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Roraima tera reserva homologada

JB, Pais, p.A3
10 de Jan de 2004

Roraima terá reserva homologada
Thomaz Bastos não cede a pressões e decide pelo remanejamento de produtores rurais e município no interior de área indígena

Romoaldo de Souza
BRASÍLIA - O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, considera ''irreversível'' o processo de homologação da área indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e promete para este mês o decreto que transfere 1,75 milhão de hectares de terra para um contingente de 12 mil índios que pertencem às etnias macuxi, wapixana, tauarepang, patamona e ingariló, distribuídos por 152 aldeias.
Thomaz Bastos anunciou a criação de um comitê de transição ''a fim de dar condições ao governo para a homologação da área''. E garantiu:
- Nada será feito e ninguém será desalojado, nem arrozeiros, nem fazendeiros, nem pequenos produtores, antes que o governo federal solucione a situação deles.
Depois de ter passado toda a tarde de ontem reunido com o governador Flamarion Portela, a bancada do Estado de Roraima no Congresso Nacional e dirigentes do Incra, da Funai e da Polícia Federal, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, encontrou-se com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando foi batido o martelo e anunciada a criação do comitê de transição. O grupo será formado por técnicos do Ministério da Justiça; Funai; Casa Civil da Presidência da República; Incra; e governo estadual.
As medidas que Thomaz Bastos anunciou serão estudadas na próxima semana. Entre elas está a proposta do senador Romero Jucá (PMDB-RR), pedindo a transferência de 3 milhões de hectares - que hoje, como todo o Estado, são de domínio da União - para o governo de Roraima.
Segundo a deputada Maria Helena Rodrigues (PPS), a criação do comitê, conforme anunciou o ministro da Justiça, não resolve o problema dos arrozeiros.
- Não sabemos que áreas serão essas. Os agricultores temem que o governo faça a transferência para regiões onde a monocultura do arroz seja inviável - disse Maria Helena.
Desde meados dos anos 90, a cultura de arroz vem se intensificando na área a ser atingida pelo decreto de homologação. Hoje, 40% da produção agrícola do Estado de Roraima, perto de 84 mil toneladas de grãos, são produzidas na área. Dados da Fundação Nacional do Índio (Funai) indicam que 67 fazendeiros ocupam áreas rurais nas quatro vilas de Uiramutã, Água Fria, Socó e Mutum, antigos garimpos que foram transformados em povoados.
- Boa parte deles ilegalmente para dar noção de cidade - conforme denunciou o vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Saulo Feitosa.
Localizada a noroeste do Estado, a Raposa Serra do Sol é alvo de um conflito que se arrasta deste o início do século passado, quando em 1917, o governo do Amazonas destinou parte da reserva para usufruto dos macuxi e jaricuna. Dois anos depois, o extinto Serviço de Proteção do Índio (SPI) iniciou a demarcação do território que, simultaneamente, passou a ser invadido por fazendeiros.
Vários grupos de trabalho foram formados desde o governo do general Ernesto Geisel, até que, em 1996, o então presidente Fernando Henrique declarou ''posse permanente dos povos indígenas'' a área agora prestes a ser homologada pelo presidente Lula.
Na queda de braço travada entre a bancada do Estado no Congresso e as organizações indigenistas, os parlamentares sairam perdendo. Eles defendiam a homologação fracionada, ou seja, excluir das terras indígenas as áreas com produção de arroz, as estradas, vilas e a sede do município de Uiramutã, criado em 95. Indigenistas, missionários e a Funai sempre defenderam a demarcação contínua.
Depois de quatro dias de bloqueio, as rodovias de Roraima foram liberadas ontem pelos fazendeiros que protestavam contra a homologação, após a negociação com o ''gabinete de crises'' criado pelo governador na quarta-feira.
A liberação ocorreu por volta das 12h (hora local, 14h em Brasília), poucas horas antes da reunião do governador Flamarion Portela em Brasília. Isso também reforçou a suspeita de que Flamarion estivesse articulado com os protestos, o que ele nega.
- Ele está incentivando as manifestações, junto aos fazendeiros - disse Jacir José da Silva, coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), que defende a homologação.
O secretário de Segurança Pública, Francisco Sá Cavalcanti, disse que houve apenas um trabalho de convencimento junto aos manifestantes.
- Mostramos a eles que o objetivo maior, chamar a atenção do Brasil para a situação de Roraima, já tinha sido atingido, tanto que o governador ia lá conversar com o presidente em Brasília - disse.
Mesmo com a liberação das rodovias, até o final da tarde não havia gasolina e álcool na maioria dos postos de Boa Vista. O abastecimento pode ser normalizado no fim de semana. Apesar da falta de alguns produtos (presunto, salame), a população não sofreu com desabastecimento de alimentos.
Demarcação divide indígenas da região

