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Rio de muitos frutos

Globo Rural, p. 58-63
28 de Fev de 2004

Rio de muitos frutos
Quilombos do Vale do Ribeira, SP, abrem portas para o exterior sem perder a identidade, a cultura e a soberania

Texto José Augusto Bezerra

Ivaporunduva é a mais antiga comunidade quilombola de São Paulo, formada por descendentes de escravos que se embrenharam no Vale do Ribeira no século 18, à cata de ouro. Eles subiram o rio em canoas, removeram vegetação, terra, cascalho e outros obstáculos à lida garimpeira e acabaram se fixando numa colina à margem esquerda, 45 quilômetros a jusante da sede atual do município de Eldorado. A igrejinha de Nossa Senhora do Rosário, em torno da qual a vila cresceu, continua de pé, com a face voltada para o Ribeira do Iguape, único grande rio não barrado do estado. Construída em taipa, em 1791, ela é o orgulho da comunidade, destacando-se sobre a paisagem composta pela exuberância da Mata Atlântica e extensos bananais cultivados, até recentemente a única fonte de renda da população - 70 famílias, organizadas em torno da Associação Quilombo de Ivaporunduva.
Para quem chega, o acesso é feito a partir de dois pontos na margem oposta, onde serpenteia a SP-165, rodovia que liga a região ao resto do mundo, via BR-116. O primeiro, defronte à vila, através de canoas iguais às do passado, no bojo das quais crianças e adultos enfrentam diariamente a correnteza para ir e voltar da escola, comprar algo, resolver algum negócio ou passear em Iporanga, cidade mais próxima. O segundo, alguns quilômetros a montante, em balsa. 'Antigamente, o único caminho era o rio; a gente demorava um dia inteiro pra descer até Eldorado, pra comprar coisas e vender banana, e dois pra voltar', lembra Sebastião Forquim, de 72 anos, que mora com a esposa, Cecília Rodrigues, de 69, numa casinha do Córrego Grande, a dois quilômetros da vila. 'Agora, dá pra ir de carro', compara, reconhecendo as vantagens da praticidade atual, mas saudoso dos dias venturosos do passado.
Ivaporunduva significa 'rio de muitos frutos', em tupi. Para seus moradores, o Ribeira foi a primeira fonte de alimentos e água e estrada inicial de suas vidas. É a veia principal do vale (leia 'Panorâmica sobre o vale'), região de grandes paradoxos. De um lado, apresenta riquíssimo patrimônio cultural e ambiental, com florestas, restingas e mangues praticamente intactos, graças ao relevo acidentado e às dificuldades de acesso. Do outro, os mais baixos indicadores sociais de São Paulo - altas taxas de mortalidade infantil e analfabetismo, falta de escolas, luz, assistência médica e saneamento.
Posse definitiva Com fronteiras setentrionais a menos de 200 quilômetros da capital, o vale concentra, também, o maior número de quilombos do estado, segundo Fábio Graf Pedroso, do ISA - Instituto Socioambiental, que coordena um programa de apoio às comunidades quilombolas da região. São mais de 50, entre concretas e prováveis, das quais apenas 13 possuem territórios formalmente reconhecidos pelo Instituto de Terras, órgão vinculado à Secretaria da justiça e da Defesa da Cidadania, responsável pelos processos administrativos de titulação. Recentemente, Ivaporunduva tomou-se a primeira comunidade quilombola de São Paulo a conseguir a propriedade definitiva de suas terras - 3,1 mil hectares de área, aproximadamente. A atividade básica é a bananicultura, a exemplo do que acontece em todo o vale. São 400 mil pés, cultivados em esquema familiar. Perto de cada casinha tem um bananal, por menor que seja, além de roçados de arroz, feijão, milho, hortas e fruteiras variadas. A colheita é feita em mutirão e a comercialização, no atacado. No verão, quando a produção é maior, eles enchem dois caminhões por semana (cada um carrega 700 caixas de 20 quilos, vendidas na Ceagesp, na capital). No inverno, um.
Com apoio técnico do ISA, da Unicamp - Universidade Estadual de Campinas e da Esalq - Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, de Piracicaba, que também desenvolvem projetos sustentáveis na região, a comunidade se organizou nos últimos anos e se abriu para o mundo exterior, procurando modernizar métodos de produção (tem 45 hectares de banana orgânica) e pós-colheita para concorrer no mercado globalizado. Uma caixa de banana verde custa 1,75 real na vila. Fora, 3,13 reais, em média. A climatizada alcança 8,82 reais e a orgânica, 12,95 reais (preços de dezembro).
