do presidente da Funai, Márcio Meira. Mais 600 índios, de acordo com os manifestantes, estão a caminho da Esplanada dos Ministérios para reforçar a manifestação.

A primeira menstruação da pequena Márcia Regina Santana, 12 anos, foi percebida no sábado passado por seus familiares. De acordo com a tradição de sua etnia (guajajara), a menina que começa a menstruar deve ficar escondida por uma semana. "Nessa fase, ela só pode se alimentar de arroz e peixe e não pode ver ninguém. Na madrugada de domingo, ela vai participar de um ritual que marca a sua passagem da infância para um estágio mais avançado (adulto)", explicou o pai, Edvan Bento da Silva, 28 anos. A cerimônia da qual Márcia deve ser a protagonista vai incluir uma pequena corrida, de uma ponta a outra da Esplanada (do Ministério da Justiça até o da Saúde) e um banho com ervas. Concluído o processo, a garota deve seguir para o estado do Maranhão, onde vive seu grupo.

Lugar sagrado
Pela tradição dos guajajaras, o local onde a menina de seu grupo manifesta a menarca se torna sagrado. Baseada nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal - segundo os quais reconhecem costumes, línguas, crenças e tradições indígenas -, a advogada Karla pediu que a juíza federal Maria Cecília revogasse a liminar. O instrumento jurídico ordenava que os indígenas deveriam manter uma distância mínima de 1km e não poderiam impedir o funcionamento das atividades do Ministério da Justiça. Karla Pinhel, que diz trabalhar de forma voluntária para os indígenas, foi informada pelo Correio da decisão da juíza. "Ainda não estou sabendo. Acabamos de sair de lá (6ª Vara do DF). Havia uma grande pressão da Polícia Federal, que possuía integrantes dentro do gabinete da juíza, para eles desocuparem a Esplanada."

O antropólogo João Pacheco de Oliveira, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ficou surpreso com a decisão da juíza federal. "Ela teve grande sensibilidade. No geral, a menarca é um importante momento de reafirmação do sexo dos índios. Mesmo estando fora de sua casa, a menina tem direito a um ritual de iniciação tradicional. Se ela não cumprir, pode ser uma ofensa aos deuses", explicou Pacheco.

Negociação fracassada

Comemorada com dança e fogos de artifício, a decisão da 6ª Vara do Distrito Federal, que definiu a manutenção temporária dos manifestantes indígenas na Esplanada, foi precedida de momentos tensos. Desde o início da manhã de ontem, aproximadamente 80 policiais federais e militares, incluindo homens do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e da cavalaria, se preparavam para, a qualquer momento, cumprir a primeira decisão judicial, de retirar os índios do local. Eles se ajoelharam e pediram que os policiais atirassem. A polícia chegou à posição de tiro, mas recuou.

A proposta da representante do Ministério da Justiça Ana Patrícia Nogueira era a de que os índios seriam recebidos pelo ministro Luiz Paulo Barreto, mas, no mesmo momento da reunião, deveriam desocupar a Esplanada e acampar no Estádio Mané Garrincha. "Para se livrar da gente, chegaram a oferecer diárias em hotel cinco estrelas aqui de Brasília. Não precisamos disso. Queremos a revogação do Decreto Presidencial 7.056/09 e a demissão de Márcio Meira da Presidência da Funai", disse Lucia Munduruku, que veio do município de Jatobá (PE) para a ocupação em Brasília. "Se eles não nos atenderem, vamos interditar rodovias e importantes hidrelétricas", ameaçou.

Além de índios, servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), supostamente interessados em reaver suas comissões e apartamentos funcionais em Brasília, também apoiaram as 12 etnias acampadas no gramado central da Esplanada. Usando um cocar, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) tentou negociar com os policias que participaram da operação de retirada dos indígenas, mas não obteve êxito. (RC)

CB, 01/06/2010, Brasil, p. 8

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