Macedo Rodrigues
O anúncio da demarcação ''contínua'' da reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima, encontrou forte resistência entre os macuxis, uma das seis etnias indígenas presentes naquela área de 1,75 milhão de hectares, que corresponde a 7,7% do Estado. Praticantes da agricultura há pelo menos 10 gerações, eles serviram como mão-de-obra dos fazendeiros que ali começaram a se instalar (a grande maioria de maneira ilegal) há 10 anos.
Em troca, os índios usufruíram de bens de consumo, energia elétrica, moradia, entre outras vantagens oferecidas aos habitantes das vilas de Uiramutã, que a homologação fará sumir do mapa. Por isso, os macuxis foram os primeiros aliados dos produtores rurais - plantadores de arroz, soja, milho e criadores de gado - nos bloqueios de estradas, invasões do patrimônio público e até mesmo no seqüestro dos três religiosos da missão na aldeia de Surumu.
Há ainda o grupo político, que também vem se manifestando contra a homologação. À frente, está o governador Flamarion Portela, afastado do PT e fragilizado pelo envolvimento no esquema dos Gafanhotos, de funcionários fantasmas do Estado. Para seus opositores, o governador teria encontrado no episódio uma bandeira para angariar alguma simpatia da população à sua permanência no cargo, ameaçada por iminente processo de impeachment.
Como Flamarion, outros políticos vêm difundindo o argumento de que a reserva impede o desenvolvimento do Estado. Mas não se pode ignorar que os rizicultores são uma força econômica na região e grandes financiadores de campanhas eleitorais. Por isso, estariam encontrando apoio também entre parlamentares não necessariamente alinhados a Flamarion, como o senador Morazildo Cavalcanti (PPS), os deputados federais Luciano de Castro (PL-RR) e Pastor Frankembergen (PTB), entre outros.
Os macuxis se dizem maioria da população indígena local. Mas os funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai) e os membros do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) garantem que as outras cinco etnias da reserva - bem menos afáveis em suas relações com o homem branco e grandes defensores da homologação - correspondem a 80% dos índios envolvidos no imbróglio.
Esse contingente, de acordo com a Funai, quer a retirada do homem branco para combater a poluição da reserva, o crescimento de conflitos inter-raciais, além da disseminação de doenças, prostituição e alcoolismo no rastro do progresso.
Ao todo, em Raposa/Serra do Sol vivem 19 mil pessoas, sendo 7 mil não-índios. Destes, apenas 600 estariam ocupando as terras legalmente e, portanto, cadastrados para serem reassentados pelos dados da Funai. A rigor, 6.400 pessoas seriam removidas da região e perderiam tudo o que têm, sem ressarcimento. Originou-se daí a radicalização dos protestos.

''Só um helicóptero''

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Diocese de Roraima e os Missionários da Consolata divulgaram uma nota ontem, estranhando que os três missionários seqüestrados tenham sido libertados sem qualquer negociação ou mesmo pressão de policiamento federal ou militar.
De acordo com a nota, a liberação ocorreu apenas pela presença de ''um helicóptero do governo do Estado, com representantes do mesmo e um dos integrantes indígenas responsáveis pelo seqüestro''. A Polícia Federal só teria chegado quando os missionários já tinham seguido para Boavista, a bordo da aeronave.
Os religiosos lembram ainda que as exigências anteriores dos seqüestradores davam conta de que a liberdade só seria possível com a presença da imprensa e após um exame de corpo delito feito no próprio local. ''Nada disso aconteceu'', diz o texto. ''Daí ficam as interrogações sobre as razões imediatas que teriam levado a tal desfecho.''
Ainda segundo a nota, o depoimento de um dos missionários seqüestrados, posicionando-se contra a homologação em área contínua, foi prestado sob coação.
- Fui coagido a ler a nota veiculada pelos meios de comunicação. Minha posição é pelo respeito à Constituição brasileira e às decisões judiciais que garantem aos índios de Roraima o direito à sua terra, Raposa Serra do Sol, homologada em área contínua - reclamou ontem o missionário espanhol Juan Carlos Martinez.
Depois de serem soltos, Juan Martinez, o padre brasileiro Ronildo Pinto França e o padre colombiano Cézar Avellaneda, membros do Instituto Missão Consolata, fizeram exame de corpo delito para averiguação de suas condições físicas.
O trecho final da nota divulgada ontem pelo Cimi, pela Diocese de Roraima e pelos Missionários da Consolata exige a identificação dos responsáveis pelos atos.
''Nos alegramos com a liberdade dos nossos missionários, apoiando todas iniciativas tomadas para reparar os danos físicos e morais causados, e exigimos a pronta identificação dos responsáveis por estes atos criminosos. Boa Vista-RR, 9 de janeiro de 2004.''

JB, 10/01/2004, p. A3

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