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A sabedoria cristalizada

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
18 de Nov de 2005

A sabedoria cristalizada

Washington Novaes

Deveríamos prestar mais atenção - não apenas aos jovens rebelados europeus. Não nos faltam razões aqui para nos inquietarmos, no momento em que um ambientalista ateia fogo ao próprio corpo e morre, gesto extremo de protesto contra projeto do governo de Mato Grosso do Sul de implantar usinas de álcool nas bordas do Pantanal; na hora em que um bispo não encontra outro caminho a não ser a greve de fome ("até a morte, se necessário") para deter um desataviado projeto governamental de transposição do Rio São Francisco; no momento em que índios adolescentes se suicidam ou tentam suicidar-se, fazem pactos de morte, no Amazonas, porque a vida não faz mais sentido. E na hora em que, com o mundo assustado diante das mudanças climáticas e dos desastres que provocam, a Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO) das Nações Unidas aponta o Brasil como o maior devastador mundial de florestas (decisivas para o equilíbrio do clima), média anual de 31 mil quilômetros quadrados, mais que o território de Alagoas.
A situação dos grupos indígenas parece particularmente grave. Ainda existem mais de 40 grupos isolados na Amazônia, fora os mais de 200 já conhecidos no País. Mas há ainda 19 terras em processo de demarcação, 177 por demarcar, cada grupo com sua cultura, cada um com sua língua, seu conhecimento diversificado da realidade, suas formas peculiares de organização social e política - uma riqueza que nenhum outro país tem. Os índios, entretanto, que já ocuparam todo o território brasileiro (eram alguns milhões em 1500), estão perdendo a esperança de que o reconhecimento ocorra por vias legais.
Só nas últimas semanas, os caingangues de Santa Catarina - cujo direito à demarcação está reconhecido pela Justiça Federal - retomaram à força três áreas, da mesma forma que os caiová-guaranis de Mato Grosso; 40 famílias pataxós retomaram área ocupada por uma indústria de celulose, na Bahia; intensificaram-se os conflitos entre grupos indígenas do Xingu, depois que alguns chefes aceitaram acordo oferecido pelo governador de Mato Grosso - que inclui pagamento em dinheiro - para que concordem com a implantação de uma usina hidrelétrica no Rio Kuluene; no Rio Papagaio (MT), em lugar sagrado para os índios parecis, ergue-se outra barragem de hidrelétrica; índios craô-canelas, de Lagoa da Confusão, no Tocantins, tentam conseguir mandado de segurança para que sejam demarcadas as suas terras.
Secas devastadoras atingem a Amazônia e o Pantanal de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; 40% da Ilha do Bananal - uma das áreas fundamentais para conservação da biodiversidade - já foram devastados, diz um relatório. E faz pensar nos índios carajás, habitantes da região, gente de tanta sabedoria e tão sofisticada que chega a ter quatro linguagens diferentes - de homem, de mulher, de adulto com criança e uma quarta linguagem específica para a comunicação entre adultos e os jovens "diré", que, após um extraordinário ritual de passagem da adolescência, têm o corpo pintado de preto e durante pelo menos um ano têm de obedecer a qualquer adulto. Para aprenderem a ser humildes, ouvir a experiência.
No seu mito fundamental - talvez já tenha contado aqui -, os carajás dizem haver sido criados pelo seu herói mitológico, Kananciuê, para viverem no fundo da água como "aruanãs" (peixes) e serem eternos. Mas havia uma proibição: não podiam passar por um buraco no fundo das águas. Um dia, um aruanã desrespeitou a interdição, passou pelo buraco e saiu nas praias alvas, belíssimas, do Rio Araguaia. Encantado, voltou e contou à sua gente, que, incorporada, foi pedir a Kananciuê para viver na praia. "Mas vocês terão de deixar de ser imortais", advertiu Kananciuê. E eles aceitaram. Um mito que, segundo o saudoso psicanalista Hélio Pellegrino, cristalizava o que pode haver de maior na sabedoria humana - aceitar a morte para começar a viver.
Por essas e outras, disse um dia o velho chefe Karuta ao autor destas linhas: "Quando o marechal Rondon chegou aqui, o seu povo ria de nós e dizia que homem não usa cabelo comprido. Eu continuei usando. Agora são ocês que usam cabelo comprido e vêm aqui saber como é que índio vive, porque o mundo de ocês tá muito complicado."
Há poucas semanas, 148 países, inclusive o Brasil, aprovaram, contra os votos dos Estados Unidos e de Israel, a Convenção para Proteção da Diversidade de Conteúdos Culturais e Expressões Artísticas. Por reconhecerem que "os bens culturais produzidos no mundo são expressões da rica diversidade cultural; não podem ser tratados como simples mercadorias nem regidos pelas normas do livre comércio".
Signatário da convenção, detentor, no Ministério da Cultura, de uma Secretaria da Diversidade Cultural, o Brasil precisa, nas outras áreas de governo, dar conseqüência a esse documento. Reconhecer as terras indígenas que ainda não o foram, inclusive porque essas áreas são onde mais se preserva a biodiversidade. Criar estratégia que coloque recursos e serviços naturais no centro de todas as políticas. Fazer da biodiversidade (e do investimento em pesquisa) o foco de sua política para a Amazônia.
Não precisamos de uma nova discussão, como há 500 anos, para saber se índio tem ou não alma, pode ou não ser escravizado. Na crise civilizatória que atravessamos, precisamos abrir os olhos para o que nos podem ensinar culturas indígenas - na organização política e social, na convivência com o meio ambiente, na auto-suficiência pessoal. Não voltaremos a ser índios, nem temos competência para isso. Mas podemos aprender.

Washington Novaes é jornalista.

OESP, 18/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

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