Alternativas O problema é que o mercado da banana orgânica ainda não está consolidado. Faltam contratos de longo prazo com atacadistas ou supermercados. A população também passou a buscar fontes alternativas de renda, reintroduzindo o plantio de juçara (Euterpe edulis), espécie nativa da Mata Atlântica, ameaçada de extinção pela exploração predatória (para extrair o palmito, os palmiteiros derrubam a palmeira) e investindo em cursos de capacitação. Em artesanato, por exemplo. O objetivo, no primeiro caso, é repovoar a mata para viabilizar o manejo sustentável no futuro. No segundo, resgatar técnicas artesanais ancestrais e materiais esquecidos, aproveitando a mão-de-obra excedente ou ociosa. A sala das artesãs, onde as mulheres expõem seus trabalhos, faz o maior sucesso. Quem visita a comunidade fatalmente passa por lá e acaba comprando um cesto ou tapete, vasos para flores, objetos decorativos, bordados, barquinhos de bambu, instrumentos musicais, bodoques etc.
Dona Maria da Guia é especialista em fibra de bananeira. Leva dois dias para tecer um tapetão do tamanho de uma colcha de casal. "É fácil. É só cortar a erva, descascar, separar as tiras, banhar em álcool (30%) e água para não carunchar, secar ao sol e fiar", explica. Dona Cecília prefere fazer esteiras de embaúva ou embira num tear modesto mas eficiente, "mais antigo do que o marido". Os barbantes usados na trama são esticados por pedras amarradas às pontas, cujo peso serve também para entrelaçá-los firmemente na urdidura. Já Elvira Pedroso gosta de expor seus trançados na janela de sua casa. "Dá para ganhar um dinheiro extra", comemora.
Resgate Ivaporunduva é conhecida internacionalmente. Freqüentemente, ônibus fretados estacionam do outro lado do rio e despejam levas de estudantes e turistas interessados em conhecer um quilombo "de verdade". A associação está construindo uma pousada moderna no sopé da serra, a três quilômetros da vila, para abrigar os visitantes. Paulistas, italianos, mineiros, japoneses, baianos, belgas, cariocas, holandeses, gaúchos, americanos, todos, enfim, querem saber de costumes, crenças e tradições. A própria comunidade investe em cursos de resgate da cultura, principalmente entre os jovens. "Éum jeito de preservar as raízes e a unidade do grupo", explica Benedito Alves da Silva, o Ditão, um dos coordenadores da associação, dirigida em forma de colegiado. Ivaporunduva virou referência, embora seus moradores assegurem que já era vista como tal, no passado. "Alguns dos pioneiros saíram para formar novas comunidades", justificam, referindo-se a Galvão, São Pedro, Sapatu e outros quilombos do vale, ligados entre si por laços de parentesco, dificuldades e sonhos. Apesar dos avanços, alguns dos principais problemas da região persistem. Antonio Morato, presidente da Associação dos Remanescentes do Quilombo de São Pedro, comunidade com 27 famílias, situada à beira do rio de mesmo nome, reclama da falta de assistência médica. Não há postos de saúde num raio de 50 quilômetros, nem transporte. Eles têm de caminhar 25 quilômetros até Ivaporunduva para telefonar, pedindo socorro. "Teve gente que morreu no meio do caminho", lembra.
Embora desconfiados, inicialmente, de estranhos, por conta da opressão histórica, disputas com posseiros e brigas na Justiça pela titulação (são proprietários por direito das terras onde moram, de acordo com a Constituição de 1988), a característica básica dos quilombolas é a solidariedade. O uso da terra é comum, as construções são feitas em mutirão e as decisões, tomadas em grupo. A banana é negociada em conjunto, com lucro rateado entre as famílias. As munções (festas) fervilham. Em novembro, centenas de moradores das demais comunidades foram até São Pedro para rever amigos, jogar conversa fora, comer, beber, cantar e dançar mão-esquerda, capoeira e outros bailados populares. As crianças dançaram mão-esquerdinha, com narração do próprio Antonio Morato. "Aqui não tem desemprego. Pode ter quem não queira trabalhar, mas tem o que fazer", diz José Rodrigues da Silva, uma das principais lideranças locais, membro do Moab - Movimento dos Ameaçados por Barragens, além de músico e compositor. "Nossa maior proposta é fixar o homem à terra", afirma. "É preparar nossos jovens para ajudar a melhorar a vida de todos." Em sua opinião, Ivaporunduva é espelho do próprio nome.

