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Rota da transposição do São Francisco tem obras paradas

FSP, Brasil, p. A4
04 de Jan de 2009

Rota da transposição do São Francisco tem obras paradas
Moradores de onde passarão os canais com água cobram indenização e usam "disque-jegue'
Governo corre para entregar a maior parte do projeto em outubro de 2010, como o previsto, e afirma que construção será acelerada

Hudson Corrêa
Sérgio Lima
Enviados especiais a Pernambuco e Paraíba

Um ano e meio após ser iniciada, a obra da transposição do rio São Francisco, em trechos ao longo de sua rota, ainda se resume a estacas de madeira que, fincadas em meio à caatinga, marcam onde passarão os canais levando água a regiões secas. Por enquanto, carroças puxadas por jegues levam tambores com água barrenta a moradores dessa parte da obra.
Eles têm antenas parabólicas e podem chamar a carroça por celular, no serviço "disque-jegue", mas enfrentam racionamento de água para beber.
Nos dois trechos onde haverá captação da água no rio, em Cabrobó e Floresta, no sertão pernambucano, desde junho de 2007 o Exército abre canais e constrói reservatórios. É a parte mais adiantada do projeto.
Responsável pela transposição, uma das principais vitrines do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), o Ministério da Integração Nacional corre para substituir estacas por obras e entregar a maior parte do projeto em outubro de 2010, como previsto. O governo admite atrasos, mas diz que a construção será acelerada.
As obras têm dois eixos: o norte, que parte de Cabrobó, com 426 km de extensão, e o leste, de Floresta, com 287 km.
Ao longo desses dois ramais, 1.998 áreas serão desapropriadas, mas as indenizações de 1.509 ainda não foram pagas -628 proprietários não têm sequer títulos de posse.
Antes de pagar indenizações e avançar com a obra, é preciso regularizar as terras. Nesse processo, o governo já pagou R$ 30 milhões e deve desembolsar mais R$ 24,1 milhões.

Eixo leste
De 12 a 17 de dezembro, a Folha percorreu municípios na rota da transposição.
No povoado de Waldemar Siqueira, em Sertânia (PE), a fonte de água são açudes formados pelas chuvas e já com nível baixo. O local fica a 200 km de onde ocorrerá a captação no rio, em Floresta, no eixo leste.
Embora recentemente tenha começado a montagem do canteiro de obras próximo ao povoado, moradores conhecem a transposição mais pelas estacas de madeira, pintadas de azul, que marcam o traçado da obra.
O borracheiro Bartolomeu Moreno Santos, 52, afirma que há três meses viu serem fincados esses marcos no fundo de sua borracharia, à beira da estrada. Ele paga R$ 100 por mês por um sobrado em ruínas onde toca o negócio de poucos clientes. "Só espero eles falarem quando vão demolir para eu sair daqui. Chegam aqui, mas nunca falam comigo."
Uma das estacas está no quintal de Cícera Maria Conceição, 60. Ela diz não saber quando a obra chegará e nem quanto receberá de indenização. "Falaram em R$ 23 mil, mas isso foi há três anos.".
Enquanto espera, Conceição paga de R$ 25 a R$ 30 por semana a carroceiros que transportam água. "A pessoa tem que tomar um pouquinho e ficar lambendo o dedo."
O povoado possui casas de tijolos com antenas parabólicas, ruas pavimentadas, posto de gasolina, comércio, prédio de escola, e seus moradores usam celulares de modelos novos. O acesso a esses bens e serviços contrasta com o racionamento de água para beber.
Para lavar roupas e pratos e tomar banho, moradores contam com a barrenta dos açudes. Água potável só nos reservatórios da prefeitura, que, com máquinas, tira o excesso de sal.
Funcionário do município, Severino Paulino, 51, passa cadeado nas torneiras do reservatório. A distribuição só ocorre às segundas, às quartas e aos sábados, limitando-se, nesses dias, a 40 litros por casa.
Paulino exibe à reportagem um cartão no qual se leem "disque-jegue" e o número de seu telefone. Ele é um dos que entregam tambores com água.
Thiago Soares de Araújo, 20, trabalha com isso desde criança. Ganha R$ 4 por tambor entregue em casa. Chega a fazer oito entregas por dia. Além dele, outros 11 carroceiros recorrem ao açude. Araújo diz que muita gente, sem alternativa, bebe a água barrenta. Quando a Folha estava no açude, Ítalo de Souza Neves, 11, enchia um garrafão de cinco litros. Segundo ele, para lavar pratos.
"Se Deus quiser sai [a transposição]. Desse projeto, ouvi falar depois de Lula, que é nordestino, pernambucano, [se eleger]. Será que o [próximo] presidente vai acabar essa obra?", pergunta Antônio Alves Rocha, 54, que cuida de outro reservatório e cobra R$ 0,10 por 20 litros de água potável.
No trecho final do eixo leste, em Monteiro (PB), o canal deve passar nas propriedades de Antônio Ferreira dos Santos, 69, o Nego Gringo, e de José Teodoro da Silva, 71, que cresceram na região do cariri paraibano.
Numa manhã de sol forte, Silva puxava pela BR-110 o jegue atrelado à carroça com um tambor abastecido a 1 km da sua casa. Na estrada, cruza uma linha branca, pintada no asfalto, que indica a rota da obra.
Nego Gringo e Silva dizem que ainda não foram procurados para tratar de indenização. "A obra vem mesmo?", pergunta Silva à reportagem.
Segundo o governo, há estudo para mudar parte da rota da transposição em Monteiro. Por essa razão, o processo de indenização está suspenso.

