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'Reverter crise dos Yanomami exige tempo e muitas ações', diz antropólogo francês

Valor Econômico - https://valor.globo.com/
Autor: ALBERT, Bruce
10 de Fev de 2023

'Reverter crise dos Yanomami exige tempo e muitas ações', diz antropólogo francês
Antropólogo francês que trabalha há 50 anos com grupo critica auxílio garimpeiro

Daniela Chiaretti

10/02/2023

Bruce Albert, o antropólogo francês que trabalha há quase 50 anos com os Yanomami, acredita que levará tempo, esforço e muitas ações para reverter o cenário desolador de desnutrição e falta de assistência de saúde ao povo indígena. "Ainda há muito trabalho pela frente para articular um sistema de assistência em saúde eficiente na Terra Indígena Yanomami que permita reverter o quadro assustador do presente", diz ele. "A dramática situação de saúde e desnutrição causada pela invasão da mineração ilegal na TI Yanomami, e a destruição da base da subsistência indígena com os rios poluídos, a caça afugentada e as roças devastadas, estão longe de ser resolvidas."

Albert, um dos maiores antropólogos contemporâneos, acredita que, do mesmo modo que é preciso criar um sistema de saúde duradouro na terra indígena, será necessário criar um sistema de monitoramento com imagens de satélites e drones e intervenção rápida de equipes da Funai e do Ibama, para controlar invasões na área.

"Fora da TI Yanomami também é preciso ter um planejamento de inteligência eficiente para desmantelar a logística das mineradoras ilegais", diz. "O comércio do ouro deve ser profundamente revisto para que seja implementada, de maneira sistemática, a fiscalização da origem do metal produzido e destinado ao setor financeiro e joalheiro", defende.

Nascido no Marrocos e doutor em antropologia pela Université Paris X Nanterre, Albert é tido como uma das maiores referências entre estudiosos dos Yanomami. Começou a trabalhar com o povo em 1975, fala bem uma das línguas e foi um dos fundadores da Comissão Pró-Yanomami, a CCPY, que conduziu com o xamã Davi Kopenawa, a célebre fotógrafa Claudia Andujar e o missionário Carlo Zacquini a campanha nacional e internacional de 14 anos pela homologação da Terra Indígena Yanomami, em 1992.

Intérprete do inquérito que ouviu sobreviventes do massacre de Haximu em 1993 - que vitimou 16 crianças, velhos, mulheres e até um bebê- Albert enxerga duas causas básicas para o drama atual que acomete o povo indígena: a abertura "escancarada" da terra indígena "a verdadeiras empresas-piratas de extração de ouro e cassiterita" e "um cínico desmantelamento de todas as estruturas assistenciais -ambientais, sociais e sanitárias-, na TI Yanomami e na Amazônia em geral." Atribui ambos "à mortífera desgovernança do ex-presidente Jair Bolsonaro'.

Para Albert, criar o que chama de "auxílio garimpeiro" seria um erro que premiaria "a busca de lucro em atividades ilegais nas terras indígenas. E ainda pago pelo erário público, que já se encontra muito lesado pela mobilização necessária para conter e remediar estas ilegalidades, sem contar o prejuízo ecológico enorme ao patrimônio público". Na visão do antropólogo "quem tem que financiar a saída dos garimpeiros da TI Yanomami são os donos das mineradoras clandestinas".

Em 1992, a retirada dos garimpeiros da TI Yanomami foi "relativamente rápida, mas os Yanomami de Roraima tinham perdido 13% da sua população", lembra. Alguns garimpeiros nunca saíram da região, conta, e quando o preço do ouro voltou a subir, retornaram em número muito maior, mecanizados e possivelmente apoiados pelo crime organizado. "As lideranças Yanomami e suas associações alertaram inúmeras vezes o governo e a imprensa sobre a iminência de uma crise humanitária sem precedentes na terra indígena. Sem resultado. Desde 2015 pouco foi feito para resolver a situação e, a partir de 2019, o governo Bolsonaro agravou a crise. Acabou se configurando uma verdadeira tentativa de genocídio."