Panorâmica sobre o vale
A bacia hidrográfica do Ribeira do Iguape, chamada, genericamente, de Vale do Ribeira, é um mundo especial com 2,8 milhões de hectares de área e população de 400 mil pessoas, abrangendo 30 municípios, nove dos quais no Paraná, onde o rio nasce. A foz fica em Iguape, litoral sul de São Paulo, para onde as águas fluem após 350 quilômetros de volteios. Uma das características do Ribeira é a fluidez de seu curso. Nunca foi represado. Na cheia, invade gulosamente a várzea, como os rios do passado. Na seca, segue manso rumo ao mar, compondo com a vegetação ao redor, montanhas, cavernas, riachos, cachoeiras, bichos, chuva, sol e gente, uma das mais belas e ricas regiões do país, do ponto de vista ambiental.
São mais de 2,1 milhões de hectares verdes (21 do que restou da Mata Atlântica em todo o país), 150 mil de restingas e 17 mil de manguezais bem conservados. 0 relevo acidentado restringiu o acesso e condicionou a exploração econômica. Sem condições de mecanização, a atividade agropecuária limita-se a criatórios isolados de bois e búfalos, à bananicultura, essa, sim, onipresente, cultivos esparsos de chá e outras espécies vegetais e lavouras de subsistência.
Em termos históricos, o Vale do Ribeira abriga a maior quantidade de sítios arqueológicos tombados do estado, os principais parques florestais de São Paulo, de grande importância para a manutenção da biodiversidade e de seu próprio equilíbrio ecológico, e uma infinidade de pássaros, insetos, anfíbios, répteis, mamíferos, plantas, flores e frutos, muitos dos quais endêmicos. Comparado às demais regiões do estado, é um paraíso.

Titularidade, ainda que tardia
A Fundação Cultural Palmares inventariou 1.264 comunidades quilombolas no Brasil, das quais apenas 42 são reconhecidas. Ou seja, agrupamentos sobre os quais já foi emitido laudo antropológico comprovando que são, de fato, remanescentes de quilombos. Até recentemente, o laudo era condição essencial no processo de concessão do título definitivo de posse. Era preciso provar a descendência de escravos e a ocupação ininterrupta da terra. Agora, segundo o Decreto 4.887, de novembro passado, o critério para o reconhecimento é o da auto-identificação. Vincula a delimitação do território à reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade, incluindo as terras destinadas ao plantio, caça, pesca e manejo agroflorestal, além da área de moradia.
Quilombos, mocambos, terras de preto, comunidades negras são termos que o Brasil difundiu para designar locais onde escravos fugidos se escondiam. No entanto, muitos desses grupos se formaram depois da abolição. Conquistaram as terras onde moram por rebeldia, prestação de serviços guerreiros ou religiosos, ocupação de fazendas desagregadas, herança, compra ou doações. Trezentos anos depois da morte de Zumbi, líder do movimento negro do Quilombo dos Palmares, em Pernambuco, o país ainda não se libertou totalmente da escravidão.

Globo Rural, Fev./2004, p. 58-63

http://revistagloborural.globo.com/GloboRural/0,6993,EEC674801-1641,00…

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