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Roraima terá 1o júri popular indígena

Folha de Boa Vista (Boa Vista - RR) - www.folhabv.com.br
Autor: Luan Guilherme Correia
16 de Abr de 2015

Dois réus da etnia Macuxi acusados de tentativa de homicídio, serão julgados no dia 23 deste mês, em um júri popular que será realizado na Comunidade Maturuca, localizada na Região das Serras, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Em todo o país, este é o primeiro caso do judiciário a ser julgado desta forma. Outro fato inusitado é que o caso envolve uma suposta ação do Canaimé, uma entidade do mal temida culturalmente pelos povos indígenas que habitam os lavrados nas fronteiras com a Venezuela, ao Norte, e a Leste, com a Guiana.

A sessão, que deve reunir cerca de 300 lideranças de 72 comunidades indígenas da região, será presidida pelo juiz titular da Comarca de Pacaraima, Aluizio Ferreira. Segundo ele, o ato, que estava sendo elaborado há mais de um ano, foi um acordo entre as comunidades. "O júri é um ato específico de investigação e, em razão de ser um crime contra a vida, seria levado a julgamento na Comarca de Pacaraima, com jurados que compunham o município, ou seja, brancos. No entanto, por se tratar de um crime que ocorreu dentro da comunidade, entramos em um acordo com as lideranças e faremos lá [Raposa Serra do Sol]", disse.

Para o julgamento dos réus, o júri também será composto exclusivamente por indígenas. Ao todo, 30 jurados foram convocados para a sessão, sendo 25 titulares e cinco suplentes. Destes, sete serão sorteados para compor o júri. "Serão jurados indígenas, pares julgando pares. A intenção é dar ao julgamento uma afetividade e legitimidade, de uma forma diferenciada com a idéia central do ato", explicou o magistrado.

Para o julgamento, todos os atos formais seguiram o procedimento legal previsto no Código de Processo Penal. As lideranças indígenas lidam com a experiência inovadora como uma forma de unir as comunidades da região. "Temos compromissos com a região e suas lideranças. Vamos cumprir o que está escrito, com o acordo tomado por nós, em uma assembleia, e com isso esperamos alcançar nossos objetivos", relatou o coordenador da Região das Serras, Zedoeli Alexandre.

Conforme o juiz do caso, o ato é uma forma de fazer com que as comunidades tenham uma maneira de fazer justiça. "É uma forma diferente de se olhar e resolver os conflitos. Não sei se isso será seguido por outros magistrados, mas creio que é importante para que coloque a questão sobre a reflexão da sociedade e do mundo jurídico", pontuou.

Defesa vai alegar ação do espírito do mal

Os dois réus, um de 27 e outro de 35 anos, que não tiveram a identidade revelada, e a vítima são da etnia Macuxi e moradores da Região das Serras, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. O crime a ser julgado - de tentativa de homicídio - está descrito no artigo 121 do Código Penal Brasileiro, ocorrido no dia 23 de janeiro de 2013.

A alegação dos advogados de defesa dos réus é que eles cometeram o atentado justificando que a vítima seria um Canaimé, considerado pela crença indígena um espírito do mal. No processo, a vítima chegou a insinuar que teria matado um irmão dos acusados, que foi encontrado morto com características de ter sido vítima de um Canaimé.

Os dois acusados chegaram a ser presos em flagrante no Município de Uiramutã, entrada para a Raposa Serra do Sol, e foram encaminhados para a Penitenciária Agrícola do Monte Cristo (PAMC), na zona rural de Boa Vista, onde após alguns meses ganharam o direito de aguardar o julgamento em liberdade.

O juiz afirmou que a justificativa dos acusados é de que a vítima teria matado dois membros da mesma comunidade onde sofreu o atentado. Segundo o magistrado, a convicção cultural dos acusados por parte da defesa já era esperada pelo Judiciário. "Os réus tentaram matar a vítima sob alegação de que ele seria espírito do mal. Como isso é uma crença que faz parte da cultura indígena, provavelmente será utilizada como justificativa." ressaltou o magistrado. (L.G.C)

Canaimé tem inclusive estudo científico

Esse julgamento envolve a questão cultural por causa da alegação de que haveria uma motivação do crime por causa do Canaimé, uma entidade do mal que faz parte da crença dos índios de Roraima, Guiana e Venezuela. O tema já suscitou debate acadêmico e estudo científico.

Existem teses que analisaram fatos semelhantes, como o "Caso Canaimé: em acerca de um homicídio com motivação cultural e sua interpretação pelo Poder Judiciário", de autoria de André Paulo dos Santos Pereira, de 2009.

Conforme o estudo, a partir da leitura de depoimentos de outros casos, o mito do Canaimé é um elemento presente e recorrente na cultura dos povos que vivem na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. "Tal elemento, muito mais do que influenciador, é determinante dos fatos do caso em análise, servindo de excludente da ilicitude do crime", diz o estudo.

Geralmente esses confrontos ocorrem entre índios de comunidades diferentes, onde o Canaimé é uma construção mitológica intensa "e que assusta, amedronta, causa pânico e, por fim, suscita sentimentos violentos e instintivos", afirma o estudo. "A tradição oral que resiste ao contato com os não índios e sua tecnologia persiste na tradição e como manifestação cultural ensinada até nas escolas pelos professores indígenas".

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