Eixo norte
Em Salgueiro (PE), a 80 km do ponto em Cabrobó onde haverá a captação do canal norte, o agricultor José Santiago dos Anjos Neto, 53, reunia duas pilhas de tijolos para construir alpendre e parede para sua casa, na comunidade de Uri de Baixo, quando um funcionário do governo "passou e disse: "Se eu fosse o senhor, esperava um pouco por causa da transposição'". Quase quatro anos depois, a pilha de tijolos apodrece -e as obras não chegaram.
Os sitiantes do local esperam ansiosos, pois o povoado será transferido para outro lado de uma rodovia, dando espaço para um reservatório. Na espera, muitos deixaram de plantar.
José Bernardino dos Santos, 84, está desconsolado. "Para os mais velhos, é como uma morte ter que deixar a terra", afirma.

Obra não alivia falta d'água na zona rural
Projeto do governo não prevê sistema de bombeamento da água transposta para canais para levá-la ao interior dos municípios
Apesar de serem cortadas pelo São Francisco, cidades do semiárido de MG e BA sofrem com a estiagem e não têm acesso a água doce

Eduardo Scolese
Enviado especial a Serra do Ramalho (BA) e a Itacarambi (MG)

No semiárido, ter água no município não significa necessariamente usufruí-la, como revelam as realidades de Serra do Ramalho (BA) e de Itacarambi (MG). Esses municípios são cortados pelo rio São Francisco, mas habitantes da zona rural sofrem com a falta d'água.
No município baiano, a 859 km de Salvador, por exemplo, todos os dias moradores de diferentes povoados se organizam em filas para esperar uma água que nem sempre chega.
Outros, de localidades mais distantes, têm a situação mais complicada: como a água do São Francisco não chega nem de vez em quando, são obrigados a beber a água salgada (com calcário) dos poços artesianos.
Em Itacarambi (a 673 km de Belo Horizonte) a realidade é parecida. Comunidades da zona rural não recebem as águas do rio. "Teria de haver um investimento muito alto. A população não morre de sede, mas perde o gado e a produção no período de estiagem", afirma a coordenadora local da Defesa Civil, Maria Oliveira.
Quando fala na transposição, o governo se refere à abertura de dois grandes canais para abastecer rios, açudes e adutoras nos Estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, onde vivem 12 milhões de pessoas. Não há, porém, nenhum plano traçado para tirar a água desses canais e levá-la para o interior dos municípios e do próprio Estado.
Os exemplos vistos em Serra do Ramalho e em Itacarambi indicam que, mesmo que essa água transposta passe dentro do município, ela não serve de nada, caso não tenha um sistema local de adutoras largas e com bombeamento possante para tirá-la dos canais e distribuí-la aos habitantes da sede e dos povoados.
O rio passa desde sempre por Serra do Ramalho e até hoje não há uma solução para a falta d'água para os moradores locais. No ano passado, por exemplo, o município também cortado pelo rio Corrente passou seis meses em estado de emergência por conta da estiagem.
Renice dos Santos, 40, casada e mãe de três filhos, vai pelo menos duas vezes por semana ao chafariz do povoado em que vive para encher quatro galões de água, dois com 50 litros e dois com 30 litros. "Eu chego às 7h, mais ou menos. Se a água não chegar na mangueira até as 10h, vamos todos embora, porque nesse dia não vem mais."
A água só chega ao chafariz em que está Renice, caso não se esgote no caminho. Puxada do rio, ela abastece o centro da cidade, e o que sobra é distribuído para 14 dos 19 povoados, chamados de agrovilas.