Albert acaba de voltar de viagem aos Estados Unidos com o amigo Davi Kopenawa e Claudia Andujar. Participaram da abertura da exposição "The Yanomami Struggle", em Nova York, com fotos de Claudia Andujar e o trabalho de vários artistas Yanomami - Albert foi o consultor antropológico. Estiveram nas universidade de Princeton e Columbia, onde relataram o que vem ocorrendo com o povo Yanomami e encontraram o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.

Albert, que escreveu com Davi Kopenawa "A Queda do Céu", prepara em março o lançamento de "O Espírito da Floresta", também em coautoria com o xamã e editado pela Cia. das Letras. O livro reúne reflexões e diálogos que, a partir do conhecimento xamânico Yanomami, evocam imagens e sons da floresta. Ao retornar dos EUA, concedeu esta entrevista ao Valor, por escrito:

Valor: O senhor já dizia, em entrevista em 2021, que a pior catástrofe que viu em 50 anos de convívio com os Yanomami, é a que assistimos nos últimos anos. Por quê?

Bruce Albert: A trágica situação na qual se encontram atualmente os Yanomami do Brasil - que é de fato a pior em 50 anos - tem duas causas imputáveis à mortífera desgovernança do ex-presidente Jair Bolsonaro entre 2019 e 2022. A primeira é a abertura escancarada da Terra Indígena Yanomami a verdadeiras empresas-piratas de extração de ouro e cassiterita, em desprezo total das leis e da Constituição brasileiras.

Valor: E a segunda causa?

Albert: A segunda: paralelamente [à abertura da terra indígena às empresas de mineração de médio porte que atuam clandestinamente na TI Yanomami] ocorreu um cínico desmantelamento de todas as estruturas assistenciais - ambientais, sociais e sanitárias -, na TI Yanomami e na Amazônia em geral. Eu me refiro à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Valor: O senhor foi intérprete do inquérito que ouviu os sobreviventes do massacre de Haximu, em 1993, quando morreram 16 crianças Yanomami, idosos, mulheres e um bebê. O massacre foi caracterizado como genocídio pelo Superior Tribunal de Justiça, a única vez, na história do país. O senhor dizia, em 2021, que tolerar o garimpo em terras indígenas configurava um crime de genocídio por omissão.

Albert: O planejamento e a execução desses dois ataques complementares contra a integridade da TI Yanomami e de seus habitantes indígenas configuram exatamente a situação descrita no artigo 2o item c da Convenção para a Prevenção e Repressão de Crime de Genocídio promulgada por decreto no Brasil [decreto no 30.822/1952, assinado por Getúlio Vargas. O artigo 2o entende por genocídio "atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso" e o item c diz "submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial"]. Nos anos 90, Bolsonaro, então parlamentar, tentou por todos os meios legais impedir a demarcação da TI Yanomami. Em vão. Um decreto presidencial [assinado pelo então presidente Fernando Collor] e as disposições da Constituição de 1988 garantiram a sua homologação em 1992. Não podendo anular legalmente a TI Yanomami, Bolsonaro deixou, na sua Presidência, os Yanomami serem dizimados pelos garimpeiros. Ele deverá responder pelo crime diante da justiça nacional e/ou internacional.

Valor: O senhor pode contar algo do processo de desintrusão dos garimpeiros nos anos 90?

Albert: A desintrusão da invasão garimpeira do fim dos anos 80 começou em janeiro de 1990 com uma ação conjunta e simultânea da Polícia Federal, do Exército, do Ministério da Saúde. Imediatamente após a desintrusão entraram equipes médicas com voluntários do país inteiro mobilizadas pelo Ministério da Saúde e membros de ONG parceiras dos Yanomami, indigenistas e antropólogos, que conheciam a área e a língua yanomami. Eu mesmo trabalhei meses como intérprete nestas equipes. A desintrusão foi relativamente rápida, mas os Yanomami de Roraima tinham perdido 13% da sua população e núcleos de garimpeiros profissionais "radicais" permaneceram durante décadas entricheirados em lugares de difícil acesso na TI Yanomami.

