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Roraima: os índios ameaçam a segurança nacional?

João Pacheco de Oliveira
Autor: João Pacheco de Oliveira
06 de Mar de 2004

Relatórios reservados dos órgãos de inteligência das Forças Armadas,
divulgados na imprensa, consideram que a demarcação da terra
indígena Raposa/Serra do Sol poderia "causar prejuízos para a
segurança do país, para o desenvolvimento da região, além do risco
de grave conflito". A presença indígena e a consolidação das
fronteiras nacionais são então fatos contraditórios? Não é isso de
maneira alguma o que nos ensina a História do Brasil.

No estabelecimento de nossos limites territoriais os povos indígenas
tiveram grande importância, participando das campanhas militares e
ocupando as faixas de fronteira. Os bandeirantes percorreram todo o
interior dos sertões à cata de minérios e escravos, mas quem ocupava
efetivamente essas regiões eram os indígenas e seus descendentes
("tapuios" e "caboclos"). Muito acertadamente Rondon, militar
renomado e conhecedor profundo dos sertões, paradigma da
nacionalidade, os considerava ideais guardiães da fronteira.

No caso específico de Roraima, foi graças à ocupação indígena que o
Brasil conseguiu assegurar o traçado atual das fronteiras. Roraima
não seria parte de nosso território não fossem os índios do lavrado.
O argumento de que essas são coisas do passado é irresponsável e
inverídico. Irresponsável porque declara inexistente dívidas
históricas, cancelando de forma unilateral os direitos que daí
derivam. Equivocado porque não são os índios os envolvidos nas
atividades de contrabando ou garimpagem de minérios preciosos,
práticas que promovem enorme evasão de divisas.

Ao contrário, líderes de aldeias e organizações indígenas estão
sempre a denunciar tais atividades. Nos órgãos públicos - sobretudo
na Funai - acumulam-se pilhas de solicitações nesse sentido.
Habitantes permanentes da região, os indígenas estão preocupados em
evitar que a fronteira se torne um lugar perigoso ou devastado em
termos ambientais, pois necessitam de segurança para trabalhar e
dependem diretamente da qualidade dos recursos naturais.

Os indígenas não querem ver a transformação de suas "malocas"
(aldeias) em "corrutelas" de garimpeiros ou área de trânsito de
criminosos e contrabandistas. A homologação da Raposa/Serra do Sol
como área contínua, e não como "ilhas", visa a impedir essas
atividades ilícitas (garimpagem ilegal e contrabando), que não
poderiam de forma alguma serem classificadas como "desenvolvimento".

Um argumento tão absurdo quanto bombástico é exumado cada vez que o
governo está para declarar o reconhecimento de uma área indígena: o
de que os índios, dispondo de uma base física, estariam pretendendo
formar uma "nação" independente, apoiados em organismos que
pretenderiam a internacionalização da Amazônia. Jamais algum
representante indígena afirmou isso nem qualquer organização não
governamental sustentou essa tese! Trata-se de uma farsa
ardilosamente forjada, inspirada em pressuposições racistas (quanto
a uma alegada natureza traiçoeira do índio) e xenófobas. Embora
possa impressionar os incautos, toda vez que foi investigada ou
discutida a fundo jamais revelou resquício de verdade.

A mesma aleivosia foi levantada em 1991, quando da demarcação da
terra indígena Yanomami. Quem o diz é o ex-ministro Jarbas
Passarinho, militar em nada associado à esquerda, que em artigos
sucessivos respondeu a textos publicados na revista do Clube
Militar. "Em nenhum documento oficial ou oficioso isso ocorreu. É
falsidade grave, porque induz os leitores da revista (...) a
acreditar no reconhecimento da existência de um território ianomami
soberano, uma nação indígena dentro da nação brasileira. Intriga
perversa...".

Também o Itamaraty repetidas vezes afirmou categoricamente que em
nenhuma instância dos organismos internacionais se debateu a questão
da perda da soberania da Amazônia. Uma dessas ocasiões foi em junho
de 1999, quando o então ministro Lampreia respondeu à requerimento
de autoria do ex-senador (cassado) Luiz Otávio, dirimindo suas
preocupações cívicas e patrióticas.

Na mesma época em audiência pública na Câmara dos Deputados, o
general Schroeder Lessa, então comandante militar da Amazônia,
afirmou que a demarcação não inibe nenhuma ação do Exército. Um
cerceamento das ações de defesa nacional jamais foi pretendida pela
Funai ou pelos indígenas. Isso inclusive já está regulamentado por
decretos. Na realidade, os argumentos supostamente estratégicos,
baseados em fatos distorcidos e já reiteradamente esclarecidos,
visam a paralisar a atuação do governo federal e apelar ao
descumprimento da legislação existente, reforçando uma
caracterização equivocada da crise por que passa Roraima.

O estado não é inviável em função do "excesso" de áreas indígenas.
Sua população rural é pequena e o estoque de terras, retiradas as
indígenas, ultrapassa as áreas aproveitáveis de muitos outros
estados (RJ, ES, PE, AL, SG, RN, PB). Nenhum desses é declarado
inviável por seus dirigentes! Roraima necessita é de um plano
diretor de desenvolvimento que não esteja fundado na destruição
ambiental e na invasão das áreas indígenas, algo que mobilize os
segmentos de sua população e estabeleça um planejamento transparente
e democrático.

Que progresso trazem os arrozeiros que se estabeleceram na área
indígena, que com o uso de agrotóxicos estão contaminando os rios e
tornando inadequada a água de Boa Vista? A retórica do "progresso" a
todo preço não serve aos interesses do Brasil, nem ajuda o
fortalecimento da presença nacional nessas áreas, apenas cria um
simulacro de representação política, que esconde uma associação
perigosa e temível entre política e criminalidade, baseada na
conivência ou na cumplicidade ativa.

O que inquieta e revolta em Roraima são as investigações da
corrupção instalada na administração local, o chamado "escândalo dos
gafanhotos", que segundo cálculos consumiria cerca de 15% das verbas
do estado. Os protestos contra isso foram esquecidos e passaram a
segundo plano enquanto o governo estadual era tolerante com a
invasão de órgãos públicos (Funai, Incra), com o seqüestro de
missionários e um bloqueio das vias de acesso à capital pelos
arrozeiros. O objetivo era claro - criar uma outra crise, artificial
e controlada, para iludir à opinião pública. Por fim o que ameaça a
segurança nacional não é a "possível demarcação" da terra indígena
Raposa/Serra do Sol (aliás informação errada, pois já se encontra
demarcada há alguns anos!).

O que deve nos preocupar é que relatórios "reservados", além de
conter análises tão equivocadas, sejam divulgados e utilizados para
legitimar protestos orquestrados por interesses espúrios, omitindo
que as causas reais da crise são o desgoverno dos instrumentos de
administração pública e a ausência de um projeto de desenvolvimento
sustentável para o estado.

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