A partir do centro, a água segue por uma tubulação menor. Distribuída em sequência, ela só chega ao chafariz da Agrovila 4, por exemplo, se não se esgotar na Agrovila 6, onde está Renice e o lavrador aposentado Geraldino Albuquerque, 79. "Só não venho pegar água todo o dia porque eu não aguento [o peso do galão de 30 litros, puxado num carrinho de mão."
Não há tubulação para quatro das agrovilas. "Para eles não têm [distribuição]. O jeito pra eles é tomar água salgada mesmo", afirma João Neto Silva, 45, diretor do órgão da prefeitura que distribui a água.
A água salgada, dizem, não é indicada nem mesmo para regar plantas. "A gente bebe do poço mesmo. [Políticos] prometem, mas nunca fazem nada", diz Ilma dos Santos, 21, que vive na Agrovila 17, onde a água do São Francisco não chega.
Quem quer beber água doce nessa agrovila precisa pagar R$ 10 para um morador local que recolhe os galões do interessado e busca água todos os dias na Agrovila 6.
Serra do Ramalho foi criado nos 70, tendo como pioneiras as famílias desalojadas pela barragem de Sobradinho, no norte baiano. O município tem 2.668,30 km2, o equivalente à soma das áreas de São Paulo, Campinas e Guarulhos.

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A propaganda oficial de que 12 milhões de nordestinos terão água assegurada com a transposição de parte das águas do rio São Francisco não pode ser levada ao pé da letra, de acordo com a CPT (Comissão Pastoral da Terra).
"É uma contradição que denunciamos. No Vale do São Francisco há municípios que não têm sistema de abastecimento urbano", diz Roberto Malvezzi, pesquisador da CPT.
Procurado, o Ministério da Integração Nacional informou que, até 2010, investirá R$ 300 milhões no programa Água para Todos, na implantação de projetos de abastecimento de água potável em Minas Gerais e em quatro Estados do Nordeste (AL, BA PE e SE).

Transposição pode irrigar maconha em Pernambuco

Dos enviados a Cabrobó (PE)
e Salgueiro (PE)

Narcotraficantes que plantam maconha em Pernambuco vão desviar água dos canais de transposição do rio São Francisco para irrigar as lavouras da droga, caso a ação policial na região não seja ampliada.
Essa é a avaliação do delegado da Polícia Federal Cristiano de Oliveira Rocha, em Salgueiro (PE), e do subcomandante da PM em Cabrobó (PE), capitão Isaque Barbosa.
Os dois eixos da transposição vão passar pelo chamado polígono da maconha, em Pernambuco, onde a droga é cultivada em meio à caatinga.
O lado positivo é que, segundo o delegado, as obras da transposição, gerando vagas de trabalho, diminuíram o número de pessoas que buscam o cultivo da droga como emprego.
Em 2008, a PF intensificou as operações. As estatísticas apontam que no ano passado foram cortados 2.131.687 pés de maconha em Pernambuco, contra 294.716 durante 2007 e 702.598 em 2006.
"A maconha tem de ser combatida através da erradicação, acabando com as plantações", diz o delegado, que espera reforço para impedir que, depois de pronta, a transposição sirva a traficantes. "Não é que vão desviar toda a água do canal, mas vão fazer jacarés [ligações clandestinas para pequenos desvios]", diz o capitão da PM.
O coordenador-geral de fiscalização da transposição, Frederico Fernandes de Oliveira, disse que o consórcio de empresas que vai operar os canais, após a conclusão da obra, terá sistemas de segurança.

FSP, 04/01/2009, Brasil, p. A4

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