Valor: E o que aconteceu depois?

Albert: Esse garimpo começou a expandir novamente com a subida do preço do ouro nos mercados internacionais no fim de 2015, e explodiu em proporções inéditas durante a presidência Bolsonaro, pelas razões que mencionei. No fim dos anos 80 estimava-se que os garimpeiros na TI Yanomami eram 40 mil. Em 2022 eram provavelmente ainda mais numerosos, em vista da extensão das áreas devastadas que quase quadruplicaram de 2018 a 2022 chegando a praticamente 4.500 hectares de florestas destruídas. Há anos estes garimpeiros estão submetendo mais da metade da população Yanomami a terríveis condições de degradação sanitária e desnutrição, violência, exploração sexual e degradação social. As lideranças Yanomami e suas associações alertaram inúmeras vezes o governo e a imprensa sobre a iminência de uma crise humanitária sem precedentes na terra indígena. Sem resultado. Desde 2015 pouco foi feito para resolver a situação e a partir de 2019, o governo Bolsonaro agravou a crise. Acabou se configurando uma verdadeira tentativa de genocídio.

Valor: Na sua visão, como o processo de desintrusão deveria ser feito agora, com o garimpo ilegal mecanizado e muito mais violento?

Albert: A situação é mais complexa hoje do que em 1990, é óbvio. Em 1990 assistimos a um início de mecanização e capitalização do garimpo. Em 2022 estamos frente a verdadeiras empresas ilegais de extração de ouro e cassiterita, altamente mecanizada e capitalizadas, operando com retroescavadeiras, abrindo estradas privadas na floresta, com frota de aviões e helicópteros. São protegidas por milícias com armamento pesado e provavelmente associadas ao crime organizado do sul do país, para lavagem de dinheiro. Não tem mais nada a ver com o que era, no passado, o garimpo artesanal. Aliás, chamar de "garimpo" a mineração ilegal na Terra Indígena Yanomami é hoje impróprio -pode esconder a verdadeira natureza da situação e sua extrema gravidade. O novo governo parece agir com prudência e determinação para retirar os garimpeiros da TI Yanomami, controlando o espaço aéreo para forçar, em um primeiro momento, a saída espontânea dos garimpeiros; e, em um segundo momento, implementar uma intervenção repressiva direta na área para quem tentar ficar e manter lugares de garimpo. Obviamente este planejamento, por mais bem-intencionado que seja, não é perfeito. Sabemos que os garimpeiros desabastecidos que devem sair por sua própria conta, sem controle, acabam muitas vezes roubando a ajuda humanitária levada aos Yanomami e cometendo mais violência. Muitos cruzam a fronteira da Venezuela para esperar a pressão baixar e poder voltar mais tarde, impunemente, na TI Yanomami do lado brasileiro.

Valor: O senhor acha que pode haver resistência?

Albert: Em 30 anos de garimpo na TI Yanomami, os invasores desenvolveram técnicas sofisticadas para esconder seus equipamentos. Vai ter uma grande resistência para manter a mineração clandestina na área. Os interesses econômicos envolvidos são poderosos e os políticos locais são favoráveis à mineração ilegal. Isto sem contar o envolvimento das facções criminosas no garimpo da TI Yanomami. Circulam também noticias sobre um possível auxílio público aos garimpeiros o que me parece o cúmulo do populismo.

Valor: Por quê?

