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Ruralista, que bicho é esse?

Valor Econômico, Opinião, p. A15
Autor: VEIGA, José Eli da
30 de Set de 2014

Ruralista, que bicho é esse?
Conversa com próximo presidente deve incluir a criação de um verdadeiro imposto sobre a propriedade de terras

Por José Eli da Veiga

A bancada ruralista jamais poderá representar o agronegócio brasileiro. Basicamente por ser controlada por proprietários de terras subaproveitadas pela bovinocultura de expansão horizontal. No máximo conseguem rebocar alguns primos distantes das criações intensivas e alguns empresários agrícolas. Três segmentos que estão confinados a apenas um dos elos do complexo: o primário.
Ora, agronegócio é por definição o feixe de cadeias produtivas que exprimem as simbioses que as atividades agrosilvopastoris mantêm com atividades industriais que processam e distribuem até o consumo final (doméstico ou de exportação) mercadorias vegetais e animais, assim como com as que fornecem insumos modernos às fazendas, granjas, sítios e chácaras.
Os expoentes das atividades secundárias (indústrias) e terciárias (serviços) do agronegócio só muito ébrios podem abraçar bandeiras do ruralismo. Nem tanto por exprimirem interesses urbanos, mas principalmente porque suas empresas dependem essencialmente da rentabilidade operacional dos negócios em vez da rentabilidade patrimonial que é a razão de ser do parasitismo da pecuária bovina de baixíssima densidade e de irrisório desfrute.
Razão mais que suficiente para que nunca se tome pelo valor de face alguma coisa que envolva a mística etiqueta "agronegócio". Essa noção surgiu há sessenta anos nos EUA como importante ferramenta analítica, mas por aqui acabou virando um maroto disfarce de eficiência para jurássicas manobras especulativas do "terranegócio". Quem tem dúvida precisa rever os últimos capítulos da novela "Novo Código Florestal".
A lei no 12.651/12 revogou o "Novo Código Florestal", que era de 1965, sem que tenha colocado em seu lugar algo que poderia vir a ser outro código, a ser chamado de "novíssimo". Ao contrário, é uma lei tão parcial e tão impotente que só conseguiu criar dois imensos embaraços: quatro contestações do Ministério Público Federal sobre sua constitucionalidade, que aguardam a morosa apreciação do STF, mais a total perplexidade dos órgãos públicos, que, já lá vão dois anos, não conseguem aplicá-la.
Diante disso, só a velhinha de Taubaté não se pergunta quem sai ganhando com tamanho impasse. Com certeza não são as principais empresas do agronegócio, pois basta uma rápida consulta aos rankings publicados em agosto pela fecunda enciclopédia intitulada "Valor 1000" para perceber que elas só podem sair perdendo com os desmatamentos sem quaisquer critérios agronômicos, cometidos principalmente no processo de ocupação dos cerrados.
Ou será que tirariam proveito dessa devastação empresas como ADM, Alpargatas, Amaggi, Ambev, Aurora, Basf, Bayer, Brasil Kirin, Bunge, Camil, Caramuru, Cargill, Case New Holland, Coca-Cola Femsa, CRA, C.Vale, DuPont, Granol, Grendene, Heringer, Karsten, Klabin, Kimbley-Clark, LDC Brasil, Louis Dreyfus, Minerva, M. Dias Branco, Natura, Novartis, Nestlé, Paquetá, Pfyzer, Souza Cruz, Suzano, Syngenta, Unilever, Valefert, Vigor, Yakult ou Yara Brasil? Muito menos as da ala terciária do agronegócio, como o McDonald's ou o Pão de Açúcar, para só citar dois exemplos.
É verdade que não se pode dizer o mesmo de empreendimentos mais rurais, tipo: Agroindustrial Santa Juliana, Better-Beef, Biosev, BRF, Coamo, Café Iguaçu, Cia. Agrícola Colombo, Cocamar, Copersucar, Eldorado Brasil, Fiagril, Fibria, Itambé, JBS, Lar, Marfrig, Moinho Cearense, Odebrecht Agroindustrial, Raízen, Remuka do Brasil, Sococo, T ereos Internacional, Usina Santa Cruz, Usina São João, e V-Agro. Mesmo entre essas, o mais frequente é que partam de alguns quadros dessas firmas as simpatias pelo ruralismo, na contramão dos valores e responsabilidades assumidos por suas empresas. Principalmente aqueles que possuem grande patrimônio fundiário pessoal quase ocioso (só com gado).
Então, os ruralistas deveriam ser processados por uso indevido da imagem do agronegócio pela Abag- Associação Brasileira do Agronegócio fundada há mais de vinte anos pelo saudoso agrônomo Ney Bittencourt de Araújo, com a missão de renovar o lobby setorial. Contudo, essa entidade permanece deficiente por só exprimir uma aliança de dinâmicos segmentos agrícolas do Sudeste com uma pequena retaguarda do setor de insumos, por mais que ambos tenham procurado obter a adesão de corporações pós-porteira. Daí porque a Abag tenda a se resignar com os manda-chuvas da bancada ruralista, quase todos grandes predadores do Centro-Oeste, da Pré-Amazônia e do oeste baiano.
A consciência dessa anomalia só pode fazer com que o próximo presidente da República intensifique os diálogos com a nata empresarial do agronegócio para ao menos neutralizar as inevitáveis chantagens dos representantes do terranegócio, conhecidos por ruralistas. E o primeiro ponto da pauta dessas conversas deve ser a criação de um verdadeiro imposto sobre a propriedade de terras rurais que ponha fim ao meio século dessa escandalosa empulhação chamada ITR. O Brasil é a única democracia que ainda subsidia a valorização de patrimônios fundiários.

José Eli da Veiga é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de "Os estertores do Código Florestal" (Editora Autores Associados, 2013), escreve mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br

Valor Econômico, 30/09/2014, Opinião, p. A15

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