Albert: "Garimpeiro" não é uma profissão permanente, só para muito poucos. Trata-se, em geral, de uma atividade ilegal temporária nas terras indígenas e pela qual abandonam um emprego. Ou buscam a atividade no desemprego, por ser mais lucrativa que um emprego legal na cidade - e isto sem falar da criminalidade profissional que é muito presente nos garimpos. Portanto, criar um "auxílio garimpeiro" seria premiar a busca de lucro em atividades ilegais nas terras indígenas. E ainda pago pelo erário público, que já se encontra muito lesado pela mobilização necessária para conter e remediar estas ilegalidades. Isso sem contar o prejuízo ecológico enorme ao patrimônio público. Nos caso dos Yanomami seria um verdadeiro "auxílio genocídio". Quem tem que financiar a saída dos garimpeiros da TI Yanomami são os donos das mineradoras clandestinas cujos bens, mal adquiridos, devem ser confiscados e assim pagar a retirada de seus empregados abandonados na floresta.

Valor: O quadro atual levará tempo para ser revertido?

Albert: A dramática situação de saúde e desnutrição causada pela invasão da mineração ilegal na TI Yanomami, e a destruição da base da subsistência indígena com os rios poluídos, a caça afugentada e as roças devastadas, estão longe de ser resolvidas. Não basta o fluxo emergencial de cestas básicas. Pelo que soube, a ação sanitária de emergência em campo ainda é pouco organizada e sistemática, e não consegue atingir as piores áreas onde o garimpo ainda é ativo. As equipes de saúde trabalham em situações de alto risco com falta de pessoal competente e insumos médicos especializados. As ONGs médicas que conhecem a área começam apenas estes dias a ser autorizadas a colaborar no sistema de assistência emergencial. Enfim, o Distrito Sanitário Yanomami ainda não tem nova direção e não foi reestruturado, enquanto políticos locais, cúmplices do genocídio yanomami, rondam para interferir na nomeação. Ainda há muito trabalho pela frente para articular um sistema de assistência em saúde permanente e eficiente na Terra Indígena Yanomami que permita reverter o quadro assustador do presente.

Valor: Como fazer para que os garimpeiros não retornem?

Albert: Do mesmo modo que a assistência em saúde, será precisar articular um dispositivo de controle permanente na TI Yanomami. Este sistema deveria ser de monitoramento e contar com radares, imagens satélites e drones. E também com intervenção rápida de equipes da Funai, do Ibama e outros, em lugares estratégicos da terra indígena. Fora da TI Yanomami também é preciso ter um planejamento de inteligência eficiente para desmantelar a logística das mineradoras ilegais que compreende voos, combustíveis, circuitos comerciais dos insumos, por exemplo. O comércio do ouro deve ser profundamente revisto para que seja implementada, de maneira sistemática, a fiscalização da origem do metal produzido e destinado ao setor financeiro e joalheiro.

Valor: O governo Lula criou o Ministério dos Povos Indígenas. Como o senhor viu essa decisão?

Albert: Esta criação é obviamente uma vitória e um momento histórico para os povos indígenas do Brasil que reivindicaram esta decisão por muito tempo. É a primeira vez na história do Brasil que os povos indígenas ganham espaço no poder Executivo para administrar seu próprio destino.

Valor: O governador de Roraima Antônio Denarium deu entrevista à "Folha de S.Paulo" dizendo "que os Yanomami têm que se aculturar e não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho". O que acha deste pensamento, que é, também de boa parte da população?

Albert: Os ditos do governador de Roraima caracterizam um infame retorno do recalcado cultural e social do Brasil colônia, o que é inacreditável e inaceitável em 2023. Com estereótipos racistas só se pretende encobrir o extermínio dos Yanomami pela mineração selvagem invadindo suas terras. Isto é indigno de um cargo publico no Brasil contemporâneo. Alem disso, tais colocações parecem tão medíocres e anacrônicas quando o mundo inteiro reconhece a profunda sabedoria filosófica e ecológica da tradição do povo Yanomami, através de livros de pensadores como Davi Kopenawa ["A Queda do Céu", com Bruce Albert], que foi publicado em oito idiomas. E a exposição de arte Yanomami nos museus e galerias de arte contemporâneas de São Paulo, Londres, Paris, Xangai e Nova Iorque com obras de Joseca Mokahesi e outros artistas Yanomami.

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